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   Porto Alegre, sexta-feira, 29 de março de 2024

   
As transformações socialistas na RPD da Coréia

Raul K. M. Carrion

Tive a oportunidade, em julho de 2014, de visitar durante uma semana a República Popular Democrática da Coreia. Na ocasião, cumpri uma intensa agenda, realizando mais de 40 atividades em distintas regiões do país, incluindo visitas a centros de atenção à saúde; centros educacionais; equipamentos culturais, esportivos e de lazer; empreendimentos fabris e agrícolas; modernas áreas residenciais; museus, monumentos e sítios históricos; grandes obras, como o Complexo Hidráulico do Mar do Oeste; a Linha Demarcatória do Armistício, em Panmunjon; etc.

Pude, também, manter conversações com o Embaixador brasileiro na RPD da Coreia, Roberto Colin, e com distintas representações governamentais, além de ter acesso a ampla informação e bibliografia sobre as transformações em andamento no país.

Constatei, então, a enorme distância entre a realidade e a imagem que é difundida pelos monopólios midiáticos ocidentais em relação à RPDC, apresentando-a como um país retrógrado, belicista e de famintos, a ser salvo pelas “pacíficas”, “nada discriminadoras” e “benevolentes” “democracias” ocidentais, lideradas nada mais, nada menos que pelos EUA de Donald Trump...

Ao retornar ao Brasil, apresentei à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul um relatório detalhado sobre essa viagem, acompanhado de um estudo histórico sobre a Coreia. É com base nessa separata que apresento este texto sobre as profundas transformações ocorridas na Coreia nas últimas décadas.

OS PRIMÓRDIOS

Os primeiros sinais de humanídeos na península coreana datam do paleolítico inferior, há um milhão de anos atrás. Já os primeiros indícios humanos (artefatos, uso do fogo, etc.), datam de 300.000 anos AC.

Seus descendentes ingressaram na idade do bronze na segunda metade do quarto milênio AC, tendo criado a Civilização Taedonggang. Surgiu, então, o primeiro Estado da nação coreana – conhecido como Joson Antigo e fundado pelo Rei Tangun. Civilização que irá durar cerca de três mil anos, até 108 aC.

Em 277 AC, emergiu o primeiro Estado Feudal da Coréia, que rapidamente se expandiu, submetendo progressivamente os demais reinos. No início do século 5º DC, o Estado de Koguryo já dominava um território de 2.400 km de leste a oeste e de 2.000 km de norte a sul. Sua capital era Pyongyang.

Em 918, o Rei Wangkon estabeleceu a dinastia Koryo, tendo por capital a atual cidade de Kaesong, unificando pela primeira vez a nação coreana. A dinastia Koryo durou até 1392, quando surgiu a dinastia feudal Joson, o último Estado feudal da nação coreana, que no início do século XX foi dominado pelos japoneses.

A TRANSFORMAÇÃO DA COREIA EM COLÔNIA JAPONESA

No final do século XIX – quando ocorreu a expansão imperialista em todo o mundo – a Coréia sofreu sua primeira agressão em 1866, quando o navio de guerra norte-americano General Sherman invadiu as águas territoriais do país e subiu o Rio Taedong até Pyongyang, mas foi afundado e incendiado pelos coreanos. Após, outros barcos de guerra – da França, Inglaterra e Japão – foram repelidos pelo povo coreano.

Porém, em 1876, o Japão conseguiu impor ao decadente Estado feudal coreano o desigual Tratado de Kanghwado, reduzindo a Coréia a uma semi-colônia japonesa. As guerras sino-japonesa de 1904-1905 e russo-japonesa de 1904-1905 – quando a China e a Rússia foram derrotadas pelo Império Japonês – criaram as condições para o total domínio nipônico sobre a Coréia.

Os Estados Unidos apoiaram o Japão em sua ocupação da Coréia, em troca do apoio japonês à ocupação norte-americana das Filipinas (Pacto Secreto Taft-Katsura). O Tratado de Ulsa – imposto pela força das armas em 1905 – e o Tratado Coreano-Japonês de Anexação, em 1910, consumaram a transformação da Coréia em colônia japonesa. A partir de então – usando da maior brutalidade – os japoneses desenvolvem uma política de colonização, apoderando-se das terras, indústrias e riquezas coreanas e explorando duramente o país e o seu povo. Em 1925 já eram 425 mil japoneses instalados na Coréia. Em 1942, 80% das florestas e 25% das terras cultivadas estavam em suas mãos.

A RESISTÊNCIA CONTRA A DOMINAÇÃO JAPONESA

Os coreanos nunca aceitaram o domínio japonês e em 1908 o movimento “voluntários anti-japoneses” chegou a abarcar 70 mil guerrilheiros, mas acabou derrotado em 1910. Ocorreram diversas outras rebeliões, mas igualmente foram esmagadas pelos japoneses, com grande violência.

Em 1917, Kim Hyong Jik – pai do futuro Presidente da Coréia, Kim Il Sung – criou a organização revolucionaria Associação Nacional Coreana, para lutar contra a dominação japonesa, mas acabou sendo preso. Em 1919, no lugar dos “voluntários anti-japoneses”, que haviam sido derrotados, surgiu o Movimento do Exército Independentista, que retomou a resistência armada aos japoneses. Em 1925, foi formado o Partido Comunista da Coréia, que não foi reconhecido pela Internacional Comunista e se desfez em 1928.

Em outubro de 1926, Kim Il Sung fundou a União para Derrotar o Imperialismo (UDI), integrada por jovens comunistas, tendo por objetivos derrotar o imperialismo japonês, alcançar a independência da Coréia e construir o socialismo e o comunismo. Em 3 de julho de 1930, Kim Il Sung criou a Associação de Camaradas Konsol, formada por jovens comunistas, que viria a ser o embrião do futuro Partido do Trabalho da Coréia.

Em abril de 1932, foi iniciada a Guerrilha Popular Anti-japonesa, que logo se estendeu para diversas regiões, incluindo a Manchúria. Em março de 1934, ela foi transformada em Exército Revolucionário Popular da Coréia. Nas áreas liberadas, foram organizados governos revolucionários populares, unindo todas as forças antijaponesas.

Em maio de 1936, realizou-se a conferência constituinte da Associação para a Restauração da Pátria (ARP) – primeira organização permanente da frente única nacional anti-japonesa na Coréia – e foi aprovado o seu Programa de Dez Pontos. Kim Il Sun foi eleito seu presidente.

No final da década de 30, os japoneses atacaram duramente o ERPC, que correu o risco de ser aniquilado. Em fins de 1938, sob o comando de Kim Il Sung, o ERPC empreendeu a chamada Marcha Penosa, em pleno inverno, para fugir ao cerco. Após mais de 100 dias de marcha, o grosso da guerrilha conseguiu chegar, em março de 1939, à região fronteiriça de Beidadingzi, escapando ao cerco.

A DERROTA DO IMPERIALISMO JAPONÊS E A OCUPAÇÃO DO SUL PELOS EUA

6 de setembro de 1945: o povo coreano celebra a proclamação da República Popular da Coréia.

Ao final da Segunda Grande Guerra, após a rendição alemã (8 de maio de 1945), a luta prosseguiu contra o Japão, que continuava dominando inúmeros países na região do Pacífico e ocupando a Coréia. Em 8 de agosto, o Exército Revolucionário Popular da Coréia (ERPC), sob a direção de Kim Il Sung, iniciou sua ofensiva contra os japoneses, em todo o país. Em 9 de agosto, a URSS declarou guerra ao Japão e atacou as tropas japonesas na Manchúria e na Coréia. Nas principais cidades e regiões, a população sublevou-se. A situação tornou-se insustentável para os japoneses.

Sem qualquer necessidade, pois o Japão já negociava a rendição, os Estados Unidos lançaram duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, matando mais de 300 mil pessoas, quase todos civis. Em 15 de agosto, o Japão assinou a sua rendição. O ERPC e demais lideranças patrióticas organizaram Comitês Populares em toda a Coréia que, reunidos em Seul, proclamaram em 6 de setembro de 1945 a República Popular da Coréia.

Desrespeitando a autodeterminação do povo coreano, no dia 8 de setembro, os Estados Unidos ocuparam o Sul da Coréia com suas tropas, até o paralelo 38, inclusive Seul, dissolveram os Comitês Populares e prenderam em massa os seus membros. Segundo o historiador norte-americano Bruce Comings:

A informação interna estadunidense acerca de prisioneiros políticos sob a ocupação dos EEUU dava 21.458 pessoas na prisão em 1947, e 17.000 em agosto de 1945; dois anos depois, 30.000 supostos comunistas estavam nos cárceres de Rhee e os processos dos suspeitos de comunismo constituíam 80% de todos os casos judiciais. Uma série de ‘Campos de Tutela’ alojavam esses prisioneiros adicionais (...) a embaixada dos EEUU estimava que 70.000 pessoas encontravam-se nesses campos.[1]

O 1º comunicado do General Douglas MacArthur, comandante das tropas norte-americanas, não deixou dúvidas quanto ao seu caráter de ocupação militar:

como comandante em chefe das Forças Armadas dos Estados Unidos no Pacífico, exerço através das mesmas o controle militar sobre o Sul da Coréia, desde o paralelo 38, e sobre a sua população. (...) Devem ser respeitadas todas as minhas ordens e as ditadas sob a minha autoridade. Os atos de resistência às forças de ocupação ou qualquer ação que possa obstaculizar a tranqüilidade pública e a segurança serão castigadas com energia. Durante o meu controle militar, o inglês será o idioma oficial.[2]

Em seu informe sobre os três primeiros meses de ocupação, o General Hodge afirmou: “[Existe] um crescente ressentimento em relação a todos os estadunidenses na área (...) cada dia que passa em meio a essa situação torna a nossa posição na Coréia mais insustentável e diminui nossa decrescente popularidade (...) a palavra pró-estadunidense é associada a pró-japonês, traidor nacional e colaboracionista.[3]

Após negarem ao povo coreano o direito à autodeterminação, os militares estadunidenses – diante das dificuldades em formar um governo pró-americano no Sul da Coréia – foram buscar nos EUA o Sr. Syngman Rhee (um septuagenário que lá vivia há 37 anos) e o impuseram, no início de 1946, como presidente de um fictício Conselho Democrático Representativo, que tinha como principal sustentáculo os antigos colaboracionistas pró-japoneses. Poucos tempo depois, uma série de greves e passeatas – pleiteando melhores salários e direitos trabalhistas – tomaram conta da cidade de Seul. Na manifestação a polícia foi autorizada a atirar na multidão, matando 41 grevistas. Logo depois, centenas de grevistas foram presos, torturados e condenados à pena de morte.

A ocupação norte-americana e seu apoio aos segmentos que haviam colaborado com a ocupação japonesa geraram uma grande reação do povo sul-coreano: “Os torturadores e os integrantes de esquadrões da morte, que até bem pouco haviam sido um dos braços do domínio estrangeiro, estavam de volta, circulando pelas ruas com armamento norte-americano, radiotransmissores e jipes.[4]

No outono de 1946, uma rebelião massiva se espalhou por quatro províncias. Fortemente reprimidos, os rebeldes iniciaram uma guerrilha que se manteve ativa até 1949. Em outubro de 1948, ocorreu uma importante rebelião no porto de Yosu, sufocada ao custo de mais de 2.000 mortos e 3.000 presos. Na ilha de Cheju a resistência foi calada depois de terem sido mortos 60 mil pessoas, terem fugido para o Japão outras 40 mil e terem sido destruídas cerca de 40 mil casas. Das 400 aldeias existentes, só restaram 170.

A RECONSTRUÇÃO NA COREIA DO NORTE

Enquanto isso, no Norte as tropas russas respeitaram o governo surgido dos Comitês Populares, criados logo após a vitória contra os japoneses.

Em 10 de outubro de 1945, Kim Il Sung fundou o Partido Comunista da Coréia do Norte, que em 1946 uniu-se ao Partido Neodemocrático da Coréia, constituindo o Partido do Trabalho da Coréia.

Em 8 de fevereiro de 1946, tendo por base os Comitês Populares formados em todo o país, foi constituído o Comitê Popular Provisório da Coréia do Norte – com a tarefa de levar adiante a revolução democrática, anti-imperialista e anti-feudal – o qual elegeu Kim Il Sung como seu presidente.

Em 5 de março – sob o lema “a terra pertence aos camponeses que a trabalham” – foi editada a Lei da Reforma Agrária na Coréia do Norte, que confiscou as terras de japoneses, pró-japoneses, traidores da nação e latifundiários, e as distribuiu para 725 mil famílias camponesas sem terra ou com pouca terra. O regime permitiu aos ex-latifundiários que desejassem trabalhar a terra, se mudarem para províncias vizinhas, onde lhes era concedida a mesma quantidade de terra que aos demais agricultores. Os camponeses obtiveram terras que podiam ser transmitidas aos seus filhos, mas não podiam ser compradas ou vendidas no mercado.

Em 24 de junho foi promulgada a “Lei do Trabalho para os operários e empregados da Coréia do Norte”, estabelecendo a jornada de 8 horas e a proibição do trabalho às crianças. No dia 30 de julho, foi assinada a “Lei da igualdade de direitos do homem e da mulher na Coréia do Norte”.

Seguiram-se diversas outras medidas para democratizar as esferas judicial, fiscal, cultural e educacional. Foi estabelecido o ensino gratuito e obrigatório e deflagrada uma grande campanha de alfabetização que criou mais de 16 mil escolas para adultos, só em 1946. No início de 1949, mais de 2,3 milhões de coreanos haviam sido alfabetizados e o analfabetismo foi definitivamente erradicado no país.

Em 10 de agosto de 1946, foi assinado o “Decreto de nacionalização de indústrias, transportes, comunicações, bancos, etc.”, pertencentes a japoneses, pró-japoneses e traidores da nação, que tiveram os seus bens expropriados, sem direito a qualquer indenização. Os capitalistas patriotas e pequenos e médios empresários tiveram os seus bens respeitados.

