Não temos
a pretensão de tratar de forma exaustiva tema tão amplo,
movendo-nos unicamente a intenção de chamar a atenção para
algumas peculiaridades do desenvolvimento histórico do Rio
Grande do Sul, do seu processo de industrialização e da formação
da burguesia e da classe operária gaúchas.
PECUÁRIA COM MÃO-DE-OBRA LIVRE E CHARQUEADAS ESCRAVISTAS
O Rio Grande do Sul só começa a ser efetivamente
ocupado no final do século XVII, muito mais por razões militares
e territoriais do que econômicas. A sua integração econômica ao
resto do Brasil colonial só irá acontecer no decorrer do século
XVIII: “A extremidade meridional do território que hoje
constitui o Brasil permanece durante muito tempo fora de sua
órbita. Entrará para a história política e administrativa da
colônia em fins do século XVII; mas economicamente só começará a
contar em fins do século XVIII. Antes disso é apenas um
território arduamente disputado por espanhóis e portugueses de
armas na mão, e não terá outra forma de ocupação que a militar.”
[PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1949, p. 102].
Antes, portanto, resumia-se a uma área de apresamento dos índios
que viviam nas reduções jesuíticas, pelos bandeirantes paulistas
em busca de escravos, e de caça ao gado xucro que por aí vagava:
A exploração colonial assentava-se basicamente em produção já
existente nas áreas coloniais (as riquezas minerais, por
exemplo) ou em forma de produção agrícola aqui instalada segundo
os interesses e necessidades do capitalismo nascente (caso do
açúcar). O Rio Grande do Sul não se enquadrava em nenhum dos
dois casos, daí a sua tardia integração ao sistema colonial.
(...) Desvinculado da agricultura colonial de exportação
diretamente integrada ao mercado internacional, o Rio Grande do
Sul carecia de sentido no contexto do processo de acumulação
primitiva de capitais que se verificava nos quadros do Antigo
Sistema Colonial.[PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, pp. 8; 7]
No início do domínio espanhol sobre Portugal
(1580-1640), a burguesia comercial lusa havia obtido o direito
de instalar-se em Buenos Aires, em recompensa pelo apoio ao
candidato espanhol ao trono português. Com a Restauração,
os portugueses, hostilizados em Buenos Aires, passaram a
pressionar no sentido da fundação de um estabelecimento
português no Rio da Prata, o que obtiveram com a criação da
Colônia de Sacramento em 1680: Por trás dos interesses lusos no
contrabando do Prata, estava a indisfarçável presença britânica,
em busca de mercados.
A decadência da economia agroexportadora do
açúcar, no final do século XVII, compensada pela descoberta das
minas de ouro na região das Gerais, criou novas perspectivas de
inserção do Rio Grande do Sul na economia colonial, como
fornecedor de gado bovino e gado muar (para o transporte) e
couros. Pouco a pouco, foi ocorrendo a ocupação da Província
de São Pedro, através da concessão de sesmarias, em geral em
paga de serviços militares prestados:
As
estâncias de gado que se constituíram realizavam uma criação
extensiva do rebanho, utilizando como mão-de-obra os peões.
Estes eram elementos subalternos do antigo bando armado que
tropeava gado ou índios egressos das missões. Embora se
registrasse o uso de escravos nas estâncias, a atividade de
criação, subsidiária da economia central do país, não foi capaz
de propiciar uma acumulação que permitisse a introdução regular
de negros na região. Estes não se constituíram na mão-de-obra
fundamental no processo do trabalho.
[PESAVENTO. História...,
idem, p.15]
Os escravos utilizados nas estâncias não o eram
nas atividades de peonagem propriamente dita. À parte os
trabalhos domésticos, ocupavam-se na agricultura de subsistência
e de outras tarefas de apoio à atividade produtiva principal da
estância. Portanto, “o latifúndio no sul não foi
agroexportador (...) não foi fundamentalmente escravista. Assim,
nem o produto nem a estrutura produtiva da grande propriedade
reproduziram, no sul, o trinômio básico da estrutura social e
econômica do Brasil: latifúndio, lavoura de exportação e
escravismo.”
