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   Porto Alegre, domingo, 22 de dezembro de 2024

   
Singularidades da formação econômico-social do Rio Grande do Sul

Raul K. M. Carrion

Não temos a pretensão de tratar de forma exaustiva tema tão amplo, movendo-nos unicamente a intenção de chamar a atenção para algumas peculiaridades do desenvolvimento histórico do Rio Grande do Sul, do seu processo de industrialização e da formação da burguesia e da classe operária gaúchas.

PECUÁRIA COM MÃO-DE-OBRA LIVRE E CHARQUEADAS ESCRAVISTAS

                O Rio Grande do Sul só começa a ser efetivamente ocupado no final do século XVII, muito mais por razões militares e territoriais do que econômicas. A sua integração econômica ao resto do Brasil colonial só irá acontecer no decorrer do século XVIII: “A extremidade meridional do território que hoje constitui o Brasil permanece durante muito tempo fora de sua órbita. Entrará para a história política e administrativa da colônia em fins do século XVII; mas economicamente só começará a contar em fins do século XVIII. Antes disso é apenas um território arduamente disputado por espanhóis e portugueses de armas na mão, e não terá outra forma de ocupação que a militar.” [PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1949, p. 102]. Antes, portanto, resumia-se a uma área de apresamento dos índios que viviam nas reduções jesuíticas, pelos bandeirantes paulistas em busca de escravos, e de caça ao gado xucro que por aí vagava:

A exploração colonial assentava-se basicamente em produção já existente nas áreas coloniais (as riquezas minerais, por exemplo) ou em forma de produção agrícola aqui instalada segundo os interesses e necessidades do capitalismo nascente (caso do açúcar). O Rio Grande do Sul não se enquadrava em nenhum dos dois casos, daí a sua tardia integração ao sistema colonial. (...) Desvinculado da agricultura colonial de exportação diretamente integrada ao mercado internacional, o Rio Grande do Sul carecia de sentido no contexto do processo de acumulação primitiva de capitais que se verificava nos quadros do Antigo Sistema Colonial. [PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, pp. 8; 7]

                No início do domínio espanhol sobre Portugal (1580-1640), a burguesia comercial lusa havia obtido o direito de instalar-se em Buenos Aires, em recompensa pelo apoio ao candidato espanhol ao trono português. Com a Restauração, os portugueses, hostilizados em Buenos Aires, passaram a pressionar no sentido da fundação de um estabelecimento português no Rio da Prata, o que obtiveram com a criação da Colônia de Sacramento em 1680: Por trás dos interesses lusos no contrabando do Prata, estava a indisfarçável presença britânica, em busca de mercados.

                A decadência da economia agroexportadora do açúcar, no final do século XVII, compensada pela descoberta das minas de ouro na região das Gerais, criou novas perspectivas de inserção do Rio Grande do Sul na economia colonial, como fornecedor de gado bovino e gado muar (para o transporte) e couros. Pouco a pouco, foi ocorrendo a ocupação da Província de São Pedro, através da concessão de sesmarias, em geral em paga de serviços militares prestados:

As estâncias de gado que se constituíram realizavam uma criação extensiva do rebanho, utilizando como mão-de-obra os peões. Estes eram elementos subalternos do antigo bando armado que tropeava gado ou índios egressos das missões. Embora se registrasse o uso de escravos nas estâncias, a atividade de criação, subsidiária da economia central do país, não foi capaz de propiciar uma acumulação que permitisse a introdução regular de negros na região. Estes não se constituíram na mão-de-obra fundamental no processo do trabalho. [PESAVENTO. História..., idem, p.15]