Em 3 de novembro de 1946, foram realizadas as primeiras eleições democráticas da Coréia, em seus 5.000 anos de existência: “Nas eleições ao Comitê Nacional Popular de novembro de 1946 o PDC obteve 351 representantes, o Chongu-dang 253 e o PTCN 1.102; foram eleitos, ainda, 1.753 representantes postulados como apartidários.[5] Em fevereiro de 1947, instalou-se o Comitê Popular da Coréia do Norte, tendo por presidente Kim Il Sung. Em 8 de fevereiro de 1948 foi constituído o Exército Popular da Coréia.

Fruto de todas essas transformações econômicas, sociais e políticas, a produção industrial aumentou 3,4 vezes entre 1946 e 1949, e a produção para o consumo cresceu 2,9 vezes. Houve um início de diversificação industrial. No ano de 1949, a indústria nacionalizada era responsável por 91% da produção e as cooperativas e o Estado controlavam 57% do comércio. Na agricultura, surgiram as primeiras cooperativas agrícolas e artesanais e um incipiente setor estatal, formado por granjas experimentais e estações de máquinas e tratores.

Segundo Cumings:

72% das crianças freqüentavam a escola primária, comparadas com os 42% de 1944; cerca de 40 mil escolas para adultos em todo o país brindavam alfabetização básica a operários e camponeses. Informação estadunidense (...) mostra a produção de lingotes de ferro subindo de 6.000 toneladas em 1947 a 166.000 em 1949, a produção de barras de aço subir de 46.000 toneladas a 97.000, (...) superior à produção japonesa de 1944 (...); a produção industrial subiu 39,6% em 1949(...). O resultado desse esforço extraordinário (...) foi que desde 1940 até meados dos anos 60 (...) Coréia do Norte cresceu de maneira muito mais rápida que o Sul (...).[6]

OS EUA IMPEDEM A REUNIFICAÇÃO E A AUTODETERMINAÇÃO DA COREIA

O povo coreano participa da primeira eleição democrática em 3 de novembro de 1946.

Apesar de ter sido acordado na Conferência de Ministros de Relações Exteriores, realizada em Moscou, em dezembro de 1945, que a URSS e os Estados Unidos trabalhariam pela criação de um governo provisório unificado e que no prazo de cinco anos se retirariam da Coréia, no dia seguinte os Estados Unidos passaram a trabalhar pela divisão definitiva do país, em um contexto de “Guerra Fria”.

Além de dissolverem pela força os Comitês Populares e reprimirem os que defendiam a reunificação da Coréia, criaram a armaram um exército de 150 mil homens no Sul, sem possuir qualquer mandato para tanto. Não satisfeitos, propuseram em setembro de 1947 que a questão da Coréia – que era um assunto a ser resolvido entre a URSS e os Estados Unidos – passasse para a alçada da ONU, sem ingerência do Conselho de Segurança (onde a URSS podia exercer o direito de veto). Moscou se opôs, mas os EUA – que naquela época manejavam as Nações Unidas ao seu bel prazer – conseguiram aprovar a proposta. Assim, foi formada a Comissão Temporária das Nações Unidas sobre a Coréia, que convocou “eleições gerais” no país, o que não foi aceito nem pela URSS, nem pelos norte-coreanos, que não permitiram que essa comissão fantoche dos Estados Unidos desenvolvesse as suas atividades no Norte da Coréia.

Em resposta às maquinações norte-americanas, foi realizada, em abril de 1948, em Pyongyang, uma Conferência conjunta de representantes de partidos políticos e organizações sociais da Coréia do Norte e do Sul – na qual compareceram 695 representantes de 56 partidos e organizações, representando mais de 10 milhões de coreanos. A própria imprensa norte-americana foi obrigada a reconhecer que “na Conferência de Pyongyang todas as organizações de direita e de esquerda estiveram representadas, com exceção de três organizações dirigidas por Syngman Rhee, Kim Song Su, etc.[7]

Desrespeitando a vontade do povo coreano, dita “comissão” organizou eleições fraudulentas no Sul, em 10 de maio de 1948. Segundo Vivian Trias, as eleições “foram vergonhosas. Os bandos terroristas assolaram a população; nas seis semanas anteriores foram cometidos quase 600 assassinatos políticos. É claro que ganhou a direita e a comissão internacional considerou o seu triunfo como legítimo e ‘democrático’. (...) A divisão ficou consagrada.[8]

Segundo Bruce Cuming, “praticamente todos os políticos e partidos políticos de expressão, à direita de Rhee, se negaram a participar nas eleições, incluindo a Kim Kyu-sik, um peculiar centrista coreano, e a Kim Ku, um homem situado, provavelmente, à direita de Syngman Rhee”.[9]

Como era de esperar, Syngman Rhee obteve ampla maioria e assumiu a presidência. Poucos dias depois, em 15 de agosto de 1948, sob os auspícios do Gal. MacArthur, foi proclamada a República da Coréia, dividindo de forma definitiva a nação. MacArthur ameaçou: “Esta barreira [o paralelo 38] deve ser derrubada e o será. Nada poderá impedir que o vosso povo logre a unidade em liberdade.”[10]

Com a posse de Syngman Rhee, chegou ao fim o governo militar de ocupação, mas não a presença militar e a tutela dos EUA sobre o governo do Sul da Coréia. Segundo Vitorino: “seguindo as orientações de Washington (...) Rhee governou a Coréia do Sul em estado de terror e perseguição. (...) Em 1949, o governo de Rhee mantinha em cárcere 36 mil prisioneiros políticos e um saldo de mortes de mais de 100 mil pessoas.[11]

O próprio Presidente Truman teve de confessar a conivência dos Estados Unidos com esses crimes: “Syngman Rhee (...) rodeou-se de homens reacionários (...) e, quando o fim do governo militar lhe deixou as mãos livres para atuar impunemente contra seus inimigos políticos, adotou métodos policialescos para impedir a liberdade de expressão. (...) Entretanto, não tínhamos outro remédio senão apoiá-lo.[12]

Relatando a evolução política da Coréia do Sul, sustentada pelos EUA, o insuspeito Mário Giordani nos diz:

Syngman Rhee foi reeleito presidente em 1952 e, novamente, em 1956, exercendo poderes ditatoriais para manter-se no governo até 1960, quando teve como sucessor o general Park Chung Hee, que assume o poder em maio de 1961, após um golpe militar. Park foi reeleito em 1967 e em 1971, mas em 1979 foi assassinado pelo chefe dos Serviços Secretos. Sobe ao poder Choi Kiu Há que é deposto pelos militares em 1980. Segue-se a presidência do General Chum Doo Hwan (1980-1988), caracterizada por repressões políticas.[13]

Como se pode ver, não é de hoje que os Estados Unidos impõem e apóiam ditaduras sem qualquer compromisso com a democracia.

SYNGMAN RHEE – O DITADOR DO SUL – ORGANIZA A INVASÃO ARMADA DO NORTE

Em resposta às eleições fraudulentas realizadas no Sul, o Norte organizou, em 25 de agosto de 1948, eleições diretas para a Assembleia Popular Suprema. Devido ao regime de terror implantado por Syngman Rhee, a única alternativa para a indicação dos representantes do Sul na Assembleia Popular foi a indicação clandestina de delegados que, reunidos em Haeju, elegeram os seus deputados. Assim, em 9 de setembro de 1948 – um mês após a criação da República da Coréia no Sul – foi constituída no Norte a República Democrática Popular da Coréia (RPDC) e Kim Il Sung foi eleito o seu Chefe de Estado.

Pouco depois, as tropas soviéticas abandonaram a Coréia em respeito à autodeterminação coreana e conclamaram os Estados Unidos a fazer o mesmo. Esses, porém, negaram-se a fazê-lo e só se retiraram da Coréia em 30 de julho de 1949, quase um ano depois. Segundo Bruce Cumings:

Os estadunidenses não podiam retirar suas tropas com tanta facilidade, pois estavam preocupados pela viabilidade do regime no Sul, por suas tendências ditatoriais e por suas intenções (declaradas a todo o momento) de marchar em direção ao Norte. Mas muito mais relevante que isso era a crescente importância que a Coréia adquiria para a política mundial estadunidense como parte de uma nova estratégia dual de contenção do comunismo e revitalização da economia industrial do Japão.[14]

Em fevereiro de 1949, falando à Assembleia Nacional, Syngman Rhee disse que se não conseguia anexar a Coréia do Norte com a ajuda da “Comissão da ONU sobre a Coréia” o “Exército de Defesa Nacional (...) deverá necessariamente marchar sobre a Coréia do Norte.[15] E, em 9 de março, seu Ministro do Interior, Yun Chi Yong, afirmou “que a República da Coréia recupere pela força a terra perdida que é a Coréia do Norte; é a única via para reunificar o Norte e o Sul da Coréia.[16]

Em resposta a essas ameaças, em junho de 1949 realizou-se em Pyongyang um encontro para constituir a “Frente Democrática pela Reunificação da Pátria” que conclamou a reunificação da Coréia pela via pacífica. A FDRP apresentou seis pontos para viabilizar essa reunificação pacífica:

1) A reunificação da Pátria deve ser realizada pelo próprio povo coreano; 2) as tropas dos EUA devem retirar-se imediatamente da Coréia do Sul; 3) A ‘Comissão da ONU sobre a Coréia’, organismo ilegal, deve retirar-se sem tardança; 4) Efetuar simultaneamente, em setembro de 1949, em todo o território da Coréia do Norte e do Sul, eleições para um órgão legislativo unificado; 5) Assegurar a legalidade e a liberdade em suas atividades aos partidos políticos e organizações sociais democráticas; 6) O órgão legislativo supremo, surgido das eleições gerais, deve adotar uma constituição e formar, sobre essa base, um governo.[17]

Em resposta, em julho de 1949, logo após a publicação do projeto de reunificação pacífica da FDRP, o Ministro da Defesa da Coréia do Sul, Sin Song Mo, ameaçou: “Nosso Exército de Defesa Nacional (...) tem a convicção e a força para ocupar completamente, não importa quando, em um dia, Pyongyang e, mesmo, Wonsan ao Norte, se a ordem for dada.[18]

AS SUCESSIVAS PROVOCAÇÕES ARMADAS SUL-COREANAS

Tropas soviéticas retiram-se da Coréia em respeito à autonomia coreana.

Durante todo ano de 1949, as incursões de tropas sul-coreanas ao território do Norte – que já ocorriam desde 1947 – recrudesceram, deixando claro que o Sul buscava a guerra. Em Kaesong, em 4 de maio, um ataque de tropas do Sul durou quatro dias, causando a morte de 400 soldados norte-coreanos e 22 sul-coreanos, além de mais de 100 civis, segundo cifras oficiais estadunidenses e sul-coreanas. Entre 21 de maio e 7 de junho, efetivos da 1ª Divisão do Exército sul-coreano, com apoio aéreo, atacaram os montes Kuksa, Unpha, Kachi e Pidulgi, ocupando-os por algum tempo, mas logo foram expulsos. Em fins de junho, atacaram o monte Unpha, tomando-o e fortificando-se ali. No dia 6 de julho, atacaram o monte Kosan, mas sem conseguir tomá-lo. Em 25 de julho, atacaram e ocuparam o monte Song-ak, mas foram expulsos.

Em julho de 1949, o General W. L. Roberts chefe do “Grupo Assessor Militar da Coréia” (GAMC) – que sucedeu o governo de ocupação dos EUA na Coréia – afirmou aos comandantes sul-coreanos Chae Pyong Doc e Kim Sok Won que “a presente invasão do Norte servirá de bom terreno de experimentação para a guerra civil iminente; o combate permitirá adquirir conhecimentos vivos através de um contato direto com o inimigo.[19]

E Kim Sok-Won, comandante das tropas sul-coreanas no paralelo 38, afirmou à CONUC que a península vivia um estado de guerra e que “devemos contar com um programa para recuperar nosso território perdido, a Coréia do Norte, atravessando a fronteira do paralelo 38, fixada em 1945”. E mesmo o historiador norte-americano Bruce Cumings reconhece que “a guerra que eclodiu em junho de 1950 produziu-se depois de uma guerra de guerrilhas e nove meses de combate ao longo do paralelo 38, durante 1949. (...) A razão pela qual a guerra não eclodiu em 1949 (...): o Sul queria uma guerra, mas o Norte não a desejava.[20]

Em 4 de agosto de 1949, diante da ocupação do Monte Unpha por tropas sul-coreanas, o Exército Popular da Coréia contra-atacou, aniquilando-as por completo. Diante desse desastre, diversos comandantes militares do Sul propuseram um ataque geral contra o Norte, o que acabou não ocorrendo. Em 23 de agosto, diversos barcos da Marinha do Sul invadiram o Rio Taedong – na Coréia do Norte – e afundaram quatro embarcações norte-coreanas de 35 a 45 toneladas. Em 18 de agosto, uma frota naval sul-coreana bombardeou Monggumpho, na província de Hwanghae, no Norte, litoral Oeste da Coréia.

Em setembro de 1949, Egon Ranshofen- Wertheimer membro da CONUC informou que “a tentação de Rhee por invadir o Norte e a pressão exercida sobre ele para fazê-lo pode, assim, tornar-se irresistível. As autoridades militares mais altas da República (...) estão exercendo uma pressão permanente sobre Rhee para que ele tome a iniciativa e cruze o paralelo.[21]

Em outubro de 1949, Syngman Rhee discursou a bordo de um navio de guerra dos EUA, ancorado em Inchon, dizendo que o Sul podia tomar Pyongyang em três dias, queixando-se de que só não fazia isso porque os Estados Unidos temiam que isso precipitasse a terceira guerra mundial. E o Ministro da Defesa, em entrevista coletiva realizada em 31 de outubro, declarou que suas tropas estavam preparadas para avançar sobre a Coréia do Norte: Se pudéssemos manejar-nos por conta própria, já (...) teríamos começado (...) Temos força suficiente para avançar e tomar Pyongyang em uns poucos dias.”[22]

Em janeiro de 1950, Preston Goodfellow, assessor de Syngman Rhee, informou ao Embaixador de Taiwan nos Estados Unidos, Wellington Koo, que “eram os sul-coreanos que estavam ansiosos por penetrar na Coréia do Norte, devido a que já se sentiam prontos, com seu exército de 100.000 homens bem treinados.[23]

Apesar de constantemente agredida, a RPDC respondia com uma ampla campanha pela reunificação pacífica da Coréia, sem ingerências estrangeiras. Para bloquear essa campanha – que contava com crescente simpatia da população do Sul –, o Congresso dos EUA aprovou em fevereiro de 1950 a “Lei de Ajuda à Coréia” que estabelecia que essa ajuda terminaria “caso seja formada na República da Coréia um governo de coalizão que inclua um ou mais membros do Partido Comunista ou do partido que atualmente controla o governo da Coréia do Norte.[24] Através dessa Lei os EUA bloquearam qualquer possibilidade de reunificação pacífica da Coréia e incentivaram o confronto.