[TARGA,
Luiz Roberto Pecoits. As diferenças entre o escravismo gaúcho
e o das plantations do Brasil! - incluindo no que e
porque discordamos de FHC. In: Ensaios FEE. Porto
Alegre: Ano 12, nº 2, 1991, p. 455]
A partir do
tratado de Madrid (1750), que tornou a região das Missões
território luso, Portugal incentivou a vinda de casais açorianos
para o seu povoamento. Estes, localizados na porção norte do
Estado, dedicaram-se fundamentalmente à agricultura, em especial
à produção de trigo. O enriquecimento de alguns colonos
propiciou a introdução de escravos nas lavouras, mas em pequena
proporção.
Será somente com introdução das charqueadas –
para viabilizar a mercantilização da carne bovina sob a forma do
charque – que a introdução de escravos tonou-se massiva no Rio
Grande do Sul:
De forma similar
ao resto do Brasil, “a escravidão doméstica e a urbana
(artesanato, trabalho de reparação, pequeno comércio e serviços)
desenvolveram-se amplamente no Rio Grande do Sul.” Mas, “eles
só desempenharam um papel produtivo essencial na produção de
charque.” Já o trabalho nas estâncias continuou a pouco usar
a mão-de-obra escrava:
É lógico que a caça ao gado selvagem, assim como o tropear, não
se coadunava com o trabalho compulsório. Os peões que
trabalhavam na courama não só eram senhores de seus destinos,
pois encontravam-se belamente montados, como também deviam estar
fortemente armados. O contato com os aborígenes, antigos
senhores de uma terra da qual se viam escorraçados, as incursões
lusitanas e espanholas que se esparramavam por um território sem
senhor, tudo isso fazia destas expedições verdadeiras operações
militares. A arma, a montaria, os horizontes abertos, por
motivos óbvios, não se combinavam com o homem escravizado. Os
escravos que participavam dessas atividades terminavam
transformando-se em acompanhantes de seus senhores, mais
guarda-costas e pajens do que servos. A escravidão assumirá,
então, uma qualidade meramente jurídica. No geral, porém, a
mão-de-obra que assegurará essa atividade será livre. Aqui
teremos o indígena em processo de absorção, o espanhol
transbandeado, aventureiros paulistas, enfim, crioulos e
mestiços livres de todos os tipos.
[MAESTRI, Mário.
O escravo africano...,
In: DACANAL, idem, p. 35]
Referindo-se a isso, em 1839, Nicolau Dreys
testemunha: “A estância é servida ordinariamente por um
capataz e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os
peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são
índios ou gaúchos assalariados (...)” [DREYS,
Nicolau. Notícia descritiva da província do Rio Grande do
Sul. In: MAESTRI, Mário. Breve História do Rio Grande do
Sul: da pré-história aos dias atuais. Passo Fundo: Editora
Universidade de Passo Fundo, 2010, pp. 100-101]
As charqueadas
platinas (saladeros) levavam vantagem em relação às
nossas, devido ao uso de mão-de-obra livre e ao grande apoio
governamental – exatamente por ser a atividade básica desses
países –, estando isentas das taxas da importação do sal e não
pagando impostos de exportação: “O saladero era uma usina
capitalista. Utilizava mão-de-obra assalariada, a divisão do
trabalho e a especialização. (...) a diferença de produtividade
da mão-de-obra fazia com que 100 operários abatessem 500 bois
enquanto 100 escravos abatiam 250 (...) Na entressafra, os
assalariados platinos eram dispensados, enquanto a charqueada
deveria continuar sustentando seus escravos.” [TARGA. As
diferenças..., idem, p. 458].