                Os escravos utilizados nas estâncias não o eram nas atividades de peonagem propriamente dita. À parte os trabalhos domésticos, ocupavam-se na agricultura de subsistência e de outras tarefas de apoio à atividade produtiva principal da estância. Portanto, “o latifúndio no sul não foi agroexportador (...) não foi fundamentalmente escravista. Assim, nem o produto nem a estrutura produtiva da grande propriedade reproduziram, no sul, o trinômio básico da estrutura social e econômica do Brasil: latifúndio, lavoura de exportação e escravismo. [TARGA, Luiz Roberto Pecoits. As diferenças entre o escravismo gaúcho e o das plantations do Brasil! - incluindo no que e porque discordamos de FHC. In: Ensaios FEE. Porto Alegre: Ano 12, nº 2, 1991, p. 455]

A partir do tratado de Madrid (1750), que tornou a região das Missões território luso, Portugal incentivou a vinda de casais açorianos para o seu povoamento. Estes, localizados na porção norte do Estado, dedicaram-se fundamentalmente à agricultura, em especial à produção de trigo. O enriquecimento de alguns colonos propiciou a introdução de escravos nas lavouras, mas em pequena proporção.

                Será somente com introdução das charqueadas – para viabilizar a mercantilização da carne bovina sob a forma do charque – que a introdução de escravos tonou-se massiva no Rio Grande do Sul:

Em 1780, 36% da população do município de Porto Alegre era constituída de escravos” [MAESTRI, Mário. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1993, p. 44] O “Mapa das freguesias e moradores de ambos os sexos com diferentes condições e idades com que se acham em outubro de 1780”, nos dá, para uma população de 17.923 habitantes, 5.102 escravos de ambos os sexos, ou seja quase 30 por cento da população. (...) De certa forma, a história do escravismo no sul confunde-se com a história da indústria saladeiril. (...) O ciclo da charqueada inaugura a definitiva estruturação do escravismo como modo de produção dominante de uma ampla região de nossos territórios. (...) Em “São Francisco de Paula e seu termo” (Pelotas), em 1833, teremos 5.169 escravos para 3.555 homens livres e 1.136 libertos. (...) Em 1858, contamos em nossa Província com 70.880 escravos, quase 25% da população! [MAESTRI, Mário. O escravo africano no Rio Grande do Sul. In: DACANAL, J. H. E GONZAGA, S. (Org.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, pp. 37, 39, 40, 41, 43] (...) essa participação não chegava a 10% para um município de pequenos proprietários imigrantes como o de São Leopoldo (...) Por fim, o peso da escravidão nos serviços e no artesanato urbanos, assim como a escravidão doméstica, pode ser bem exemplificado com Porto Alegre (...) que detendo 10,52% da população total da Província, concentrava 11,87% do total dos escravos. Em 1858, no Rio Grande do Sul, 25,08% da população era escrava. [TARGA. As diferenças..., idem, p. 446]

De forma similar ao resto do Brasil, “a escravidão doméstica e a urbana (artesanato, trabalho de reparação, pequeno comércio e serviços) desenvolveram-se amplamente no Rio Grande do Sul.” Mas, “eles só desempenharam um papel produtivo essencial na produção de charque.” Já o trabalho nas estâncias continuou a pouco usar a mão-de-obra escrava:

É lógico que a caça ao gado selvagem, assim como o tropear, não se coadunava com o trabalho compulsório. Os peões que trabalhavam na courama não só eram senhores de seus destinos, pois encontravam-se belamente montados, como também deviam estar fortemente armados. O contato com os aborígenes, antigos senhores de uma terra da qual se viam escorraçados, as incursões lusitanas e espanholas que se esparramavam por um território sem senhor, tudo isso fazia destas expedições verdadeiras operações militares. A arma, a montaria, os horizontes abertos, por motivos óbvios, não se combinavam com o homem escravizado. Os escravos que participavam dessas atividades terminavam transformando-se em acompanhantes de seus senhores, mais guarda-costas e pajens do que servos. A escravidão assumirá, então, uma qualidade meramente jurídica. No geral, porém, a mão-de-obra que assegurará essa atividade será livre. Aqui teremos o indígena em processo de absorção, o espanhol transbandeado, aventureiros paulistas, enfim, crioulos e mestiços livres de todos os tipos. [MAESTRI, Mário. O escravo africano..., In: DACANAL, idem, p. 35]