No mês de junho, três emissários enviados pelo Norte para tratar da reunificação, foram sumariamente fuzilados. Em 18 de junho, o republicano John Foster Dulles – defensor de um confronto preventivo com a URSS, antes que esta alcançasse a paridade nuclear com os EUA – iniciou uma visita à Coréia, que teve a característica de uma “revista às tropas” e de uma verificação sobre seus preparativos guerreiros no paralelo 38. Nesse mesmo dia o Secretário da Defesa Louis Johnson e o General Bradley chegaram a Tóquio para conferenciar com o General MacArthur. Segundo informaram, para inteirarem-se de fatos “que afetam a segurança dos Estados Unidos e a paz do mundo”.[25]

Destaque-se, ainda, que em 30 de maio haviam ocorrido eleições para a Assembleia Nacional Coreana, nas quais Syngman Rhee sofrera importante derrota, tendo a oposição eleito 128 das 210 vagas no parlamento. Politicamente acuados, Rhee e os norte-americanos começaram ver na guerra com o Norte uma saída para a sua crise política.

A ECLOSÃO DA GUERRA DA COREIA

No dia 25 de junho de 1950, pela manhã teve início a “Guerra da Coréia”, que durante três anos manteve o mundo a beira de uma Terceira Guerra Mundial e causou sofrimentos indescritíveis ao povo coreano. Até hoje se discute quem deu o “primeiro tiro”. O fundamental, porém, é identificar quem impôs a divisão artificial da Coréia, quem bloqueou e bloqueia até hoje a reunificação pacífica do país e quem multiplicou entre 1947 e 1950 as provocações armadas.

Em 23 de junho, às 22h, as forças sul-coreanas iniciaram um ataque ao Monte Unpha – palco de agressão semelhante em fins de junho de 1949 –, que prosseguiu até 4h da manhã do dia 25. E, nas primeiras horas do dia 25 de junho, o 17º Regimento da Coréia do Sul atacou os norte-coreanos que defendiam o Monte Turak, em Onjin. Às 11h da manhã, os sul-coreanos divulgaram que seu 17º Regimento havia tomado a cidade de Haeju, no Norte: “O New York Times, o New York Herald-Tribune e o Washington Post informaram que em 25 de junho duas companhias do 17º Regimento haviam ocupado Haeju. O Delegado militar do Reino Unido em Tóquio telegrafou em 27 de junho que dois batalhões do 17º Regimento ocuparam Haeju”.[26]

Referindo-se a essa tão documentada ocupação de Haeju – de que a Coréia do Sul se vangloriou publicamente – o historiador norte-americano Bruce Cumings afirma que “este livro não pode excluir a possibilidade de que haja sido o Sul que tenha iniciado os combates em Ongjin, diante da perspectiva da tomada imediata de Haeju.[27]

Confirmando isso, John Gunther, biógrafo de Mac Arthur, relata em “The Ridle of MacArthur”, p. 165, que “dois importantes membros das forças de ocupação realizaram a excursão a Nikko e (...) um deles ‘foi inesperadamente chamado ao telefone’. Ao regressar, disse em voz baixa: ‘acaba de se iniciar uma grande confusão. Os coreanos do Sul atacaram a Coréia do Norte’.[28] Posteriormente, Gunther sustentaria que esta informação era errônea, baseada numa versão da Coréia do Norte...

Em resposta ao ataque sul-coreano, o Exército Popular da Coréia iniciou uma grande contra-ofensiva, que em poucos dias o levou a tomar Seul.

A ONU EMPRESTA SUA BANDEIRA À AGRESSÃO DOS EUA À COREIA

Às três horas da manhã do dia 25 de junho, tão logo se iniciaram os combates, os EUA telefonaram para o Secretário Geral da ONU, Trygve Lie, e lhe exigiram a convocação do Conselho de Segurança da ONU que – com as ausências da China Continental, excluída do Conselho de Segurança, e da URSS, que poderia vetar qualquer deliberação – reuniu-se na manhã do próprio dia 25. Baseado unicamente em informações dos EUA e da Coréia do Sul e totalmente manipulado pelos Estados Unidos, o Conselho responsabilizou a Coréia do Norte pelo ataque e exigiu que essa suspendesse os combates.

Sem autorização do Congresso, o Presidente Truman determinou a intervenção militar norte-americana (chamada de “ação policial”, para driblar a exigência constitucional), o bloqueio naval e o bombardeio da Coréia do Norte. Além disso, aproveitando o pretexto, postou uma poderosa frota naval entre a China Continental e Formosa, em apoio a Chiang Kai Check. No dia 27, o Conselho de Segurança – ao invés de tentar mediar o conflito – aprovou uma resolução dando cobertura legal ao ataque norte-americano e conclamando todos os membros das Nações Unidas a se somarem às forças intervencionistas. Mais do que isso, entregou o comando dessas tropas “da ONU” ao General MacArthur, sem estabelecer qualquer supervisão da ONU sobre suas ações.

A partir daí, os Estados Unidos, a Coréia do Sul e mais 15 nações – Inglaterra, França, Canadá, Itália, Bélgica, Holanda Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, Dinamarca, Grécia, Turquia, África do Sul, Filipinas e Colômbia – uniram-se na agressão à Coréia do Norte, contribuindo com tropas, armas, mantimentos e apoio logístico. O Brasil, fortemente pressionado para engajar-se na Guerra da Coréia, negou-se a fazê-lo, por conta da forte campanha contrária, liderada pelo Partido Comunista do Brasil.

O CONTRATAQUE AVASSALADOR DA COREIA DO NORTE

Apesar da sua inferioridade em número, em armamento e em apoio aéreo e naval, as tropas norte-coreanas – demonstrando grande capacidade estratégica e tática e alta combatividade – avançaram rapidamente, pondo em fuga tanto as tropas sul-coreanas (consideradas pelos EUA como “o melhor exército da Ásia”), quanto os até agora “invencíveis” norte-americanos.

Nesse avanço, contaram com o apoio de forças guerrilheiras do Sul da Coréia. Em três dias tomaram Seul. Logo após uma pausa para consolidarem o seu avanço, prosseguiram no dia 5 de julho em direção ao Sul, tomando Taejon. Em fins de agosto, haviam empurrado os exércitos sul-coreanos e norte-americanos até o perímetro de Pusan, libertando mais de 90% do território e 92% da população da Coréia. Nos territórios liberados foram reconstruídos os Comitês Populares que haviam sido liquidados pelos norte-americanos e foram distribuídas aos camponeses pobres as terras dos latifundiários: 43,3% das terras cultiváveis na zona liberada foram confiscadas e distribuídas gratuitamente a 1 milhão e 267 mil famílias camponesas.

No dia 9 de julho, derrotado em todas as frentes e cercado no perímetro de Pusan,

MacArthur enviou uma mensagem urgente a Matthew Ridgway, em que solicitava ao Estado Maior Conjunto ‘que considerasse se as bombas A [Atômicas] iam estar ou não à disposição do general MacArthur’ Se solicitou então ao general Charles Bolte, chefe de operações, que falasse com MacArthur acerca do uso de bombas atômicas ‘em apoio direto aos combates terrestres’; poderiam ser disponibilizadas entre 10 e 20 bombas (...) não obstante, o Estado Maior Conjunto rechaçou o uso da bomba.[29]

Em sua desabalada retirada, as tropas estadunidenses e sul-coreanas realizaram todo o tipo de massacres de civis suspeitos de serem comunistas ou de colaborarem com os norte-coreanos. Em agosto, Alan Winnington publicou no Daily Worker de Londres:

a polícia sul-coreana, sob a supervisão dos assessores do GMAC, havia massacrado 7.000 pessoas na aldeia de Yangwol, perto de Taejon, entre 2 e 6 de julho. (...) chegaram caminhões da polícia na região e fizeram com que fossem cavados seis poços, a duzentos metros um do outro. Dois dias depois, foram conduzidos ao lugar uma série de prisioneiros políticos, sendo executados (tanto através de um balaço na nuca como pela decapitação) e atirados nas fossas uns sobre os outros, ‘como sardinhas’. (...) As fontes sul-coreanas inicialmente falaram em 4.000 mortos (logo mudaram essa cifra para 7.000, alguns meses depois).[30]

Os EUA adotaram uma política de terra arrasada e de bombardeio indiscriminado das populações civis: “As forças estadunidenses começaram a queimar as aldeias suspeitas de abrigar guerrilheiros e, em alguns casos, simplesmente as queimaram, para negar às guerrilhas um possível lugar onde esconder-se.”[31] Segundo o correspondente britânico Reginald Thompson:

o imenso poder das armas modernas foi desafiado por um punhado de camponeses providos de uns poucos rifles e carabinas e de uma coragem desesperada (...) sofrendo sobre si e sobre o resto dos habitantes o espantoso horror das bombas incendiárias (...). Cada povo e aldeia no caminho da guerra eram borrados do mapa (...) eliminando cegamente gente remota e desconhecida, gerando holocaustos de morte, uma verdadeira produção em massa da morte, espalhando uma desolação abismal sobre comunidades inteiras.[32]

OS EUA REJEITAM A PROPOSTA DA URSS DE UM ACORDO DE PAZ E ELEIÇÕES GERAIS

Quando, em inícios de julho, Nehru se propôs a realizar uma mediação, o Departamento de Estado dos EUA respondeu que “o cessar fogo e o retorno dos coreanos do Norte ao paralelo 38 eram condições mínimas e irredutíveis” para a paz. Mas quando, em fins de julho, a URSS somou-se a essa iniciativa e propôs um acordo de paz e eleições gerais “tanto no Norte como no Sul, para eleger um só governo de toda a península”, os EUA se opuseram com veemência, mostrando toda sua hipocrisia.

O correspondente chefe do New York Times nas Nações Unidas deixou claras as razões disso:

A dificuldade consiste em que há muita probabilidade de que os comunistas obtenham uma grande maioria se as eleições se celebram antes que se tenha derrotado e desfeito a comunização da Coréia do Norte e antes que o programa de reconstrução da ONU haja amortecido o ressentimento do Norte e do Sul, causado pela destruição de lares feita no curso da liberação pelas forças da ONU. Nesse caso, o comunismo viria a ganhar, mediante eleições, o que não pode obter com a invasão.[33]

Ou seja, as eleições só eram bem vindas se houvesse a certeza da vitória de Syngman Rhee, aliado dos Estados Unidos.

E quando, em 28 de setembro, Inglaterra, Austrália, Canadá, Noruega e Filipinas apresentaram uma resolução prevendo eleições em ambas as zonas, um dos delegados que a elaborou afirmou que era possível que sob esse plano se criasse uma Coréia unificada comunista, em quatro ou cinco anos. As esperanças de uma vitória democrática se acredita que aumentarão se as eleições forem adiadas até que um programa de ajuda das Nações Unidas comece a reparar a destruição causada pela guerra e se possa fazer um esforço para enfrentar a influência comunista na Coréia do Norte.[34] Não pode haver uma confissão mais clara de que o regime do Norte contava com amplo apoio popular tanto no Norte como no Sul.

Aos poucos, a máquina de guerra norte-americana, apoiada por 15 nações, começou a pesar na balança:

no dia 29 [de agosto] quase 2.000 homens pertencentes à 27ª Brigada de Infantaria Inglesa chegaram a Pusan, vindos de Hong Kong. Cinco batalhões de blindados, com cerca de 69 tanques cada um, também chegaram em agosto, e no fim do mês a ONU já tinha muito mais de 500 tanques no perímetro (...). Esse número dava à ONU uma superioridade de quase 5:1 naquela área. Assim, com a superioridade no ar já garantida, a ONU estava agora em boas condições para manter suas linha e atacar quando chegasse a hora.[35]

O DESEMBARQUE DOS EUA EM INCHON E A RETIRADA NORTE-COREANA

Em 15 de setembro, enquanto a situação mantinha-se crítica em Pusan, os Estados Unidos realizaram o desembarque de 83 mil soldados estadunidenses, mais 57 mil sul-coreanos e britânicos, em Inchon, na retaguarda das tropas norte-coreanas – utilizando 261 navios e o apoio de mais de mil aviões. Isto criou um perigo mortal para as tropas norte-coreanas, que tiveram que levantar o cerco a Pusan e realizar uma rápida retirada em direção às regiões montanhosas do Norte, visando preservar as suas forças.

Sua retirada foi facilitada pela renhida batalha pela retomada de Seul, que manteve ocupadas as tropas norte-americanas e aliadas até o final de setembro, causando-lhes enormes baixas. À medida que se retiravam as tropas norte-coreanas semeavam inúmeros grupos guerrilheiros no caminho, que passaram a fustigar as tropas estadunidenses e foram decisivos no contra-ataque posterior.