As
charqueadas rio-grandenses só conseguiram competir com elas, na
primeira metade do século passado, devido à desorganização das
atividades produtivas nos países do Prata, decorrente das
guerras de independência:
Uma vez
implantados os saladeros, a produção das charqueadas só
conseguia monopolizar o mercado brasileiro quando, por efeito
das guerras regionais, a produção dos saladeros estivesse
desorganizada. Era assim que, por exemplo, o Brasil importava a
metade das exportações argentinas de charque durante os últimos
50 anos do século XIX. (...) O charque platino alcançava o
mercado brasileiro com um preço inferior ao do charque gaúcho.”
[TARGA. As diferenças..., idem, p. 458]
Em 1820, a
anexação da Banda Oriental pelas tropas de D. João VI,
favoreceu os interesses do Rio Grande do Sul, colocando o gado e
as pastagens do Uruguai à disposição de suas charqueadas. A
economia sulina orientou-se cada vez mais para o abastecimento
do mercado interno, tornando-se o charque a base da alimentação
da escravaria do setor agro-exportador. Como o preço dos
produtos alimentares incidia diretamente no custo da manutenção
da mão-de-obra escrava, a política econômica imperial – a
serviço dos produtores de café – resistia a qualquer política
protecionista em relação aos alimentos gaúchos, favorecendo as
importações, sempre que tivessem melhor preço.
Por isso, a libertação do Uruguai em relação ao
Brasil, em 1828, significou um grave golpe na competitividade da
economia gaúcha, especialmente quanto ao charque. A crise
econômica daí advinda, combinada com o ressentimento
rio-grandense com o “desinteresse” do governo central em relação
à produção gaúcha, foi, indiscutivelmente, uma das causas mais
importantes da Guerra dos Farrapos, que se prolongou de 1835 a
1845. Tanto é assim, que uma das principais concessões do
governo central aos farrapos, quando da assinatura da paz, foi a
elevação em 25% da taxa alfandegária sobre o charque importado.
Essa e outras medidas, somadas as graves perturbações políticas
que se seguiram nos países platinos, deram certo fôlego às
charqueadas gaúchas, adiando a sua crise para a década de 60. A
partir de então, com a recuperação e a modernização dos
saladeros platinos, que se transformaram em verdadeiras
empresas capitalistas, e a proibição do tráfico de escravos, a
partir de 1850, a sua decadência tornou-se inevitável:
No mercado
interno brasileiro, defrontavam-se os produtos de uma economia
subsidiária escravista (rio-grandense) em crise e os de uma
economia central assalariada (platina) em ascensão. A forma que
o Rio Grande do Sul teria para poder vencer o concorrente seria
pelo controle dos mecanismos decisórios de poder, subordinando a
orientação da política econômica nacional aos interesses
sulinos. Entretanto, as pretensões rio-grandenses esbarravam no
fato de que a economia do estado estava subordinada aos
interesses do centro do país (...) O interesse do centro, no
caso, era baratear o charque, do qual era comprador. (...) Nos
quadros do Império, os charqueadores buscavam resolver seu
problema pela antecipação da abolição da escravatura, o que se
deu em 1884. Entretanto, o princípio adotado foi o da liberação
com a “cláusula de prestação de serviços”, o que implicava que o
senhor permanecesse com o trabalhador à sua disposição, para uso
de acordo com suas necessidades reais e repassando os gastos de
manutenção para o próprio liberto, agora chamado de
“contratado”. Significava, em última análise, extinguir a
escravidão sem extinguir os escravos. Limitava-se, com isso, a
própria generalização das relações assalariadas de produção nas
charqueadas sulinas, comprometendo o desenvolvimento do
capitalismo na região.