                Referindo-se a isso, em 1839, Nicolau Dreys testemunha: “A estância é servida ordinariamente por um capataz e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gaúchos assalariados (...) [DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da província do Rio Grande do Sul. In: MAESTRI, Mário. Breve História do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo, 2010, pp. 100-101]

As charqueadas platinas (saladeros) levavam vantagem em relação às nossas, devido ao uso de mão-de-obra livre e ao grande apoio governamental – exatamente por ser a atividade básica desses países –, estando isentas das taxas da importação do sal e não pagando impostos de exportação: “O saladero era uma usina capitalista. Utilizava mão-de-obra assalariada, a divisão do trabalho e a especialização. (...) a diferença de produtividade da mão-de-obra fazia com que 100 operários abatessem 500 bois enquanto 100 escravos abatiam 250 (...) Na entressafra, os assalariados platinos eram dispensados, enquanto a charqueada deveria continuar sustentando seus escravos.” [TARGA. As diferenças..., idem, p. 458]. As charqueadas rio-grandenses só conseguiram competir com elas, na primeira metade do século passado, devido à desorganização das atividades produtivas nos países do Prata, decorrente das guerras de independência:

Uma vez implantados os saladeros, a produção das charqueadas só conseguia monopolizar o mercado brasileiro quando, por efeito das guerras regionais, a produção dos saladeros estivesse desorganizada. Era assim que, por exemplo, o Brasil importava a metade das exportações argentinas de charque durante os últimos 50 anos do século XIX. (...) O charque platino alcançava o mercado brasileiro com um preço inferior ao do charque gaúcho.” [TARGA. As diferenças..., idem, p. 458]

Em 1820, a anexação da Banda Oriental pelas tropas de D. João VI, favoreceu os interesses do Rio Grande do Sul, colocando o gado e as pastagens do Uruguai à disposição de suas charqueadas. A economia sulina orientou-se cada vez mais para o abastecimento do mercado interno, tornando-se o charque a base da alimentação da escravaria do setor agro-exportador. Como o preço dos produtos alimentares incidia diretamente no custo da manutenção da mão-de-obra escrava, a política econômica imperial – a serviço dos produtores de café – resistia a qualquer política protecionista em relação aos alimentos gaúchos, favorecendo as importações, sempre que tivessem melhor preço.

                Por isso, a libertação do Uruguai em relação ao Brasil, em 1828, significou um grave golpe na competitividade da economia gaúcha, especialmente quanto ao charque. A crise econômica daí advinda, combinada com o ressentimento rio-grandense com o “desinteresse” do governo central em relação à produção gaúcha, foi, indiscutivelmente, uma das causas mais importantes da Guerra dos Farrapos, que se prolongou de 1835 a 1845. Tanto é assim, que uma das principais concessões do governo central aos farrapos, quando da assinatura da paz, foi a elevação em 25% da taxa alfandegária sobre o charque importado. Essa e outras medidas, somadas as graves perturbações políticas que se seguiram nos países platinos, deram certo fôlego às charqueadas gaúchas, adiando a sua crise para a década de 60. A partir de então, com a recuperação e a modernização dos saladeros platinos, que se transformaram em verdadeiras empresas capitalistas, e a proibição do tráfico de escravos, a partir de 1850, a sua decadência tornou-se inevitável:

No mercado interno brasileiro, defrontavam-se os produtos de uma economia subsidiária escravista (rio-grandense) em crise e os de uma economia central assalariada (platina) em ascensão. A forma que o Rio Grande do Sul teria para poder vencer o concorrente seria pelo controle dos mecanismos decisórios de poder, subordinando a orientação da política econômica nacional aos interesses sulinos. Entretanto, as pretensões rio-grandenses esbarravam no fato de que a economia do estado estava subordinada aos interesses do centro do país (...) O interesse do centro, no caso, era baratear o charque, do qual era comprador. (...) Nos quadros do Império, os charqueadores buscavam resolver seu problema pela antecipação da abolição da escravatura, o que se deu em 1884. Entretanto, o princípio adotado foi o da liberação com a “cláusula de prestação de serviços”, o que implicava que o senhor permanecesse com o trabalhador à sua disposição, para uso de acordo com suas necessidades reais e repassando os gastos de manutenção para o próprio liberto, agora chamado de “contratado”. Significava, em última análise, extinguir a escravidão sem extinguir os escravos. Limitava-se, com isso, a própria generalização das relações assalariadas de produção nas charqueadas sulinas, comprometendo o desenvolvimento do capitalismo na região. [PESAVENTO. História..., idem, pp. 43-45]

A ECONOMIA COLONIAL IMIGRANTE

                Após a imigração açoriana no final do século XVII, o Rio Grande do Sul recebeu duas levas migratórias principais, no século XVIII: a alemã, iniciada em 1824, e a italiana, a partir de 1875. Essas duas imigrações inserem-se no processo de expansão do capitalismo em nível mundial. O desenvolvimento do capitalismo em países como a Alemanha e a Itália criou grandes excedentes de trabalhadores sem terra e sem trabalho, sem possibilidade de serem absorvidos em seus países. A emigração para o Novo Mundo foi uma das formas encontradas para aliviar as tensões sociais e abrir novos mercados.

Diferentemente da imigração para as regiões cafeeiras, que visava resolver o problema da carência de mão-de-obra para as plantations agro-exportadoras – substituindo a mão-de-obra escrava por mão-de-obra livre, sob a forma do colonato ou do assalariamento – a imigração para o Rio Grande do Sul tinha como objetivo a criação de uma classe de pequenos agricultores dedicados à produção de gêneros alimentícios para o mercado brasileiro: o movimento imigrantista foi, em São Paulo, uma promoção dos cafeicultores escravistas com o objetivo de resolver seus problemas de penúria de mão-de-obra com a aceleração da desagregação do sistema escravista, enquanto, no sul, o movimento imigrantista isolava e inviabilizava o setor escravista [TARGA. As diferenças..., idem, p. 471]. Do ponto de vista dos pecuaristas e dos charqueadores escravistas, porém, a imigração não atendia aos seus interesses nem solucionava a sua falta de braços:

No Rio Grande do Sul, os motivos que levaram à promoção da imigração europeia foram radicalmente diversos daqueles que encontramos na região cafeicultora. [Helga Iracema L. Piccolo. Abolicionismo e trabalho livre no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, mimeografado, 1987, p. 8] (...) a intenção manifesta da Presidência da Província em 1848 não era, em hipótese alguma, a de promover a imigração europeia com a finalidade de fornecer braços para o setor charqueador do Rio Grande do Sul (...) explícita no sentido de não permitir a criação de colônias de imigrantes em áreas vizinhas à da região charqueadora (...) essa criação só poderia ser feita, segundo ele, longe da região das charqueadas.(...) Com isso, Piccolo deixa claro que o impulso dado à imigração, no Rio Grande do Sul, não estava sendo concebido para resolver os problemas virtuais de penúria de mão de obra dos senhores de escravos (...) E não somente isso, a escravidão era interditada nas áreas das colônias. A presença de escravos nas colônias de imigrantes derivava de sua existência no período anterior (...) O sucesso econômico das colônias de imigrantes permitia a aquisição de escravos, mas as leis imperiais e provinciais interditavam o seu uso. A colonização no sul fazia-se, também, nesse sentido, em oposição à sociedade escravista. A intenção imperial explícita era a de criar uma classe de pequenos proprietários (...) o Governo Imperial incentivava o assentamento de novas relações de propriedade e de produção. [TARGA. As diferenças..., idem, pp. 465-466]