Em Seul, a vingança dos novos senhores da capital foi terrível:

Idosos, gestantes e crianças cavaram valas, para nelas serem amontoados uma hora depois. (...) As mulheres correspondiam a um terço dos quatro mil camaradas Centenas delas, comunistas e colaboracionistas foram deixadas em bordéis, para serem violentadas por coreanos e soldados da ONU. Os carrascos da polícia de Syngman Rhee (...) se encarregaram da matança dos que pertenciam aos comitês populares por estes criados, aí se incluindo os dirigentes e os familiares dos dirigentes. Um levantamento oficial realizado na Coréia do Norte apontou 29 mil vítimas da vingança sulista.[36]

Nesse momento, colocou-se uma nova questão para os Estados Unidos: o seu avanço devia deter-se no paralelo 38 ou devia continuar em direção ao Norte? Apesar das advertências transmitidas por Nehru, de que os chineses não tolerariam o avanço das tropas norte-americanas além do paralelo 38, Truman – incitado por MacArthur, que tudo fazia para transformar a Guerra da Coréia em uma cruzada contra o comunismo mundial, ainda que à custa de uma conflagração nuclear – decidiu fazê-lo. Isso apesar do mandato da ONU não autorizá-lo a tanto. Ambos interpretaram a retirada norte-coreana como a ruína total do exército norte-coreano e avaliaram a ameaça chinesa como um blefe. Do alto da sua prepotência, MacArthur afirmou que os comunistas chineses “não dispõem de cobertura aérea; se tentarem a travessia com tropas terrestres vai ser a maior das carnificinas. Serão aniquilados.”[37]

Assim, os mesmos que “indignados” haviam acusado a Coréia do Norte de ter cruzado o paralelo 38 – fazendo com que o Conselho de Segurança da ONU a condenasse por isso – agora afirmavam que o paralelo 38 era uma “mera linha imaginária” e que o objetivo da ONU era a reunificação da Coréia sob o governo de Syngman Rhee. “Em outras palavras, o paralelo que cortava em duas a Coréia era um limite internacionalmente reconhecido se os cruzassem os coreanos, mas não o era se o cruzassem os estadunidenses.[38]

Para a sua expedição ao Norte, MacArthur reuniu um corpo expedicionário de mais de 300 mil norte-americanos armados até os dentes, aos quais se somavam centenas de milhares de sul-coreanos e soldados de outros 15 países aliados. Em 2 de outubro, MacArthur apresentou um ultimato à Coréia do Norte: sua única alternativa era a capitulação incondicional.

A INVASÃO DA COREIA DO NORTE PELOS EUA

Desembarque das tropas dos EUA na praia em Pusan.

Em 9 de outubro, o 8º Exército dos Estados Unidos e seus aliados cruzaram o paralelo 38, ingressando na Coréia do Norte. Ao início, encontraram forte resistência. Logo, porém, a resistência cessou, como que por milagre, e as tropas invasoras penetraram profundamente no país, ocupando em 17 de outubro Pyongyang, parcialmente abandonada. Já as tropas que haviam desembarcado em Inchon contornaram a península, em seus mais de 200 barcos, e ocuparam Wonsan, a Leste, em 25 de outubro.

O rastro de sangue e de destruição que foi sendo deixado pelas tropas norte-americanas pode ser aquilatado pela ordem expedida pelo General Walker, comandante do 8º Exército, ao iniciar o seu avanço: “Os soldados das forças das Nações Unidas não deixem tremer suas mãos ainda quando diante deles apareçam crianças e velhos. Matem-os! Fazendo isso vocês estarão salvando-se de uma catástrofe e cumprindo o seu dever como soldados das forças das Nações Unidas.

Em Pyongyang, as atrocidades contra civis, crianças, mulheres e idosos ultrapassaram todos os limites, sendo que as autoridades sul-coreanas informaram que já haviam detido 55.909 “malignos colaboracionistas vermelhos e traidores”, logo assassinados. Mas, as forças dos EUA e da ONU não eram alheias e essas atrocidades. Tanto que o Guerrilla Operations Outline, editado pela 8240ª Unidade Armada (United Nations Partisan Force), em seu parágrafo 18, “Assassination”, determinava:

Os principais alvos de assassinato são líderes comunistas coreanos. Líderes comunistas ou do Partido dos Trabalhadores norte-coreano que não cooperam com as nossas forças armadas são mortos. A morte dos líderes comunistas por ordem de importância reduz a ambição dos subordinados. Têm prioridade as táticas terroristas que chamem atenção para o alto índice de mortalidade das lideranças inimigas.[39]

MacArthur anunciou “triunfos espetaculares e prometeu aos soldados que no Natal já estariam em casa. O Comando Supremo das Potências Aliadas declarou que a guerra havia acabado. O New York Times informou que o conflito estava chegando ao seu final e todos falavam de uma “derrota acachapante da Coréia do Norte”.

A realidade, porém era outra. Conforme comentou um oficial do Exército Popular da Coréia:

É possível pensar que ter seguido todo o caminho até o perímetro de Pusan, para logo retirar-se completamente até o Rio Yalu constitua uma derrota total. Mas não é assim. Nós retrocedemos porque sabíamos que as tropas da ONU nos seguiriam até bem ao Norte, estendendo e enfraquecendo suas linhas por esta vasta região. Chegou, então, o momento de que envolvamos essas tropas e as aniquilemos.[40]

Como se viu posteriormente, as tropas da ONU passariam a ser atacadas tanto pela frente, quanto pela retaguarda, onde haviam sido deixadas tropas com o objetivo de envolvê-las. Simultaneamente “voluntários” chineses começaram a ingressar na Coréia, cruzando à noite o Rio Yalu e burlando a vigilância norte-americana. Logo, essas forças se uniram nas montanhas às tropas norte-coreanas reagrupadas, preparando o contra-ataque.

Embriagados pelo avanço fácil, os estadunidenses nada perceberam:

Em 22 de outubro, os assessores do GMAC informaram que no Norte só existiam focos isolados de resistência; o EPC já não era capaz de “uma defesa organizada”. Em um lapso de uns poucos dias, porém, “tropas coreanas frescas e com equipamento novo” golpearam duramente as linhas de frente da ONU, contando com tanques e apoio aéreo; as unidades do ERdC recuaram, em total confusão. Em 26 de outubro, unidades combinadas chino-coreanas baixaram com estrondo desde as montanha de Unsan (...) golpeando seriamente as forças estadunidenses; esse mesmo dia, os ataques do EPC destruíram o 2º Corpo de Exército da ERdC, debilitando assim o flanco direito do 8º Corpo de Exército. (...) esses ataques geraram o “completo colapso e a desintegração” do 2º Corpo.[41]

Mas, logo o inimigo sumiu e a calmaria voltou aos campos de batalha.

No início de novembro, os EUA iniciaram o bombardeio das pontes sobre o Rio Yalu, na fronteira com a China, na tentativa de impedir a infiltração e tropas, armamentos e mantimentos para a Coréia do Norte.

A DEMOLIDORA CONTRAOFENSIVA CHINO-COREANA

Voluntários chineses após cruzarem o Rio Yalu.

Em 16 de novembro, o comandante das forças chinesas “voluntárias”, Pen Te-huai, difundiu a notícia que suas forças, atemorizadas, iriam retirar-se. Presunçoso, MacArthur lançou, em 25 de novembro, a ofensiva “Home by Christmas” (Em casa no Natal!), por ele considerada o golpe de misericórdia contra os norte-coreanos.

A ofensiva de duas colunas – uma pelo Leste e outra pelo Oeste, “para cercar e aniquilar o inimigo” – progrediu sem dificuldades durante três dias, mas a partir do dia 27, as “tropas da ONU” passaram a sofrer terríveis ataques que aniquilaram grandes contingentes de tropas. As forças estadunidenses foram perseguidas desde a represa de Changjin, o 2º Corpo do ERdaC colapsou novamente e iniciou-se uma retirada geral à custa de enormes perdas: “As duas alas dos exércitos das Nações Unidas foram isoladas uma da outra (...) havia começado a autêntica sangria e a destruição. As dizimadas forças das Nações Unidas enquanto se deslocavam para o Sul (...) realizaram uma retirada de ‘terra queimada’ deixando a milhões de coreanos sem lar e famintos.[42]

Enquanto isso, por todos os lados e pela retaguarda, fortes forças guerrilheiras sangravam os exércitos aliados em retirada: “em 6 de dezembro, as forças comunistas tomaram Pyongyang e no dia seguinte a frente aliada estava em seu ponto mais setentrional, a somente 32 quilômetros ao norte do paralelo. A ofensiva combinada chino-coreana limpou a Coréia do Norte de forças inimigas em pouco mais de duas semanas.[43] No dia 15 de dezembro, as “tropas da ONU” cruzaram de volta o paralelo 38 e continuaram em desabalada carreira para o sul.

Em retaliação à derrota nos campos de batalha, a força aérea estadunidense

bombardeou Pyongyang, entre 14 e 15 de dezembro, com 700 bombas de 500 libras, caças Mustang arrojando napalm e 175 toneladas de bombas de demolição de ação retardada, que caem dando um golpe seco e logo explodem em momentos estranhos, quando as pessoas tentam escapar da morte sob o fogo do napalm. Ridgway ordenou o bombardeio de Pyongyang ‘com o objetivo de queimar a cidade até os cimentos com bombas incendiárias’.[44]

A cidade foi totalmente destruída.

Na noite do Ano Novo, as tropas chino-coreanas cruzaram o Paralelo 38 e avançaram rapidamente 15 quilômetros, causando pesadas perdas aos EUA e seus aliados:

O VIII Exército, com seu equipamento pesado, viu-se praticamente barrado pelas pontes de Pukhan. Para Washington, os cem mil norte-americanos cercados – um terço das forças – possivelmente transformariam o horror em um ato de desespero. (...) Às três horas, ordenou a retirada total e a evacuação de Seul (...) Na tarde seguinte [4 de janeiro] duas divisões dos Voluntários do Povo e a 1ª Divisão norte-coreana entraram na cidade.(...) Com isso se encerrava a terceira fase da ofensiva, que forçara as tropas norte-americanas da ONU a recuar 120 quilômetros na direção sul.[45]

Em janeiro, os chineses, buscando de forma evidente limitar a sua ação, permitiram que a ofensiva decrescesse.[46]

A mesma tática de “terra queimada” foi aplicada contra todas as cidades e centenas de aldeias. Em 18 de janeiro, ao voar sobre a região de Tanyang, o General Barr constatou:

a fumaça das aldeias e as choças em chamas enchem os vales (...) não se pode entender porque as tropas dos EEUU queimam as moradias quando o inimigo não está presente (...) os incêndios sistemáticos que se aplicam aos pobres camponeses quando o inimigo não está ali, vão contra o abastecimento em grãos para os próprios soldados estadunidenses. Dadas as casas em chamas, estimamos uma cifra de 8.000 refugiados e esperamos mais. Os refugiados são em sua maioria os velhos, os aleijados e as crianças. E George Barret, do New York Times, ao visitar uma aldeia atacada, relatou: “Os habitantes ao longo da aldeia e nos campos circundantes foram atingidos e assassinados pelo napalm, conservando as posturas exatas que tinham quando se produziu o ataque incendiário – um homem a ponto de montar sua bicicleta, 50 meninos e meninas jogando em um orfanato, uma dona de casa surpreendentemente sem ferimentos, tendo nas mãos uma página enrugada de um catálogo da Sears-Roebuck.[47]

Apesar de seus métodos bárbaros, os norte-americanos sofreram uma humilhante derrota:

VIII Exército desfez-se ao longo do caminho. Até mesmo as unidades que não sofriam ameaça abandonaram seus equipamentos e fugiram, tentando evitar um cerco. (...) Desde a derrota da França, em maio de 1940, não se tinha conhecimento de tamanho fracasso. A incrível visão de todo um exército norte-americano abandonando armas e feridos no campo de batalha, para salvar a própria pele traduzia o ardente desejo de deixar o país pela via mais rápida. (...) Em dez dias o VIII Exército recuou 180 quilômetros. (...) No dia 15 de dezembro, atravessaram o paralelo 18 em direção ao sul. Em 7 de janeiro, (...) o cabo James Cardinal (...) escreveu a seus pais, em Nova York (...): “Está parecendo o princípio do fim. Os chineses meteram o pé no traseiro do exército dos EUA, e eu penso que vamos cair fora. (...) pensem no fato de que todo soldado aqui está sentindo o mesmo”.[48]

Ressaltando o papel – tantas vezes ignorado – dos norte-coreanos nessa contra-ofensiva, Cumings comenta:

o efeito de shock que causou a intervenção chinesa foi o elemento decisivo no desmantelamento do contra-ataque estadunidense na Coréia do Norte. Mas a contribuição coreana a esse resultado também foi importante, tanto na estratégia como no poder militar e é usualmente subestimada na literatura sobre o tema. (...) MacArthur (...) não só ignorou a palpável ameaça chinesa; foi, ainda, amplamente superado como estrategista pelos generais do EPC.[49]

DERROTADOS, OS EUA AMEAÇAM COM A GUERRA NUCLEAR

Vista geral da cidade queimada de Taejon em 30 de setembro de 1950, vítima da tática de "terra queimada" aplicada pelas tropas dos EUA.

Em fins de 1950, o pânico tomou conta das altas esferas do governo norte-americano, que passou a trabalhar com a hipótese de utilizar o seu arsenal nuclear, mesmo que ao custo da eclosão de uma terceira guerra mundial. Em 30 de novembro, em coletiva de imprensa amplamente divulgada, o Presidente Truman, traumatizado pelas perdas diárias de suas tropas – 11 mil homens naquele dia e no dia seguinte –, afirmou que os EUA estavam dispostos a utilizar qualquer arma do seu arsenal, em uma alusão explícita ao seu arsenal nuclear. Em dezembro as perdas norte-americanas se mantiveram e no dia 3 o General Bradley cogitou da evacuação de suas tropas da Coréia.

No dia 9 de dezembro, MacArthur solicitou 26 bombas atômicas para serem usadas na Coréia. Na noite de Natal, Mac Arthur enviou a Washington uma lista contendo 24 alvos nucleares, entre os quais Xangai, então com três milhões de habitantes. Em entrevista publicada posteriormente, MacArthur afirmou que tinha um plano para ganhar a guerra em dez dias: “teria lançado entre 30 e 50 bombas atômicas (...) ao redor do pescoço da Manchúria” e “espalharia detrás de nós – desde o Mar do Japão até o Mar Amarelo – um cinturão de cobalto radioativo, com uma vida ativa entre 60 e 120 anos.” Diga-se, de passagem, que o cobalto 60 tem uma radioatividade 320 vezes maior que o rádio.