[PESAVENTO. História...,
idem, pp. 43-45]
A ECONOMIA
COLONIAL IMIGRANTE
Após a imigração açoriana no final do século
XVII, o Rio Grande do Sul recebeu duas levas migratórias
principais, no século XVIII: a alemã, iniciada em 1824, e a
italiana, a partir de 1875. Essas duas imigrações inserem-se no
processo de expansão do capitalismo em nível mundial. O
desenvolvimento do capitalismo em países como a Alemanha e a
Itália criou grandes excedentes de trabalhadores sem terra e sem
trabalho, sem possibilidade de serem absorvidos em seus países.
A emigração para o Novo Mundo foi uma das formas
encontradas para aliviar as tensões sociais e abrir novos
mercados.
Diferentemente da
imigração para as regiões cafeeiras, que visava resolver o
problema da carência de mão-de-obra para as plantations
agro-exportadoras – substituindo a mão-de-obra escrava por
mão-de-obra livre, sob a forma do colonato ou do assalariamento
– a imigração para o Rio Grande do Sul tinha como objetivo a
criação de uma classe de pequenos agricultores dedicados à
produção de gêneros alimentícios para o mercado brasileiro:
“o
movimento imigrantista foi, em São Paulo, uma promoção dos
cafeicultores escravistas com o objetivo de resolver seus
problemas de penúria de mão-de-obra com a aceleração da
desagregação do sistema escravista, enquanto, no sul, o
movimento imigrantista isolava e inviabilizava o setor
escravista”
[TARGA.
As diferenças..., idem,
p. 471]. Do ponto de vista dos pecuaristas e dos charqueadores
escravistas, porém, a imigração não atendia aos seus interesses
nem solucionava a sua falta de braços:
No Rio Grande do Sul, os motivos que levaram à promoção da
imigração europeia foram radicalmente diversos daqueles que
encontramos na região cafeicultora.
[Helga Iracema L. Piccolo. Abolicionismo e trabalho livre no
Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, mimeografado, 1987,
p. 8] (...) a intenção manifesta da Presidência da Província
em 1848 não era, em hipótese alguma, a de promover a imigração
europeia com a finalidade de fornecer braços para o setor
charqueador do Rio Grande do Sul (...) explícita no sentido de
não permitir a criação de colônias de imigrantes em áreas
vizinhas à da região charqueadora (...) essa criação só poderia
ser feita, segundo ele, longe da região das charqueadas.(...)
Com isso, Piccolo deixa claro que o impulso dado à imigração, no
Rio Grande do Sul, não estava sendo concebido para resolver os
problemas virtuais de penúria de mão de obra dos senhores de
escravos (...) E não somente isso, a escravidão era interditada
nas áreas das colônias. A presença de escravos nas colônias de
imigrantes derivava de sua existência no período anterior (...)
O sucesso econômico das colônias de imigrantes permitia a
aquisição de escravos, mas as leis imperiais e provinciais
interditavam o seu uso. A colonização no sul fazia-se, também,
nesse sentido, em oposição à sociedade escravista. A intenção
imperial explícita era a de criar uma classe de pequenos
proprietários (...) o Governo Imperial incentivava o
assentamento de novas relações de propriedade e de produção.
[TARGA. As diferenças..., idem, pp. 465-466]
Alguns anos mais tarde, em 1874, o relatório do
Presidente da Província lamentava essa orientação dada à
imigração no Rio Grande do Sul:
(...) a
exploração dos grandes prédios rurais não encontra braços que a
auxiliem; o preço do salário agrícola não guarda proporção com o
resultado do trabalho; (...) o sistema de colonização atualmente
seguido produz, a par de todas as suas vantagens, o
inconveniente de dificultar a união do capital e do trabalho,
afastando os imigrantes dos estabelecimentos já criados, e
convidando-os a formarem pequenos prédios rústicos (...)