                Alguns anos mais tarde, em 1874, o relatório do Presidente da Província lamentava essa orientação dada à imigração no Rio Grande do Sul:

(...) a exploração dos grandes prédios rurais não encontra braços que a auxiliem; o preço do salário agrícola não guarda proporção com o resultado do trabalho; (...) o sistema de colonização atualmente seguido produz, a par de todas as suas vantagens, o inconveniente de dificultar a união do capital e do trabalho, afastando os imigrantes dos estabelecimentos já criados, e convidando-os a formarem pequenos prédios rústicos (...) [PICCOLO, Helga Iracema L. O discurso abolicionista no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, UFRGS, mimeografado, s/d, p. 9]

Resumindo as peculiaridades do escravismo no Rio Grande do Sul, transcrevemos abaixo uma longa, mas esclarecedora, citação de importante trabalho de Luiz Roberto Targa:

(...) a grande propriedade fundiária no sul não era agro-exportadora para o mercado mundial, mas de pecuária. Seu produto destinava-se ao próprio mercado brasileiro (...) não tornou necessária nem essencial a utilização da escravidão no pastoreio. No Rio Grande do Sul, não houve, desse modo, a sobreposição dessas duas instituições clássicas das plantations brasileiras: o escravismo e a grande propriedade. (...) na sociedade sul-riograndense, o escravismo havia ficado confinado principalmente ao setor charqueador (...) Enquanto firma escravista, a charqueada distinguiu-se de qualquer outra, pois não possuía produção de subsistência dentro da unidade de produção, o que a tornava vulnerável à contração dos preços do charque. Por fim, seu produto afetava o custo da reprodução da escravaria do Brasil e das camadas urbanas pobres, o que criou conflitos entre a classe dominante regional e as de outras regiões do Brasil. (...) E mais, foi crucial na diferenciação dos escravismos construídos no sul e nas plantations à identificação das classes fundamentais do escravismo agrário brasileiro: a dos senhores e a dos escravos rurais. (...) Ora, nenhuma dessas duas classes existiu no Rio Grande do Sul, desde que os senhores rurais foram pecuaristas e que a atividade pecuária se revelou não essencialmente escravista. Disso decorre que a classe dos escravos rurais também não existiu no Brasil meridional. As classes fundamentais do escravismo gaúcho foram outras: a dos proprietários e a dos escravos das charqueadas. (...) as concepções e a prática que cercaram a imigração foram fundamentalmente diversas na região do café e no Brasil meridional. Na primeira, os imigrantes vieram tomar o lugar dos escravos na produção, enquanto no sul eles foram encarregados de criar uma nova sociedade totalmente à parte da sociedade escravista e onde o trabalho escravo era legalmente interditado. (...) Em São Paulo, houve uma relação de causa e efeito entre a abolição da escravidão e a imigração, pois, num primeiro momento, a escravidão fizera fracassar a imigração. Totalmente outra foi a relação no Rio Grande do Sul, onde o desenvolvimento da imigração asfixiou o escravismo (...) na região cafeicultora, a abolição da escravidão e a substituição do trabalho escravo pelo livre tocava o próprio coração da produção e da sociedade regional, enquanto no sul ele afetava um setor entre os três que existiam: o pecuário, o colonial e o charqueador. No sul, o setor escravista da sociedade e da produção não estava no centro, mas ao lado, e, assim, ele ficou relativamente isolado com seus problemas. [TARGA. As diferenças..., idem, pp. 476-477]

ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E FORMAÇÃO DA BURGUESIA E DO PROLETARIADO GAÚCHOS

                Como a atividade produtiva historicamente predominante no Rio Grande do Sul era a pecuária – à qual se ligava o setor charqueador – se poderia pensar que a origem do capital industrial na economia gaúcha viesse daí. Realmente, a pecuária e as charqueadas possibilitaram uma relativa acumulação de capital, mas os dados empíricos demonstram que esses capitais quase não foram transferidos para as atividades industriais.