Segundo Bruce Cumings, “a crise de dezembro levou também à utilização, ou à ameaça de utilização, do que Washington denominava como ‘armas de destruição massiva’: atômicas, químicas e biológicas.[50] Em abril de 1951, Leavenworth escreveu na Revista Militar, órgão do Comando do Exército Norte-americano que “os micróbios devem ser cultivados e é necessário possuir grandes quantidades dos mesmos, prontas a serem utilizadas (...) a enfermidade produzida deve ser a mais difícil possível de diagnosticar, deve ser difícil de determinar-se a origem (...) e o gérmen não deve ser suscetível de nenhuma terapêutica química especial”.

Em setembro do mesmo ano, o U.S. News and World Report informou que “novas armas serão utilizadas. (...) fala-se no Congresso de que novas armas não atômicas, de forma ‘fantástica’ estariam disponíveis para serem utilizadas na Coréia.” Em seguida surgiram as denúncias do uso de armas químicas e bacteriológicas pelos norte-americanos contra a população-coreana:

foram coletadas centenas de provas do emprego de armas microbianas pelos americanos na Coréia, e muitas delas pela Comissão Internacional de Juristas Democratas (...) desde o paralelo 38 até quase o Rio Yalu, os americanos lançaram micróbios de terríveis moléstias como a peste, o cólera, o tifo, a encefalite, etc. (...) A guerra química também foi utilizada pelos agressores ianques. (...) A Comissão de Juristas examinou os resultados da autópsia das vítimas.[51]

Em 11 de abril, MacArthur foi demitido por divergências com Truman, sendo substituído pelo General Ridgway. Os primeiros dias de abril de 1951 foram os dias em que os Estados Unidos estiveram mais perto de utilizar armas atômicas; foram paradoxalmente, os dias em que Truman destituiu MacArthur. Ridgway solicitou, em maio de 1951, 38 bombas atômicas, mas o seu pedido não foi acatado pelo Alto Comando, em parte por pressão dos aliados europeus, que temiam uma retaliação nuclear soviética na Europa.

Truman chegou a autorizar um ataque atômico, em determinadas circunstâncias:

em fins de maio já estavam operativas as plataformas de lançamento da bomba atômica dispostas na base aérea de Cadena, em Okinawa; as bombas foram levadas para lá desmontadas, sendo armadas na base – faltando-lhes somente o núcleo atômico vital. Em 5 de abril, o EMC [Estado Maior Conjunto] ordenou uma represália nuclear imediata contra as bases manchurianas se grande número de tropas novas ingressassem no conflito ou, aparentemente, se fossem lançados desde aí bombardeiros contra as possessões estadunidenses. (...) O Presidente firmou ainda uma ordem que autorizava o uso das ogivas contra objetivos chineses e norte-coreanos.[52]

AS NEGOCIAÇÕES PARA POR FIM À GUERRA E NOVAS AMEAÇAS NUCLEARES

Bomba de napalm sobre Hanchon.

A partir de fins de maio de 1951, porém, a frente estabilizou-se em torno do paralelo 38, com ofensivas alternadas de ambos os lados, sempre com pesadas perdas. Por um lado, os chineses e norte-coreanos – cientes dos riscos de uma escalada nuclear norte-americana – julgavam ter atingido seu principal objetivo: infligir uma humilhante derrota aos norte-americanos, acabando com sua áurea de invencibilidade, e forçá-los a retornar ao sul do paralelo 38. Objetivos maiores exigiriam forças superiores às que dispunham.

Já os norte-americanos – ressabiados do enfrentamento com as tropas chinesas e norte-coreanas – se deram conta que só atacando frontalmente a China e a Rússia – o que levaria à terceira guerra mundial – poderiam vencer a guerra na Coréia.

Cresceram, então, interna e externamente, as pressões pelo encerramento da guerra. Em 30 de junho de 1951, o General Matthew Ridgway – “Comandante Geral das tropas da ONU” – propôs a abertura de negociações para estabelecer um armistício. Após 718 reuniões e quase dois anos de tratativas, finalmente as negociações chegaram a um entendimento, levando ao armistício.

Diante das resistências de Syngman Rhee em aceitar o armistício, “Washington ofereceu-lhe uma ajuda no valor de 200 milhões de dólares e o equipamento de 20 divisões, além de apoio militar na eventualidade de um ‘caso claro de agressão’. E também o retorno aos velhos tempos. Rhee disse que não assinaria o armistício, mas o respeitaria.”[53]

Antes, porém, o impasse nas negociações colocou de novo o mundo à beira de uma guerra atômica. Em outubro de 1952, Mark Clark, sucessor de MacArthur e de Ridgway solicitou a Washington “que sejam feitos planos para o uso de armas atômicas” Em 2 de fevereiro de 1953, Eisenhower, em seu discurso sobre a situação nacional, “mencionou a possibilidade de empregar armas nucleares contra a China” Em 25 de maio de 1953, os EUA exigiram que a China concordasse com o armistício,

caso contrário os B-29 de Le May plantariam o cogumelo atômico em Xangai, Nanquim, Beijing e Shenyang. (...) Na primavera de 1953, (...) uma nova carga de ogivas atômicas foi levada em um navio para Okinawa; desta feita, segundo os fidedignos depoimentos de Eisenhower e Dulles, não como um blefe. (...) Em manifestações públicas e conversas privadas, ele e Dulles haviam dito que encaravam as bombas atômicas como “uma parte normal do arsenal de guerra” (...) Seu governo, disse o presidente, considerava “essas armas convencionais”. (...) “De uma maneira ou outra, o tabu que cerca o uso de armas atômicas teria que ser destruído.[54]

Prevendo o eventual fracasso das negociações de armistício, Eisenhower e o alto comando norte-americano aprovaram a National Security Council Action Nº 794, que determinava, nesse caso, o “uso extensivo, estratégico e tático de bombas atômicas contra a Manchúria e toda a China. (...) O alvo do ataque era a China e o objetivo a ser atacado era a totalidade da sua população urbana, a razão de ser de uma arma nuclear.[55]

Esses quase dois anos de intermináveis tratativas – durante as quais os Estados Unidos tentaram reverter sua derrota na Coréia através de inúmeras ofensivas fracassadas – foram responsáveis por 45% das perdas norte-americanas. Nesse período, os EUA adotaram uma estratégia de terra arrasada e de destruição da Coréia, “batizando a sua nova política coreana com o nome de ‘Operação Assassino’, carnificina sem fim e sem objetivos que, como escreveu Pearl Buck, ‘nos fez perder o que sempre deveríamos ter conservado: o afeto dos asiáticos’.[56] Ao contrário disso, os comandantes estadunidense jactavam-se de que nem em cem anos o povo coreano levantaria de novo a cabeça:

Os combates aéreos (...) mataram a milhões de pessoas antes que a guerra concluísse (...) destruindo desde o ar “toda fábrica, cidade ou aldeia” ao longo de milhares de quilômetros quadrados de território norte-coreano. (...) Para 1952, quase todo o centro e norte da Coréia haviam sido arrasados. O que restava de população tinha que viver em covas (...) como ato final de sua bárbara guerra aérea, bombardearam grandes represas que irrigavam água para 75% da produção de alimentos do Norte. (...) A força aérea estava orgulhosa da destruição que havia gerado: “a corrente resultante inundou 43 km de vale curso abaixo e o caudal de águas inundadas varreu [rotas de abastecimento, etc.] (...) O cidadão ocidental dificilmente consegue conceber a incrível importância que a perda [do arroz] tem para a fome e a morte lenta dos asiáticos.” (...) Quando a guerra finalmente concluiu, em 27 de julho de 1953, o Norte havia sido devastado por três anos de bombardeios que dificilmente deixaram um edifício moderno em pé. Ambas as Coréias haviam presenciado um virtual holocausto que arrasou seu país.[57]

O Chefe do Estado Maior da Aeronáutica dos EUA, Curtis LeMay gabava-se: “Incendiamos cada cidade da Coréia do Norte, de qualquer modo, e algumas da Coréia do Sul também. (...) Durante um período de mais ou menos três anos, matamos 20% da população da Coréia como baixa direta da guerra ou de fome e exposição às intempéries.” No seu desvario genocida, LeMay escreveu em 3 de agosto de 1952 a Vandenberg, “dizendo que, em abril, sua capacidade para bombardear a Rússia em seis dias havia aumentado de 140 para 146 bombas atômicas. (...) ‘isso vai virar uma guerra total. Isso significa que Moscou, São Petersburgo, Mukden, Vladivostok, Beijing, Xangai, Port Arthur, Darien, Odessa, Stalingrado (...) serão eliminadas’.” [58]

Impotentes para derrotar a pequenina Coréia, os EUA vingavam-se transformando a guerra em um genocídio contra o povo coreano e preparando um ataque atômico não provocado à China e à URSS, o que daria início à III Guerra Mundial e ao holocausto nuclear. E ainda há gente que acredita que é a Coréia do Norte – e não os EUA – quem ameaça a humanidade com a deflagração de uma hecatombe nuclear.

A ASSINATURA DO ARMISTÍCIO DE PANMUNJON

O general do Exército dos EUA Mark W. Clark assina o acordo Armistício da Guerra da Coreia em 27 de julho de 1953.

Apesar dos delírios dos militaristas estadunidenses, finalmente chegou-se a um acordo para a pacificação da península coreana Envergonhados por sua incapacidade em vencer a República Popular Democrática da Coréia, os norte-americanos queriam que a assinatura do armistício – marcada para 27 de julho de 1953, na localidade de Panmunjon, na Coréia do Norte – ocorresse da forma mais discreta possível. Mas os norte-coreanos não aceitaram isso e construíram, em tempo recorde, um amplo pavilhão especialmente para a cerimônia de assinatura do armistício. Um comando armado dos Estados Unidos ainda tentou derrubar esse pavilhão na madrugada que antecedeu a assinatura do acordo, mas foi impedido pelos soldados norte-coreanos.

O general norte-americano Mark Clark, que assinou o armistício, diria amargurado: “Eu ganhei a nada invejável distinção de ser o primeiro Comandante do Exército dos Estados Unidos a assinar um acordo de armistício sem vitória”.

O armistício assinado estabeleceu uma linha demarcatória de em torno de 250 quilômetros de extensão – que atravessa o país de leste a oeste, seguindo um trajeto próximo ao paralelo 38 –, em torno da qual se estende uma área desmilitarizada, de 2 km de cada lado, na qual é proibida a existência de armas automáticas ou de alto poder de fogo.

As perdas dos Estados Unidos e de seus aliados, nos três anos de guerra, foram de 1.567.128 soldados mortos, feridos ou capturados (dos quais 405.498 norte-americanos); 12.224 aviões derrubados ou capturados; 564 navios de guerra afundados ou capturados (inclusive o cruzador pesado Baltimore); 3.255 tanques e veículos blindados destruídos ou capturados; 13.350 carros, 7.695 armamentos de diferentes tipos e 925.152 pequenas armas destruídas ou capturadas.

Referindo-se a isso, o General Omar Bradley, Chefe do Estado Maior do Exército dos Estados Unidos, desabafou: “Falando francamente, a Guerra da Coréia foi uma grande catástrofe militar, foi uma guerra errada, realizada no local errado, no momento errado e contra o inimigo errado.

A ÁRDUA RECONSTRUÇÃO DA RPDC SOB A PERMANENTE AMEAÇA DOS EUA

Após três anos de guerra – durante os quais os EUA submeteram a RPDC a um bombardeio genocida por ar, terra e mar – o país havia sido completamente destruído e precisava recomeçar a partir do zero. A evacuação do Sul pelas tropas norte-americanas, a não introdução de novas armas e a reunificação pacífica da Coréia por meio de eleições gerais – previstas no armistício – jamais aconteceram, mas as Nações Unidas não tomaram qualquer medida para exigir que os EUA cumprissem com o acordado.

O armistício mostrou não significar qualquer garantia sólida de paz e de não agressão atômica contra a RPDC por parte dos EUA: “Depois que finalizou a Guerra da Coréia, os Estados Unidos introduziram armas nucleares na Coréia do Sul, apesar do acordo de armistício proibir a introdução de armamento novo enquanto ao seu tipo. (...) Syngman Rhee (...) com freqüência ameaçava reabrir a guerra.[59] Em agosto de 1957, Eisenhower aprovou a NSC 5702/2, autorizando o estacionamento de armas nucleares no país e permitindo:

apoio estadunidense a uma iniciativa unilateral da RdC, em resposta a uma rebelião de massas ao estilo húngaro na Coréia do Norte. (...) Rhee não diminuiu a sua defesa do uso de bombas de hidrogênio quando fizesse falta; sobressaltou inclusive seus partidários republicanos quando defendeu o seu uso em um discurso dirigido ao Congresso, em 1954. (...) Em janeiro de 1958, os Estados Unidos colocaram canhões nucleares de 280 mm e mísseis nucleares tipo ‘Honest John’ na Coréia do Sul e um ano mais tarde a força aérea ‘estacionou permanentemente um esquadrão de mísseis cruzeiro tipo Matador na Coréia’. Com um alcance de 1.100 quilômetros, os Matador foram dirigidos à China e à URSS, assim como também à Coréia do Norte.[60]

É nesse quadro de grave ameaça externa que a RPDC teve que trilhar o árduo caminho da sua reconstrução. Isso a obrigou a despender importantes recursos – de que tanto necessitava para sua reconstrução pacífica – em ações de defesa. Na 6ª Sessão plenária do Comitê Central do Partido do Trabalho da Coréia, realizada em 5 de agosto de 1953, logo após a assinatura do armistício, o Presidente Kim Il Sung afirmou: “Na construção econômica do pós-guerra devemos seguir a orientação de assegurar preferentemente o restabelecimento e o desenvolvimento da indústria pesada e, ao mesmo tempo, desenvolver a indústria leve e a agricultura.[61]

No decorrer do Plano Trienal (1954-1956), consagrado essencialmente à retomada da economia, a produção de meios de produção aumentou a uma média anual de 59% e a de bens de consumo a uma média anual de 28%, ultrapassando em 1,7 vezes e 2,1 vezes, respectivamente, o nível de produção de 1949, ano que antecedeu a guerra.