[PICCOLO, Helga Iracema L. O discurso abolicionista no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, mimeografado, s/d, p. 9]
Resumindo as peculiaridades do escravismo no Rio Grande do Sul,
transcrevemos abaixo uma longa, mas esclarecedora, citação de
importante trabalho de Luiz Roberto Targa:
(...) a
grande propriedade fundiária no sul não era agro-exportadora
para o mercado mundial, mas de pecuária. Seu produto
destinava-se ao próprio mercado brasileiro (...) não tornou
necessária nem essencial a utilização da escravidão no
pastoreio. No Rio Grande do Sul, não houve, desse modo, a
sobreposição dessas duas instituições clássicas das plantations
brasileiras: o escravismo e a grande propriedade. (...) na
sociedade sul-riograndense, o escravismo havia ficado confinado
principalmente ao setor charqueador (...) Enquanto firma
escravista, a charqueada distinguiu-se de qualquer outra, pois
não possuía produção de subsistência dentro da unidade de
produção, o que a tornava vulnerável à contração dos preços do
charque. Por fim, seu produto afetava o custo da reprodução da
escravaria do Brasil e das camadas urbanas pobres, o que criou
conflitos entre a classe dominante regional e as de outras
regiões do Brasil. (...) E mais, foi crucial na diferenciação
dos escravismos construídos no sul e nas plantations à
identificação das classes fundamentais do escravismo agrário
brasileiro: a dos senhores e a dos escravos rurais. (...) Ora,
nenhuma dessas duas classes existiu no Rio Grande do Sul, desde
que os senhores rurais foram pecuaristas e que a atividade
pecuária se revelou não essencialmente escravista. Disso decorre
que a classe dos escravos rurais também não existiu no Brasil
meridional. As classes fundamentais do escravismo gaúcho foram
outras: a dos proprietários e a dos escravos das charqueadas.
(...) as concepções e a prática que cercaram a imigração foram
fundamentalmente diversas na região do café e no Brasil
meridional. Na primeira, os imigrantes vieram tomar o lugar dos
escravos na produção, enquanto no sul eles foram encarregados de
criar uma
nova sociedade
totalmente
à parte da sociedade escravista e onde o trabalho escravo era
legalmente interditado. (...) Em São Paulo, houve uma relação de
causa e efeito entre a abolição da escravidão e a imigração,
pois, num primeiro momento, a escravidão fizera fracassar a
imigração. Totalmente outra foi a relação no Rio Grande do Sul,
onde o desenvolvimento da imigração asfixiou o escravismo (...)
na região cafeicultora, a abolição da escravidão e a
substituição do trabalho escravo pelo livre tocava o próprio
coração da produção e da sociedade regional, enquanto no sul ele
afetava um setor entre os três que existiam: o pecuário, o
colonial e o charqueador. No sul, o setor escravista da
sociedade e da produção não estava no centro, mas ao lado, e,
assim, ele ficou relativamente isolado com seus problemas.
[TARGA.
As diferenças..., idem, pp. 476-477]
ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E FORMAÇÃO DA BURGUESIA E DO PROLETARIADO
GAÚCHOS
Como a atividade produtiva historicamente
predominante no Rio Grande do Sul era a pecuária – à qual se
ligava o setor charqueador – se poderia pensar que a origem do
capital industrial na economia gaúcha viesse daí. Realmente, a
pecuária e as charqueadas possibilitaram uma relativa acumulação
de capital, mas os dados empíricos demonstram que esses capitais
quase não foram transferidos para as atividades industriais.
Frente a isso, é bastante difundida a ideia de
que a origem da indústria gaúcha estaria nos capitais acumulados
pelos pequenos proprietários das colônias agrícolas de
imigração, e na lenta transformação do artesanato, a eles
ligado, em produção industrial. Segundo Sandra Pesavento, os
fatos apontam em outro sentido: “No que toca à agricultura, a
verdadeira acumulação não estava se realizando ao nível da
pequena propriedade, que atuava com arcaísmo técnico, mas sim
com o comércio, que, através de sua atividade, obtinha lucros
superiores aos da exploração agrícola.” [PESAVENTO.