                Frente a isso, é bastante difundida a ideia de que a origem da indústria gaúcha estaria nos capitais acumulados pelos pequenos proprietários das colônias agrícolas de imigração, e na lenta transformação do artesanato, a eles ligado, em produção industrial. Segundo Sandra Pesavento, os fatos apontam em outro sentido: “No que toca à agricultura, a verdadeira acumulação não estava se realizando ao nível da pequena propriedade, que atuava com arcaísmo técnico, mas sim com o comércio, que, através de sua atividade, obtinha lucros superiores aos da exploração agrícola.” [PESAVENTO. República Velha gaúcha: Estado autoritário e economia. In: DACANAL, J. H. E GONZAGA, S. (Org.) RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 201]. E Felipe da Silva complementa:

Se é inegável a grande importância que tiveram os imigrantes no processo de industrialização do Estado (...) não é menos verdade que entre esse artesanato e a indústria de fato houve uma separação bem nítida. (...) O artesanato (...) jamais teve dinamismo suficiente para transformar-se, gradualmente, em indústria. (...) E a maior parte do artesanato (...) foi destruída pelo desenvolvimento comercial que deu aos colonos acesso a produtos importados (...) deixou espaço para que surgisse a indústria propriamente dita. (...) ao invés do artesanato ter gerado a indústria, foi o aniquilamento daquele que propiciou o surgimento desta. [DA SILVA, Felipe Rodrigues. O Surgimento da Indústria na Economia Rio-Grandense. Porto Alegre: UFRGS, datilografado, 1990, monografia de bacharelado em Ciências Econômicas, p. 33]

                Na verdade, a maioria dos pesquisadores concorda que a acumulação de capitais para a indústria no Rio Grande do Sul se deu, fundamentalmente, entre os imigrantes, mas não a partir dos pequenos agricultores ou artesãos, e sim a partir do capital comercial, principalmente dos imigrantes alemães:

Entretanto, todo este desenvolvimento da agricultura colonial alemã não veio beneficiar diretamente o pequeno proprietário, mas sim aquele que realmente acumulava capital através das atividades de abastecimento do mercado interno: o comerciante (...) o comerciante alemão foi o elemento que se destacou no mundo colonial. Lucrava sobre a produção agrícola mediante a diferença obtida pelos produtos na colônia e em Porto Alegre; lucrava com o transporte das mercadorias da colônia à capital e da capital à colônia; lucrava ainda com as operações financeiras de empréstimos e guarda de dinheiro (...) É possível observar sua marcha ascensional em termos de acumulação de capital, desde a venda rural até a constituição de grandes casas de comércio de importação e exportação (...) aplicando capital não só na indústria como em empresas de navegação, bancos, companhias de seguros, loteamentos, hotéis. [PESAVENTO. História..., idem, pp. 48-49]

                Mário Maestri, ainda que concorde com a preponderância do capital comercial na acumulação necessária ao surgimento de indústrias de grande porte no Rio Grande do Sul, também ressalta o papel do artesanato de origem familiar no surgimento de certa quantidade de pequenas e médias empresas:

O porte diferenciado das indústrias sulinas devia-se também à diversa origem dos ramos industriais. Como vimos, a grande indústria fabril nasceu do investimento de grandes capitais obtidos, sobretudo, na esfera da circulação das mercadorias, em geral por comerciantes que já controlavam parte da distribuição (...) Sua produção era vendida no mercado regional e no Brasil. Ao contrário, as pequenas e médias empresas desenvolveram-se a partir do crescimento de atividades artesanais e familiares, pela acumulação de capitais próprios ou de pequenos empréstimos. Essa produção cresceu (...) no contexto de forte exploração da mão-de-obra (...) de origem rural.” [MAESTRI, Mário. Breve História..., idem, p. 275]