Já o 1º Plano Qüinqüenal (1957-1961) – cumprido em apenas quatro anos –, teve por objetivo lançar as bases do socialismo. O nível de destruição na agricultura, na indústria, no comércio e no artesanato havia sido tal que as diferenças de classes e de posses haviam sido praticamente eliminadas e estavam a exigir esforços conjuntos para garantir a sobrevivência de todos. Isso favoreceu uma rápida socialização dos meios de produção – tanto no campo como na cidade –, o que foi realizado de maneira voluntária, sem o uso da coerção, através do exemplo e da comprovação das vantagens do trabalho coletivo sobre o individual.

A RECONSTRUÇÃO NA AGRICULTURA

Fazenda cooperativa Migok, em Sariwon.

A socialização da agricultura começou por uma fase experimental, quando foram criadas algumas cooperativas por circunscrição, englobando camponeses pobres e membros do Partido. Muito rapidamente, apesar da ausência de maquinário agrícola, a exploração cooperativa – que se beneficiava do auxílio do Estado – mostrou a sua superioridade sobre a pequena propriedade parcelar: “A nossa experiência mostrou que a cooperativização agrícola é perfeitamente possível, mesmo nas condições em que não existem praticamente máquinas agrícolas modernas (...) a exploração cooperativa assim organizada é, apesar disso, decisivamente superior à economia individual”.[62]

A partir daí ela generalizou-se, atingindo 80,9% em 1956, 95,6% em 1957 e 100% em 1958. Aos “grandes proprietários” (que na Coréia não eram tão grandes) foi permitido se manterem trabalhando a terra, em províncias adjacentes, onde lhes foi concedida a mesma quantidade de terra que aos demais agricultores.

As cooperativas criadas foram inicialmente de três tipos, respeitando as particularidades locais e o nível de consciência dos camponeses: 1) As cooperativas elementares eram formadas por uma equipe de cooperação de trabalho, onde os camponeses cultivavam em comum suas terras individuais, com seus próprios meios de trabalho e a retribuição era segundo a terra, os meios de produção e o trabalho fornecidos; 2) Nas cooperativas semi-socialistas, as terras eram postas em comum e exploradas coletivamente, com retribuição segundo o trabalho realizado e a quantidade de terra aportada por cada um; 3) Nas cooperativas plenamente socialistas, as terras e os principais meios de produção eram tidos em comum e a retribuição de cada um era proporcional ao trabalho realizado. Rapidamente o conjunto das cooperativas evolui para o terceiro tipo. Cada família camponesa teve direito a conservar uma pequena parcela para uso individual, com alguns porcos, aves e pequenos animais. O produto excedente dessas parcelas individuais podia ser livremente vendido no mercado.

Em 1958, uma vez concluída essa primeira etapa, foi realizado um reagrupamento das cooperativas por circunscrição administrativa, cada uma passando a ter uma média de 275 agregados (3.843 cooperativas com 1.055.000 camponeses, em 1958). Em 1960, as cooperativas exploravam 84% das superfícies cultivadas, contra 16% das 1.609 granjas estatais, das quais 39 eram geridas centralmente e 130 eram geridas por comitês populares regionais. Com esse reagrupamento, a área média de terras cultivadas por cada cooperativa passou de 130 para 500 hectares: “O reagrupamento das cooperativas permitiu utilizar racionalmente os meios de produção, desenvolver a revolução técnica, melhorar a utilização da mão-de-obra e diversificar a economia cooperativa. Além disso, uniu estreitamente as unidades de produção com a administração e submeteu a um controle único a produção, o comércio e o crédito”.[63]

Tendo em conta que dos 12,8 milhões de hectares do Norte da Coréia, somente 2 milhões eram de terras aráveis, foi feito um enorme esforço para ampliar as superfícies cultivadas, seja pelo ordenamento das planícies e montanhas (através de plataformas nas encostas íngremes), seja pela recuperação das terras salinas no litoral, o que exigiu um grande investimento em trabalho. Ao mesmo tempo, nos setores montanhosos foram incrementadas as culturas arbustivas – especialmente frutíferas – e o reflorestamento.

A partir de 1958, os principais esforços para ampliar a produção se voltaram para a implementação da revolução técnica:

Sem transformar a atrasada técnica da agricultura é impossível mostrar no plano geral a superioridade da exploração cooperativa e desenvolver mais as forças produtivas da agricultura. À medida que se concluía a cooperativização da agricultura, o nosso Partido preparou-se imediatamente, sem perda de um instante, para a modernização técnica da economia rural.[64]

O primeiro elemento dessa revolução técnica foi a expansão da irrigação. Para isso, o sistema de canais foi renovado e ampliado, de forma que o conjunto dos arrozais e boa parte das áreas dedicadas a outras culturas – como o milho e a horticultura – passaram a contar com a irrigação mecânica: “Em 1967, contavam-se 39.726 km de canais de irrigação. Os trabalhos realizados substituíram os antigos sistemas de irrigação locais por vastos sistemas regionais. (...) A superfície de arrozais irrigados passou de 387.900 djeungbos [cada djeungbo equivale a aproximadamente 1 Hectare], em 1946, para 509.698, em 1960, e para 700.000, em 1970.[65]

A eletrificação foi o segundo aspecto dessa revolução técnica, sendo que em 1967 já havia alcançado a 98,2% das circunscrições administrativas e a 86,1% das famílias camponeses. A título de comparação, lembremos que só muito recentemente – com o Programa “Luz para Todos” de Lula– a energia elétrica chegou para a maioria dos trabalhadores rurais brasileiros.

O terceiro aspecto da revolução técnica foi a mecanização da agricultura. Em um primeiro momento – tendo em vista que o parque fabril encontrava-se destruído – a ênfase foi para o aperfeiçoamento do material de arar manual e de tração animal. Será somente a partir de 1960, com a recuperação industrial, que a mecanização da agricultura passou a jogar papel. Assim, o número de tratores passou de 372, em 1953, para 6.313 em 1960, ultrapassando os 20 mil em 1970, fazendo com que a totalidade dos arrozais de planície passasse a ser trabalhada com tratores e que a totalidade da debulha fosse mecanizada.

Por fim, a quimização – isto é, o uso generalizado de adubos químicos, herbicidas e inseticidas – foi o quarto elemento da revolução técnica na agricultura. O uso médio de adubos químicos por hectare saltou de 13 quilos, em 1949, para160 quilos em 1960 e 510 quilos em 1970, eliminando na quase totalidade o uso de excrementos animais com adubo.

Em 1960, os cereais ocupavam 82,4% das áreas semeadas (sendo 18,1% arroz e 28,3% milho); os legumes e as forragens 13,4%; e as plantas industriais 4,2%. Pode-se considerar que em meados da década de 1970 a revolução técnica da agricultura havia sido concluída no seu essencial e o país podia considerar cobertas as suas necessidades básicas de alimentação, com destaque para o arroz, o milho, a batata, leguminosas e hortigranjeiros. O desenvolvimento forrageiro e, em conseqüência, da pecuária ainda sofriam importantes atrasos.

O imposto em espécie, que em 1945 havia sido de 25%, caiu em 1959 para 8,4%, sendo totalmente suprimido em 1966. Houve uma melhoria considerável do nível de vida dos camponeses e o Estado assumiu a responsabilidade da reconstrução das habitações rurais, de qualidade equivalente às moradias urbanas.

A RECONSTRUÇÃO DA INDÚSTRIA

Fábrica de Fertilizantes de Hamhung.
A produção atual é de 500.000 toneladas e nela trabalham cerca de 7.000 pessoas.

O Plano Trienal (1954-1956) e o Plano Qüinqüenal (1957-1961) puseram ênfase na reconstrução e desenvolvimento da indústria pesada (energia elétrica, siderurgia, indústria mecânica, produtos químicos, etc.), colocando a produção de bens de consumo em segundo plano. Nessa empreitada, a RPDC contou com o apoio da URSS e da China, ainda que nem de longe próxima do que o Sul recebeu dos Estados Unidos e do Japão. Isso fez com que a indústria da RPDC crescesse a uma taxa média anual de 41,7% durante o Plano Trienal e de 36,6% durante o 1º Plano Quinquenal.

Em junho de 1958, cada circunscrição foi orientada a construir uma indústria de pequeno ou de médio porte, com os seus próprios recursos. Até o final de 1958, foram construídas mais de 1.000 empresas locais, mobilizando recursos e mão-de-obra ociosos, as quais já eram responsáveis, em 1960, pela metade da produção de bens de consumo do país. Em 1964 elas já eram mais de 2.000. Dessa forma, o Estado pode concentrar 82,6% dos seus investimentos na indústria pesada, contra 17,4% na indústria leve; apesar disso, a fabricação de bens de produção cresceu 3,6 vezes e a de bens de consumo cresceu 3,3 vezes. Além disso, as indústrias locais contribuíram muito para o desenvolvimento regional, aproximaram a agricultura da indústria e diminuíram progressivamente as disparidades entre a cidade e o campo.

Ao mesmo tempo em que incentivava a emulação socialista – do que o movimento Chollima foi um claro exemplo – o Partido do Trabalho da Coréia nunca caiu na tentação “igualitarista” e sempre defendeu a retribuição de acordo com o trabalho aportado por cada um:

O impulso político e moral do trabalho sob o socialismo deve estar ligado ao estímulo material. A distribuição segundo a qualidade e a quantidade do trabalho é uma lei objetiva da sociedade socialista e é um potente meio contra aqueles que querem comer sem trabalhar, a expensas dos outros, e para estimular materialmente o ardor dos trabalhadores na produção.[66]

No período do 1º Plano Quinquenal, o desequilíbrio entre a indústria extrativa e a indústria de transformação foi superado, paralelamente à grande expansão da produção de máquinas e equipamentos: “a participação das construções mecânicas no valor global da produção industrial passou de 17,3% em 1956 para 21,3% em 1960 e a taxa de auto-suficiência nacional para os equipamentos mecânicos, de 46,5% a 90,6%, no mesmo período.[67]

Foram desenvolvidos novos ramos industriais e os que já existiam foram qualificados. A indústria metalúrgica foi diversificada e reequilibrada, reduzindo o excesso de fundição em relação à produção de aço; esta passou de 30%, antes da Libertação, para 70%, em 1960. A indústria química, restrita aos adubos, expandiu-se para a produção de matérias plásticas e produtos sintéticos. A indústria de bens de consumo ampliou enormemente a sua gama de produtos.

Em 1960, a produção industrial alcançou um volume 7,6 vezes maior que 1944. Em 1964, as indústrias mecânicas já eram responsáveis por 26% do total da produção industrial e a Coréia já supria quase 95% de suas necessidades em máquinas e equipamentos.

O DIVERSOS PLANOS SETENAIS E SEXENAIS

Complexo siderúrugico de Chollima.

O 1º Plano Setenal (1961-1967) projetou uma taxa anual de crescimento de 18%, mas o agravamento das tensões com os EUA e a suspensão da ajuda da URSS – devido ao apoio coreano à China, na disputa Sino-Soviética – fizeram com que o Plano fosse prorrogado por três anos, devido à necessidade da destinação de maiores recursos para a defesa nacional. Por essas razões, o crescimento da produção industrial limitou-se a 12,8% ao ano, entre 1961 e 1970, o que ainda é uma taxa extremamente elevada. Segundo Cumings, “nas duas décadas posteriores à Guerra da Coréia o crescimento do Norte deixou muito para traz o Sul, colocando medo no coração dos funcionários estadunidenses, os quais se perguntavam se Seul decolaria em algum momento.[68]

Apesar de todos esses percalços, entre 1956 e 1970 o valor da produção industrial aumentou 11,6 vezes – sendo 13,3 vezes para os meios de produção e 9,3 vezes para os bens de consumo – e o peso da indústria no total da produção saltou para 75%, tornando a Coréia um país predominantemente industrial. Na geração de energia ocorreram importantes mudanças, aumentando a participação das centrais térmicas – alimentadas a carvão – em relação à geração hidroelétrica. Assim, a produção global de energia aumentou 70%, enquanto a geração térmica cresceu 11 vezes.

Diante da carência de coque metalúrgico na Coréia, foram desenvolvidos diferentes processos técnicos para produzir o aço sem o uso do coque (aço elétrico, ferro granulado, etc.). A indústria siderúrgica diversificou-se, elevando o percentual de aços especiais e produtos semi-acabados (laminados, tubos de aço, etc.). O país passou a ser grande produtor e exportador de tungstênio, molibdênio, cromo e níquel, entre outros, e desenvolveu a produção de metais não ferrosos como o cobre, chumbo, zinco e alumínio.

A indústria mecânica deu um enorme salto, passando a produzir navios, tratores, caminhões e outros veículos, locomotivas elétricas e a diesel, vagões, turbinas, transformadores, equipamentos elétricos e de transmissão, máquinas têxteis, prensas, máquinas para mineração, motores diesel, além de bens de consumo duráveis: “o maior êxito registrado no estabelecimento da indústria pesada foi a criação da nossa própria indústria das construções mecânicas, que constitui o fundamento do desenvolvimento da economia nacional e do progresso técnico.[69]

A indústria química também teve uma grande expansão. Além de uma refinaria, ampliou a produção de adubos nitrogenados, super-fosfatos, uréia, amoníaco, plásticos, álcool, metanol, ácido clorídrico, carbureto de cálcio, etc. Destaca-se, ainda, a produção de borracha – tanto natural quanto sintética – e de pneus A indústria da construção passou a contar com diversas fábricas de cimento, vidro, madeira e pré-moldados para a produção moradias.

A indústria leve tem o seu ponto alto na indústria têxtil, incluindo a fiação, tecelagem, impressão e confecção. Ela trabalha o algodão, a lã, a seda e as fibras sintéticas, onde se destacam o Vinalon – criado com tecnologia puramente coreana, a partir de antracita e cal – e os têxteis celulósicos. Na indústria alimentar tem importância a indústria da pesca e das conservas a ela associadas.

Na área dos transportes, o esforço principal do Plano Setenal foi no sentido da eletrificação do sistema ferroviário (de 12% em 1960 para 55% em 1970) e a expansão da rede rodoviária a todas as aldeias do país.