República Velha gaúcha: Estado autoritário e economia. In:
DACANAL, J. H. E GONZAGA, S. (Org.) RS: economia e política.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 201]. E Felipe da
Silva complementa:
Se é
inegável a grande importância que tiveram os imigrantes no
processo de industrialização do Estado (...) não é menos verdade
que entre esse artesanato e a indústria de fato houve uma
separação bem nítida. (...) O artesanato (...) jamais teve
dinamismo suficiente para transformar-se, gradualmente, em
indústria. (...) E a maior parte do artesanato (...) foi
destruída pelo desenvolvimento comercial que deu aos colonos
acesso a produtos importados (...) deixou espaço para que
surgisse a indústria propriamente dita. (...) ao invés do
artesanato ter gerado a indústria, foi o aniquilamento daquele
que propiciou o surgimento desta.
[DA SILVA, Felipe Rodrigues. O Surgimento da Indústria na
Economia Rio-Grandense. Porto Alegre: UFRGS, datilografado,
1990, monografia de bacharelado em Ciências Econômicas, p. 33]
Na verdade, a maioria dos pesquisadores concorda
que a acumulação de capitais para a indústria no Rio Grande do
Sul se deu, fundamentalmente, entre os imigrantes, mas não a
partir dos pequenos agricultores ou artesãos, e sim a partir do
capital comercial, principalmente dos imigrantes alemães:
Entretanto, todo este desenvolvimento da agricultura colonial
alemã não veio beneficiar diretamente o pequeno proprietário,
mas sim aquele que realmente acumulava capital através das
atividades de abastecimento do mercado interno: o comerciante
(...) o comerciante alemão foi o elemento que se destacou no
mundo colonial. Lucrava sobre a produção agrícola mediante a
diferença obtida pelos produtos na colônia e em Porto Alegre;
lucrava com o transporte das mercadorias da colônia à capital e
da capital à colônia; lucrava ainda com as operações financeiras
de empréstimos e guarda de dinheiro (...) É possível observar
sua marcha ascensional em termos de acumulação de capital, desde
a venda rural até a constituição de grandes casas de comércio de
importação e exportação (...) aplicando capital não só na
indústria como em empresas de navegação, bancos, companhias de
seguros, loteamentos, hotéis.
[PESAVENTO. História..., idem, pp. 48-49]
Mário Maestri, ainda que concorde com a
preponderância do capital comercial na acumulação necessária ao
surgimento de indústrias de grande porte no Rio Grande do Sul,
também ressalta o papel do artesanato de origem familiar no
surgimento de certa quantidade de pequenas e médias empresas:
“O
porte diferenciado das indústrias sulinas devia-se também à
diversa origem dos ramos industriais. Como vimos, a grande
indústria fabril nasceu do investimento de grandes capitais
obtidos, sobretudo, na esfera da circulação das mercadorias, em
geral por comerciantes que já controlavam parte da distribuição
(...) Sua produção era vendida no mercado regional e no Brasil.
Ao contrário, as pequenas e médias empresas desenvolveram-se a
partir do crescimento de atividades artesanais e familiares,
pela acumulação de capitais próprios ou de pequenos empréstimos.