Ao tratar do mesmo tema, DA SILVA – abordando a questão da origem do capital dos imigrantes – procura responder se o mesmo originou-se de uma acumulação local ou prévia:

(...) as populações que aqui aportavam não deveriam ser formadas, em grande parte, por integrantes da pequena burguesia ou outras camadas intermediárias, e sim por ex-camponeses expropriados de suas terras ou por operários mal empregados ou desempregados (...) não poderiam ter trazido para o Rio Grande qualquer capital mais significativo. Entretanto, em alguns casos, aqui chegavam imigrantes detentores de um capital previamente acumulado. O “burguês” imigrante é identificável facilmente quando o tempo que decorre entre a sua chegada e o início de sua atividade empresarial é pequeno (...) Enquadrava-se nesta situação J. Becker, que chegou no Rio Grande do Sul em 1854 e já em 1856 iniciava sua fundição em Porto Alegre; de L. Hädrich, que também gastou somente dois anos entre sua chegada e o estabelecimento de uma fábrica de máquinas em Novo Hamburgo; de E. Neugebauer que se estabeleceu com uma fábrica de doces em Porto Alegre, em 1891, e ainda de Emerich Berta, J. Wallig e Mernak, na metalurgia e mecânica, e de Kessler e Teichmann na indústria de chapéus. Estes e alguns outros exemplos, contudo, não constituíam a maioria da industrialização gaúcha, não podendo ser considerados típicos no processo de acumulação do capital industrial no Rio Grande do Sul. [DA SILVA. Op. Cit., pp. 56-57]

                Mas, o imigrante não forneceu somente o capital inicial para a industrialização gaúcha. Foi, ainda, a origem da mão-de-obra livre para essas indústrias De fato, com o passar dos anos, e com a crescente subdivisão da propriedade colonial, esta começou a liberar crescentes excedentes populacionais, que não tinham mais como ser absorvidos no trabalho agrícola. Serão, portanto, esses filhos de imigrantes, com certa qualificação técnica, que irão formar boa parte do nascente proletariado gaúcho: A pequena propriedade propiciou o surgimento de um dos mais importantes requisitos para a industrialização, a mão-de-obra assalariada e de certa qualificação, em bases capitalistas. (...) Tanto o escravo quanto os peões, se eram pouco adaptáveis até mesmo no trabalho fabril, tanto mais eram distanciados de qualquer técnica de produção manufatureira. Somente o imigrante possuía conhecimento de ‘como fazer’ (...)” [DA SILVA. Op. Cit., pp. 40, 57]

Da mesma forma, não pode ser desprezado o papel desempenhado pelos pequenos proprietários coloniais na dinamização da incipiente industrialização, através da criação de um próspero mercado para os seus produtos:

Na consideração do mercado interno gaúcho, há um elemento que se destaca, não só por seu caráter específico, como também pelo papel que desempenhou em sua dinamicidade: a imigração alemã e italiana. Formando áreas de produção agrícola que tinham como unidade produtiva a pequena propriedade, ela marcou profundamente a formação e a potencialidade do mercado gaúcho, dotando-o de uma parcela maior de população com médio poder aquisitivo. O imigrante possuía um poder de compra bem maior do que o daqueles que, radicados em outras regiões do País, se integraram à massa assalariada do campo e da cidade. [REICHEL, Heloísa Jochims. A industrialização no Rio Grande do Sul na República Velha. In: DACANAL e GONZAGA. Op. Cit., p. 263]

Por fim, a partir da década de 40, as colônias alemãs já haviam ultrapassado a fase da agricultura de subsistência e começaram a fornecer produtos alimentícios para o mercado regional, especialmente Porto Alegre, garantindo o abastecimento da crescente população urbana. Assim, “a economia colonial imigrante estabeleceu formas orgânicas de vinculação com a indústria nascente no que diz respeita à formação do capital, à liberação de força-trabalho, ao fornecimento de matéria-prima, à aquisição de tecnologia e à formação de um mercado consumidor para produtos manufaturados.” [PESAVENTO, Sandra. Os industriais da república. Porto Alegre: IEL, 1991, p. 51]. A partir dos anos 70, essa agricultura comercial já será capaz de abastecer em inúmeros produtos o mercado interno nacional, dinamizado pelo café.