O 1º Plano Sexenal, iniciado em 1971, colocou a necessidade de fazer a produção ingressar em uma nova etapa:

As três tarefas principais apontadas à revolução técnica pelo Plano Sexenal (...) são reveladoras da preocupação pelo homem que está no centro da política do Partido do Trabalho da Coréia e do governo: eliminar os trabalhos penosos, reduzir a diferença entre o trabalho na agricultura e na indústria, libertar as mulheres dos trabalhos domésticos.[70]

O esforço para a eliminação dos trabalhos pesados ou nocivos à saúde levou a mais ampla mecanização e automatização da indústria e dos transportes, exigindo o rápido desenvolvimento da indústria eletrônica. Na agricultura, significou a ampliação da irrigação, o amplo uso de adubos químicos, a seleção de variedades cultiváveis, a eletrificação e a generalização da mecanização. Fruto disso, a produção de cereais alcançou 7 milhões de toneladas em 1974, 8 milhões em 1976, 9 milhões em 1979 e 10 milhões em 1984. A libertação das mulheres das tarefas doméstica ensejou o desenvolvimento da indústria de preparação prévia dos alimentos e a produção massiva de eletrodomésticos (refrigeradores, máquinas de lavar, marmitas elétricas, etc.).

Visando a atualização e a modernização tecnológica, a RPDC adquiriu durante o Plano Sexenal plantas industriais completas no campo socialista, no Japão e no Ocidente. Comparando o desenvolvimento do Norte e do Sul nesse período, o historiador norte-americano Bruce Cumings afirma em 2004:

estudo da CIA, publicado em 1978, situa a renda per capita da RPDC no mesmo nível da RdC para 1976 e outro estudo estimou que as taxas de crescimento per capita  do Sul e do Norte foram iguais até 1986. (...) A produção total de eletricidade, carvão, fertilizante, máquinas ferramenta e aço na Coréia do Norte era comparável ou maior aos totais da Coréia do Sul no início dos anos 80, devendo-se ter em conta que a população da RdC era o dobro da RPDC. (...) um crítico do rendimento econômico norte-coreano avaliou o seu crescimento industrial anual, entre 1978-1984, em 12,2%. (...) o nível de vida das massas na Coréia do Sul, ainda que ligeiramente melhores, não sobressaem sobre os níveis médios dos coreanos [do Norte]. (...) Engenheiros agrônomos da ONU constataram que o Norte utilizava sementes milagrosas de arroz em 1980 e que havia substituído o adubo humano (ainda amplamente utilizado no Sul a essa época) por fertilizantes químicos. (...) A moral da população é claramente melhor que na ex União Soviética e tanto as fábricas como as cidades dão uma imagem de eficiência e trabalho duro. (...) Nos anos 90, o consumo per capita de energia se estimava quase tão alto como no Sul, ainda que os consumidores da RdC utilizam muito mais energia que os do Norte, onde se aplica fundamentalmente à indústria.[71]

Fruto dessas medidas,

a produção industrial cresceu a uma média anual de 15,9%, de 1970 a 1979. No mesmo período, o valor global da produção industrial aumentou 3,8 vezes: 3,9 vezes pela produção de bens de produção, 3,7 vezes pela dos bens de consumo. (...) A produção industrial continuou a desenvolver-se rapidamente durante a execução do segundo Plano Setenal. (...) O valor global da produção industrial cresceu 2,2 vezes entre 1978 e 1984 – 2,2 vezes no que se refere aos meios de produção e 2,1 vezes em relação aos bens de consumo. Seu ritmo de crescimento anual foi de 12,2%. (..) Em 1984, relativamente a 1977, a produção de eletricidade aumentou 78%, o carvão 50%, o aço 85%, as máquinas-ferramenta 67%, os tratores 50%, os veículos automotores 20%, os adubos químicos 56%, o cimento 78%, os tecidos 45% e os equipamentos para a pesca 120%. (...) Durante esse período, foram construídas e colocadas em funcionamento 17.785 fabricas e oficinas modernas. (...) A produção de máquinas se multiplicou por 2,3. Assinale-se em particular a ampliação dos centros de produção de máquinas pesadas, de equipamentos sob encomenda, de equipamentos de extração, de meios de transporte, de aparelhos eletrônicos e de elementos de automatização. Em 1984 a renda nacional havia crescido 80% em relação a 1977 [72]

Após o 2º Plano Setenal, concluído em 1984, houve um período de reajustamento, entre 1985 e 1986, com o objetivo de reequilibrar o desenvolvimento econômico do país e prepará-lo para maiores avanços. Durante esse período as prioridades foram a produção energética, os transportes ferroviários e a indústria siderúrgica.

Em 1987, teve início o 3º Plano Setenal (1987-1993), tendo como principais objetivos ampliar em 90% a produção industrial (a uma média de 10% ao ano), em 40% a produção agrícola (alcançando 15 milhões de toneladas de cereais) e em 80% o PIB. A meta de crescimento da renda de operários e empregados foi fixada em 60% e dos camponeses em 70%. Foi definido um ambicioso plano energético, prevendo a construção de diversas hidroelétricas e centrais térmicas, além de uma central atômica. Nas regiões costeiras e montanhosas foi prevista a construção e numerosas centrais eólicas.

Outras prioridades do 3º Plano Setenal foram a indústria do carvão, a produção de aços especiais, metais não-ferrosos, máquinas-ferramentas com comando numérico, robôs, caminhões, tratores, navios, máquinas extratoras, implementos agrícolas, indústria eletrônica e microeletrônica. Na indústria da construção foi estabelecida a meta de construir de 150 mil a 200 mil moradias nas cidades e nos campos a cada ano.

Esses resumidos dados nos mostram quão longe da realidade estão aqueles que nos apresentam a República Popular Democrática da Coréia como um país atrasado, estagnado e inviável.

IMPORTANTES AVANÇOS SOCIAIS

A RPDC – após a guerra que devastou o país e liquidou boa parte da sua população – teve de enfrentar simultaneamente inúmeras tarefas: a reorganização da agricultura, a industrialização (com prioridade para a indústria pesada), a defesa nacional e a melhoria das condições de vida da população.

Assim, no âmbito do atendimento à sua população, esforçou-se para assegurar a todos o essencial: alimentação, vestuário, moradia, educação e atendimento à saúde. Em conseqüência, na RPDC tem enorme importância o “salário social” (não monetário), usufruído através da moradia disponibilizada pelo Estado – gratuitamente ou com aluguéis extremamente baixos, incluídas a luz e a calefação –, da alimentação com preços subsidiados, do vestuário fornecido pelas empresas a seus trabalhadores e pelas escolas aos seus alunos (da pré-escola à universidade), pela educação e atendimento à saúde, totalmente gratuitos.

Ao lado de um crescente aumento dos salários e rendas da população, houve uma diminuição persistente dos preços industriais e dos bens de consumo. No decorrer do Plano Sexenal, o ganho real dos operários e empregados cresceu 70% e os ganhos dos trabalhadores rurais cresceu 80%. Em 1974, foram suprimidos todos os impostos sobre a população.

Tendo em vista a completa destruição das moradias nos campos e nas cidades, devido aos bombardeios genocidas dos Estados Unidos, um dos maiores desafios enfrentados foi a construção de habitações para a população. Só durante o Plano Sexenal, foram construídas 414 mil moradias nas cidades e 472 mil nas áreas rurais, em um país que contava com apenas 15 milhões de habitantes. Hoje, o problema habitacional está totalmente resolvido na Coréia.

Em 1956, foi instituído ensino primário obrigatório. Em 1958, o ensino obrigatório passou a ser de 7 anos e hoje já é de 12 anos. Foi construído um amplo sistema de estabelecimentos de ensino superior – sendo a Universidade Kim Il Sung de Pyongyang a mais importante –, completado por uma rede de universidades noturnas e por correspondência para os trabalhadores.

Na década de 70 as emissões de televisão passaram a cobrir todo o território da RPDC. A rede de creches, que em 1970 já atendia 80% das crianças, ao final do Plano Sexenal já cobria 100% das necessidades. O Estado assumiu integralmente os numerosos órfãos de guerra, privilegiando-os para que possam superar a desvantagem social de que foram vítimas.

O atendimento à saúde também se tornou exemplar:

funcionários da Organização Mundial da Saúde e outros organismos da ONU elogiam a provisão de serviços básicos de saúde; as crianças na Coréia do Norte estão melhor cobertas pela vacinação que as crianças estadunidenses. A informação das Nações Unidas mostra que a expectativa de vida nesse pobre e pequeno país é de 70,7 anos (contra 70,4 da RdC), um número só ligeiramente inferior ao dos Estados Unidos. A mortalidade infantil é de 25 por mil nascimentos, frente aos 21 por mil no Sul. (...) Em torno de 74% dos norte-coreanos vive nas cidades, frente a 78% no Sul (...) um grau de urbanização e industrialização acorde aos níveis internacionais.[73]

Durante o 2º Plano Setenal (1977-1984), a renda real dos operários e empregados aumentou em 60% e a dos agricultores em 40%:

Durante esse período as vestimentas, os calçados, os artigos de uso escolar e os produtos alimentares foram fornecidos gratuitamente (...) a todas as crianças, alunos e estudantes. (...) Em fins de 1984, o país contava com 216 estabelecimentos de ensino superior [em 1989, já eram 270] (...) assim como com 1.250.000 técnicos e especialistas. No âmbito da saúde pública, foram construídos mais de 290 estabelecimentos de saúde – preventivos e terapêuticos –e o número de médicos e de leitos aumentou, respectivamente, em 40% e 6%.[74]

OS ESFORÇOS DO NORTE PELA REUNIFICAÇÃO DA COREIA

Logo após o armistício, a RPDC retomou os seus esforços para uma reunificação pacífica do país, mas encontrou forte resistência dos Estados Unidos e do governo ditatorial de Seul. Em novembro de 1953, os EUA fizeram malograr a conferência política prevista pelos acordos de armistício. Em abril de 1954, quando a questão da Coréia foi discutida na Conferência de Genebra, a República Popular Democrática da Coréia propôs a reunificação nacional, a retirada de todas as tropas estrangeiras e a realização de eleições livres em todo o país. A proposta foi rejeitada pelos Estados Unidos, que se negavam a sair da Coréia do Sul, mas exigiam a retirada dos voluntários chineses.

Em outubro de 1954, o governo da RPDC propôs

a convocação para Pyongyang ou para Seul de uma conferência conjunta da Assembleia Popular da República Popular Democrática e da Assembleia Nacional de Seul, a fim de discutir intercâmbios econômicos e culturais, comunicações postais e livre circulação entre as duas partes da Coréia. Essas propostas, bem como as que se seguiram – agosto de 1955, abril de 1956, setembro de 1957 e fevereiro de 1958 – esbarraram com uma recusa ou nem sequer tiveram resposta por parte do regime de Syngman Rhee.[75]

No decorrer de 1958, em um gesto de boa vontade, todos os voluntários e militares chineses retiraram-se da RPDC, mas as tropas norte-americanas não só permaneceram no Sul como ampliaram suas bases militares e reforçaram o seu armamento, o que estava proibido pelo acordo de armistício.

A DERRUBADA DE SYNGMAN RHEE E A DITADURA DO GENERAL PARK CHUNG HEE

Em abril de 1960, em protesto contra mais uma eleição fraudada, eclodiram em todo o país grandes manifestações populares. Apesar do apoio norte-americano, Syngman Rhee não conseguiu resistir e foi apeado do poder. Em julho de 1960, assumiu Chang Myun.

Em agosto de 1960, o Presidente Kim Il Sung apresentou uma nova proposta para a reunificação da Coréia:

se as autoridades da Coréia não podiam aceitar (...) eleições gerais livres em toda a Coréia, poderia ser criado um sistema de confederação do Norte e do Sul, como medida transitória antes da reunificação completa. Seria formado um Conselho Nacional Supremo, compreendendo representantes dos governos da República Democrática da Coréia e da República da Coréia (...). Os sistemas políticos do Norte e do Sul permaneceriam inalteráveis e os dois governos prosseguiriam as suas atividades independentes.[76]

Diante do profundo eco que essa proposta alcançou entre a população do Sul da Coréia, os Estados Unidos perceberam que o governo de Chang Myun seria incapaz de deter o clamor pela reunificação e organizaram em 16 de maio de 1961 um golpe militar que colocou a frente do governo de Seul o General Park Chung Hee. Este, tão logo assumiu, desatou a mais feroz repressão contra o povo sul-coreano. Assim, foi momentaneamente refreado o movimento a favor da reunificação. Apesar disso, o governo da RPDC continuou a apresentar propostas para a reunificação pacífica da Coréia, como em junho de 1962, outubro de 1962, dezembro de 1963, março de 1964, maio de 1965, etc.

O INÍCIO DAS NEGOCIAÇÕES PARA A REUNIFICAÇÃO DA COREIA

Encontro diplomático entre as Coréias
visando a reunificação,1972.

Em janeiro de 1972, em entrevista ao jornal japonês Yomiuri Shimbun, Kim Il Sung afirmou:

Para eliminar a tensão na Coréia é necessário substituir o acordo de armistício da Coréia por um acordo de paz entre o Norte e o Sul. Insistimos para que o Norte e o Sul concluam um acordo de paz e que as forças armadas do Norte e do Sul da Coréia sejam consideravelmente reduzidas, com a condição de que as tropas de agressão do imperialismo americano sejam retiradas da Coréia do Sul. Por mais de uma vez declaramos que não temos a intenção de ‘invadir o Sul’. Se os governantes sul-coreanos não tiverem a intenção de realizar a ‘reunificação através da marcha em direção ao Norte’, não haverá qualquer razão para não darem o seu assentimento ao estabelecimento do acordo de paz entre o Norte e o Sul..[77]

Aqui temos o claro desmentido da acusação feita pela chamada “livre imprensa ocidental” de que é a RPDC que não aceita estabelecer um acordo da paz...

Em 4 de julho de 1972, após negociações prévias em Pyongyang e em Seul, os representantes da Coréia do Norte e da Coréia do Sul assinaram uma Declaração manifestando “o desejo comum de realizar a reunificação pacífica do país o mais cedo possível” e definindo os três princípios que deveriam orientar a reunificação (referendando os três pontos propostos anteriormente pela RPDC): 1) Reunificação independente (sem ingerências estrangeiras); 2) Reunificação pacífica (sem o recurso às armas); 3) Reunificação através de uma grande unidade de toda a nação (transcendendo as diferenças de concepções, ideais e sistemas).