Essa produção cresceu (...) no contexto de forte exploração da
mão-de-obra (...) de origem rural.” [MAESTRI,
Mário. Breve História..., idem, p. 275]
Ao tratar do mesmo
tema, DA SILVA – abordando a questão da origem do capital dos
imigrantes – procura responder se o mesmo originou-se de uma
acumulação local ou prévia:
(...) as
populações que aqui aportavam não deveriam ser formadas, em
grande parte, por integrantes da pequena burguesia ou outras
camadas intermediárias, e sim por ex-camponeses expropriados de
suas terras ou por operários mal empregados ou desempregados
(...) não poderiam ter trazido para o Rio Grande qualquer
capital mais significativo. Entretanto, em alguns casos, aqui
chegavam imigrantes detentores de um capital previamente
acumulado. O “burguês” imigrante é identificável facilmente
quando o tempo que decorre entre a sua chegada e o início de sua
atividade empresarial é pequeno (...) Enquadrava-se nesta
situação J. Becker, que chegou no Rio Grande do Sul em 1854 e já
em 1856 iniciava sua fundição em Porto Alegre; de L. Hädrich,
que também gastou somente dois anos entre sua chegada e o
estabelecimento de uma fábrica de máquinas em Novo Hamburgo; de
E. Neugebauer que se estabeleceu com uma fábrica de doces em
Porto Alegre, em 1891, e ainda de Emerich Berta, J. Wallig e
Mernak, na metalurgia e mecânica, e de Kessler e Teichmann na
indústria de chapéus. Estes e alguns outros exemplos, contudo,
não constituíam a maioria da industrialização gaúcha, não
podendo ser considerados típicos no processo de acumulação do
capital industrial no Rio Grande do Sul.
[DA SILVA.
Op. Cit., pp. 56-57]
Mas, o imigrante não forneceu somente o capital
inicial para a industrialização gaúcha. Foi, ainda, a origem da
mão-de-obra livre para essas indústrias De fato, com o passar
dos anos, e com a crescente subdivisão da propriedade colonial,
esta começou a liberar crescentes excedentes populacionais, que
não tinham mais como ser absorvidos no trabalho agrícola. Serão,
portanto, esses filhos de imigrantes, com certa qualificação
técnica, que irão formar boa parte do nascente proletariado
gaúcho:“A pequena
propriedade propiciou o surgimento de um dos mais importantes
requisitos para a industrialização, a mão-de-obra assalariada e
de certa qualificação, em bases capitalistas. (...) Tanto o
escravo quanto os peões, se eram pouco adaptáveis até mesmo no
trabalho fabril, tanto mais eram distanciados de qualquer
técnica de produção manufatureira. Somente o imigrante possuía
conhecimento de ‘como fazer’ (...)” [DA SILVA. Op. Cit., pp.
40, 57]
Da mesma forma,
não pode ser desprezado o papel desempenhado pelos pequenos
proprietários coloniais na dinamização da incipiente
industrialização, através da criação de um próspero mercado para
os seus produtos:
Na
consideração do mercado interno gaúcho, há um elemento que se
destaca, não só por seu caráter específico, como também pelo
papel que desempenhou em sua dinamicidade: a imigração alemã e
italiana. Formando áreas de produção agrícola que tinham como
unidade produtiva a pequena propriedade, ela marcou
profundamente a formação e a potencialidade do mercado gaúcho,
dotando-o de uma parcela maior de população com médio poder
aquisitivo. O imigrante possuía um poder de compra bem maior do
que o daqueles que, radicados em outras regiões do País, se
integraram à massa assalariada do campo e da cidade.
[REICHEL, Heloísa Jochims. A industrialização no Rio Grande
do Sul na República Velha. In: DACANAL e GONZAGA. Op. Cit.,
p. 263]
Por fim, a partir
da década de 40, as colônias alemãs já haviam ultrapassado a
fase da agricultura de subsistência e começaram a fornecer
produtos alimentícios para o mercado regional, especialmente
Porto Alegre, garantindo o abastecimento da crescente população
urbana. Assim, “a economia colonial imigrante estabeleceu formas
orgânicas de vinculação com a indústria nascente no que diz
respeita à formação do capital, à liberação de força-trabalho,
ao fornecimento de matéria-prima, à aquisição de tecnologia e à
formação de um mercado consumidor para produtos manufaturados.”
[PESAVENTO, Sandra. Os industriais da república. Porto
Alegre: IEL, 1991, p. 51]. A partir dos anos 70, essa
agricultura comercial já será capaz de abastecer em inúmeros
produtos o mercado interno nacional, dinamizado pelo café.