Todas essas particularidades influenciaram de uma forma significativa a transição para uma economia capitalista no Rio Grande do Sul, onde:

(...) não foi dos charqueadores que surgiram os empresários industriais, nem dos escravos que surgiram os operários (…) diferença fundamental em relação a São Paulo. Nesta última região, pelo menos alguns dos capitalistas industriais importantes que surgiram após a abolição da escravidão provinham da classe dos cafeicultores. Outro foi o caso no Rio Grande do Sul, onde essa fração da classe dominante regional [escravista] não forneceu quadros de capitalistas industriais e onde praticamente todos os grupos industriais que se formaram tiveram origem nas famílias de imigrantes – não obrigatoriamente, é claro, nas dos pequenos proprietários – assim como foram as populações de imigrantes que forneceram grande parte dos contingentes que formaram a classe trabalhadora sul-riograndense. [TARGA. As diferenças..., idem, p. 464]

CONCLUSÃO

O acima exposto mostra que não existiu no Rio Grande do Sul o sistema de plantations (latifúndios escravistas), tão característico do Nordeste (açúcar, algodão, cacau, etc.) e do Sudeste (café). Da mesma forma, não tivemos uma economia de mineração intensiva como Minas Gerais (ouro, diamantes), que utilizasse um grande número de escravos. Assim, ainda que tenha havido a escravidão, o seu peso econômico se dava fundamentalmente na produção do charque, que não era o “berço” da classe dirigente gaúcha. Na pecuária – atividade econômica e socialmente dominante – o trabalho escravo era pouco relevante. Já na economia colonial camponesa, era proibido utilizar escravos, ainda que isso ocorresse em pequena escala. O Rio Grande do Sul também foi o “laboratório” para a implantação no Brasil de um modelo agrícola alternativo ao escravismo, tendo por base a pequena propriedade de imigrantes europeus, inicialmente açorianos, alemães e italianos. O que acabou gerando, ao lado do latifúndio pastoril, uma forte pequena-burguesia rural, mais dinâmica e progressista.

Outra característica peculiar da economia do Rio Grande do Sul é ter estado desde o seu início vinculada ao mercado interno – fornecendo muares, couro, produtos agrícolas e charque para a alimentação da escravaria – e não à exportação, como a maioria dos demais estados, cujas economias estavam voltadas à monocultura exportadora (açúcar, algodão, cacau, café, etc.) Isso possibilitou às classes dominantes gaúchas um olhar mais “nacional” do que o das oligarquias ligadas à monocultura escravista exportadora, subservientes e dependentes das potências coloniais.

Além dessas singularidades da formação econômico-social sul-riograndense, é preciso agregar o fato do Rio Grande do Sul ter sido, durante muito tempo, a principal “fronteira viva” do país, onde – em permanente conflito com espanhóis e “castellanos” – os limites do país foram definidos “a ponta de lança e a pata de cavalo”. Da mesma forma, não podemos esquecer a significativa influência das idéias republicanas, devido aos países limítrofes. Certamente, esse conjunto de particularidades tem muito a ver com as características do povo gaúcho e com o papel que o Rio Grande do Sul teve em diversos episódios da história brasileira, como a Guerra dos Farrapos – que entre 1835 e 1845 enfrentou o todo poderoso Império centralizador e escravocrata e lutou pela República –; a Coluna Prestes (1924-1927); a Revolução de 1930; e o Movimento da Legalidade (1961), entre outros.

                Sem pretender ter esgotado o assunto, procurei indicar alguns elementos para uma melhor compreensão da formação econômico-social do Rio Grande do Sul e da maneira de ser do povo gaúcho.