Todas essas
particularidades influenciaram de uma forma significativa a
transição para uma economia capitalista no Rio Grande do Sul,
onde:
(...) não
foi dos charqueadores que surgiram os empresários industriais,
nem dos escravos que surgiram os operários (…) diferença
fundamental em relação a São Paulo. Nesta última região, pelo
menos alguns dos capitalistas industriais importantes que
surgiram após a abolição da escravidão provinham da classe dos
cafeicultores. Outro foi o caso no Rio Grande do Sul, onde essa
fração da classe dominante regional [escravista] não forneceu
quadros de capitalistas industriais e onde praticamente todos os
grupos industriais que se formaram tiveram origem nas famílias
de imigrantes – não obrigatoriamente, é claro, nas dos pequenos
proprietários – assim como foram as populações de imigrantes que
forneceram grande parte dos contingentes que formaram a classe
trabalhadora sul-riograndense.
[TARGA. As diferenças..., idem, p. 464]
CONCLUSÃO
O acima exposto
mostra que não existiu no Rio Grande do Sul o sistema de
plantations (latifúndios escravistas), tão característico do
Nordeste (açúcar, algodão, cacau, etc.) e do Sudeste (café). Da
mesma forma, não tivemos uma economia de mineração intensiva
como Minas Gerais (ouro, diamantes), que utilizasse um grande
número de escravos. Assim, ainda que tenha havido a escravidão,
o seu peso econômico se dava fundamentalmente na produção do
charque, que não era o “berço” da classe dirigente gaúcha. Na
pecuária – atividade econômica e socialmente dominante – o
trabalho escravo era pouco relevante. Já na economia colonial
camponesa, era proibido utilizar escravos, ainda que isso
ocorresse em pequena escala. O Rio Grande do Sul também foi o
“laboratório” para a implantação no Brasil de um modelo agrícola
alternativo ao escravismo, tendo por base a pequena propriedade
de imigrantes europeus, inicialmente açorianos, alemães e
italianos. O que acabou gerando, ao lado do latifúndio pastoril,
uma forte pequena-burguesia rural, mais dinâmica e progressista.
Outra
característica peculiar da economia do Rio Grande do Sul é ter
estado desde o seu início vinculada ao mercado interno –
fornecendo muares, couro, produtos agrícolas e charque para a
alimentação da escravaria – e não à exportação, como a maioria
dos demais estados, cujas economias estavam voltadas à
monocultura exportadora (açúcar, algodão, cacau, café, etc.)
Isso possibilitou às classes dominantes gaúchas um olhar mais
“nacional” do que o das oligarquias ligadas à monocultura
escravista exportadora, subservientes e dependentes das
potências coloniais.
Além dessas
singularidades da formação econômico-social sul-riograndense, é
preciso agregar o fato do Rio Grande do Sul ter sido, durante
muito tempo, a principal “fronteira viva” do país, onde – em
permanente conflito com espanhóis e “castellanos” – os
limites do país foram definidos “a ponta de lança e a pata de
cavalo”. Da mesma forma, não podemos esquecer a
significativa influência das idéias republicanas, devido aos
países limítrofes. Certamente, esse conjunto de particularidades
tem muito a ver com as características do povo gaúcho e com o
papel que o Rio Grande do Sul teve em diversos episódios da
história brasileira, como a Guerra dos Farrapos – que
entre 1835 e 1845 enfrentou o todo poderoso Império
centralizador e escravocrata e lutou pela República –; a
Coluna Prestes (1924-1927); a Revolução de 1930; e o
Movimento da Legalidade (1961), entre outros.
Sem pretender
ter esgotado o assunto, procurei indicar alguns elementos para
uma melhor compreensão da formação econômico-social do Rio
Grande do Sul e da maneira de ser do povo gaúcho.