Mas o General Park Chung Hee – fortemente pressionado pelos EUA – recuou dos compromissos assumidos e desatou, em julho de 1952, uma forte repressão contra os manifestantes que pediam a reunificação, condenando inúmeros líderes oposicionistas sul-coreanos à morte ou à prisão perpétua. Em 17 de outubro de 1972, proclamou a lei marcial e impôs uma nova Constituição que lhe permitia continuar de forma vitalícia na presidência e lhe concedia todos os poderes, sem qualquer controle. Curiosamente, não houve qualquer protesto por parte dos Estados Unidos e das nações ditas “democráticas” do ocidente, nem lhe foi imposta qualquer sanção econômica ou diplomática pela ONU...

Com isso as negociações para a reunificação da península “voltaram à estaca zero”.

A administração Jimmy Carter (1977-1981), que anunciou uma retirada gradual forças terrestres estadunidenses da Coréia (o que acabou não acontecendo), abriu espaço para um melhoramento da relação entre o Norte e o Sul.

Assim, em 1980, no 6º Congresso do Partido do Trabalho da Coréia, o Presidente Kim Il Sung propôs como caminho para a reunificação da Coréia a formação de um Estado Federal Unitário e de um governo nacional unificado, no qual o Norte e o Sul estariam representados com o mesmo peso e sob o qual ambos os lados exerceriam a respectiva autonomia regional, com direitos e deveres iguais. Ou seja, uma federação baseada em uma nação, um estado, dois sistema e dois governos. Esse estado federal assumiria um caráter independente e democrático e se chamaria República Federal Democrática do Koryo, retomando o nome do Primeiro estado unificado na história da Coréia. Mais uma vez – apesar do enorme apoio que essa proposta recebeu tanto no Norte, como no Sul –, o governo sul-coreano a rejeitou.

A ascensão de Reagan à presidência dos EUA – em substituição a Jimmy Carter – teve como conseqüência o agravamento das tensões na península:

Reagan convidou o ditador Chun Doo Hwan [que sucedera Park Chung Hee] a visitar Washington em fevereiro de 1981, como seu primeiro ato de política exterior (...) se agregaram 4.000 estadunidenses aos 40.000 já existentes ali, se venderam a Seul caças F-16 avançados e se levaram a cabo, a cada início de ano, grandes exercícios militares (chamados Espírito de Equipe) que envolviam a mais de 200.000 soldados estadunidenses e coreanos. (...) O Secretário da Defesa, Caspar Weinberger, declarou em 1983 (...) que se os soviéticos atacassem o Golfo Pérsico, os Estados Unidos podiam responder atacando qualquer ponto que elegessem. O documento dizia que a Coréia era esse ponto.[78]

O resultado dessa política agressiva dos EUA foi o congelamento de quaisquer tratativas.

O COLAPSO DO LESTE EUROPEU E DA URSS E OS IMPACTOS NA RPDC

Entre 1989 e 1991, produziu-se o colapso do Leste Europeu e a União Soviética deixou de existir, fracionando-se em diversas repúblicas. Na sua maioria, governos reacionários e anti-comunistas passaram a dirigi-las. As anteriores relações inter-estatais no interior do campo socialista e os tratados comerciais em vigor foram abandonados da noite para o dia, criando enormes dificuldades econômicas para os países que persistiram no caminho socialista, como Cuba, Vietnam, Laos e a República Popular Democrática da Coréia. A China – que havia iniciado as suas reformas e a sua abertura em 1986 – foi menos afetada, inclusive devido à sua pujança econômica, dimensões e vasto mercado interno:

O colapso do bloco socialista privou Pyongyang de importantes mercados, causando vários anos de queda do PIB a princípios dos anos 90. Dados sul-coreanos situam essa queda na faixa de 2 a 5% e analistas governamentais estadunidenses pensam que o pior havia passado para a Coréia do Norte em fins de 1993. (...) Pyongyang reconheceu pela primeira vez publicamente “grandes perdas na nossa construção econômica” e “uma situação externa e interna sumamente complexa e aguda” no 21º Pleno do Partido do Trabalho, em dezembro de 1993. A maior parte da responsabilidade na crise foi atribuída não ao sólido sistema socialista norte-coreano, mas ao “colapso dos países socialistas e ao mercado socialista mundial”, que “destroçou” a muitos sócios de Pyongyang e seus acordos comerciais.[79]

Até a década de 70, o comércio exterior da RPDC havia sido quase que unicamente com o boco socialista, mas nos anos seguintes havia se diversificado com o Japão, Europa Ocidental e várias nações do Terceiro Mundo. Em meados dos 70, 40% do seu comércio era com países não comunistas e somente 30% com a URSS. Mas, no final dos anos 80, por falta de divisas fortes e outras dificuldades, a RPDC voltara a ser dependente do comércio com a URSS. A exigência da recém criada Federação Russa de que o petróleo e outros produtos passassem a ser pagos com moedas fortes foi, assim, um duro golpe para os norte-coreanos.

Os problemas se agravaram ainda mais devido à ocorrência nesse exato momento de sérias perturbações climáticas, prejudicando a produção de alimentos e causando uma situação de insegurança alimentar, contornada com grandes sacrifícios da população e com alguma ajuda internacional. Esse período ficou conhecido como a “marcha penosa”, em analogia com a dura luta travada pelo Exército Revolucionário Popular da Coréia contra os ocupantes japoneses, em 1934, quando enfrentou o risco de aniquilamento. Os líderes norte-coreanos, agindo com habilidade, procuraram fazer as alterações de rumo necessárias para enfrentar as novas circunstâncias e as novas condições do cerco imperialista:

a crise (...) resultou na apresentação de uma nova legislação sobre inversões estrangeiras, relações com empresas capitalistas e novas zonas de livre comércio. Numerosas leis foram sancionadas para o sistema bancário, na área do trabalho e das inversões. (...) Numerosas empresas de Hong Kong, Japão, França e Coréia do Sul formularam compromissos de abertura de fábricas de manufaturas na RPDC (...) No outono de 1990, pela primeira vez foram mantidas conversações entre primeiros ministros, em Seul em setembro, em Pyongyang em outubro. Em 1991, ambas as Coréias se uniram às Nações Unidas, apesar da prolongada oposição dos norte-coreanos a entrar nesse organismo aceitando duas bandeiras coreanas. (...) em 13 de dezembro de 1991 (...) os primeiros-ministros da RdC e da RPDC firmaram um acordo de reconciliação, não agressão, cooperação econômica e intercâmbio em muitos campos e a livre passagem entre as duas metades do país para estimadas 10 milhões de famílias separadas pela guerra.[80]

No mesmo diapasão, Kim Il Sung tornou público, em 1993, o seu Programa de Dez Pontos da Grande Unidade Pan-Nacional para a Reunificação da Pátria, propondo: 1) Fundar um Estado unificado independente, pacífico e neutro, mediante a grande unidade pan-nacional; 2) Lograr a unidade baseada no amor à nação e no espírito de independência nacional; 3) Unir-se no espírito de fomentar a coexistência, a co-prosperidade e interesses comuns e entregar tudo à causa da reunificação da Pátria; 4) Unir-se após por fim a toda luta política que fomente a divisão e o enfrentamento entre os compatriotas; 5) Confiar mutuamente e unir-se após eliminar por igual os temores de agressão ao Norte ou ao Sul, à vitória contra o comunismo ou à comunização; 6) Valorizar a democracia e ir de mãos dadas pelo caminho da reunificação da Pátria, sem rechaçar um ao outro por professar diferentes doutrinas e opiniões; 7) Proteger os bens materiais e espirituais do indivíduo e da organização e fomentar a sua utilização em favor da conquista da grande unidade nacional; 8) Todos os integrantes da nação devem compreender-se e confiar uns nos outros e unir-se mediante contatos, viagens e diálogos; 9) Os integrantes da nação que residem no Norte e no Sul do país e no ultramar devem fortalecer a solidariedade entre si na busca da reunificação da Pátria; 10) Valorizar enormemente os que contribuam para a obra da grande unidade nacional e da reunificação da Pátria.

Uma vez mais a proposta da RPDC – apesar de amplo apoio tanto no Norte como no Sul – não obteve qualquer resposta concreta por parte da Coréia do Sul, instigada pelos Estados Unidos ao confronto.

Em 2000, Kim Jong Il – que substituiu Kim Il Sung, retomou os esforços norte-coreanos buscando a reunificação da Coréia e realizou um encontro com o Presidente da Coréia do Sul, Kim Tae Jun, em Pyongyang. Foi adotada, então, a Declaração Conjunta Norte-Sul de 15 de junho, passo decisivo para desanuviar as tensões entre as duas Coréias. Outra reunião foi realizada em 4 de Outubro de 2000, quando foi aprovada a Declaração de 4 de Outubro, que deu desdobramentos concretos à Declaração de 15 de junho, incluindo a criação do Parque Industrial conjunto de Kaesong, o estabelecimento de uma zona especial de paz e cooperação no Mar do Oeste, o restabelecimento da ligação férrea entre o Norte e o Sul, a participação conjunta nos jogos olímpicos de Pequim, em 2008, e intercâmbios culturais e familiares.

Inconformados com a aproximação entre as duas Coréias, os EUA passaram a pressionar o governo de Seul, ampliaram as manobras militares conjuntas e a nuclearização da Coréia do Sul e impuseram novas sanções econômicas à RPDC, elevando enormemente as tensões na península e inviabilizado maiores avanços na reunificação entre o Norte e o Sul da Coréia.

OS EUA AMEAÇAM A RPDC COM O OBJETIVO DEDESESTABILIZÁ-LA

É nesse momento de graves dificuldades da RPDC que os EUA decidiram apertar o cerco econômico, diplomático e militar contra a RPDC, com o objetivo de levá-la ao colapso. O pretexto foi o programa de energia nuclear norte-coreano, iniciado em 1962 através de um pequeno reator nuclear com fins investigativos, de apenas 4 MW, cedido pela URSS. Este reator já havia sido colocado em 1977 sob a supervisão da Agência Internacional para a Energia Nuclear da ONU (AIEA). Posteriormente, a Coréia construiu um reator de gás-grafite, de 30 MW, que iniciou suas operações em 1987, em Yongbyon, tendo a AIEA sido convidada a inspecioná-lo.

É nesse contexto que no início da década de 90 a imprensa e as agências de notícias norte-americanas começaram a martelar o tema do “perigo nuclear norte coreano”:

Os repórteres (...) escrevem de forma rotineira que a Coréia do Norte tem recusado as inspeções; entretanto (...), a Coréia do Norte havia permitido seis inspeções formais da AIEA no sítio de Yongbyon, entre maio de 1992 e fevereiro de 1993. (...) Nessa época já era uma rotina entre os analistas estadunidenses influentes sustentar que Kim Il Sung era malvado ou louco, ou ambas as coisas, que o seu regime devia ser derrubado e, se fosse necessário, que seus recursos nucleares deveriam ser eliminados pela força.[81]

As ameaças mais graves iniciaram em 26 de janeiro de 1993,

quando o presidente Bill Clinton, recém empossado, anunciou que as manobras militares “Espírito de Equipe” seriam retomadas (...). Em fins de fevereiro, o General Lee Butler, encarregado do novo “Comando Estratégico” dos Estados Unidos anunciou que estava mudando o alvo das armas nucleares estratégicas (isto é, as bombas de hidrogênio), pensadas para a antiga URSS, para a Coréia do Norte.[82]

Em março de 1993, dezenas de milhares de soldados estadunidenses chegaram para exercícios militares na Coréia e com eles vieram bombardeiros B-1B e B-52 da base de Guam, além de vários navios de guerra com mísseis de cruzeiro. Diante de tais ameaças dos EUA, a RPDC anunciou que poderia abandonar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNPN), visto que este prevê que os países sem armas nucleares não podem ser ameaçados por aqueles que as têm (algo que os EUA nunca respeitaram).

Uma vez terminadas as manobras militares, a RPDC aceitou reabrir negociações e não levou adiante a sua ameaça de abandonar o TNPN. Porém, a AIEA, instigada pelos Estados Unidos, insistiu em “inspeções especiais” – que nunca havia solicitado em nenhuma parte –, inclusive em áreas sem instalações nucleares, o que, evidentemente, não foi aceito pelos norte-coreanos. Depois de muitas tensões, em julho de 1993, os norte-coreanos propuseram que o seu programa nuclear – baseado em reatores de grafite e urânio natural – fosse substituído por reatores de água leve, proporcionados pelos Estados Unidos, menos propensos a serem utilizados com fins militares. Essa proposta causou surpresa, pois tornaria a RPDC dependente do abastecimento externo de combustível.

Depois de muitas marchas e contramarchas, em outubro de 1994 foi acordado que

em troca do congelamento de seus reatores de grafite e da permissão de inspeções completas sob o TNPN, um consórcio de nações (...) proporcionaria os reatores de água leve (...). Enquanto isso, os Estados Unidos forneceria o petróleo para solucionar os problemas energéticos da RPDC e começaria a incrementar gradualmente relações diplomáticas.[83]

Os Estados Unidos, porém, não só não honraram os compromissos assumidos – alegando falta de aprovação pelo Congresso e outras desculpas – como autorizaram a Coreia do Sul a estender o alcance de seus mísseis balísticos a todo o território da RPDC e

desenvolveram um plano que denominaram ‘dissuasão sob medida’ (...) o qual apela a operações militares conjuntas sul-coreanas-estadunidenses contra a Coreia Popular (...) incluindo incidentes menores (...) tanto em tempo de paz como de guerra. (...) O Plano apela a um ataque antecipado (preemptive), baseado na percepção de um lançamento iminente de mísseis norte-coreanos. O vice-comandante do Comando Coreia das Nações Unidas, general Jean-Marc Jouas, explicou que mísseis norte-coreanos podiam ser rapidamente alvejados ‘antes de estarem em posição de serem empregados’. Para dizer isso em termos simples, poderia ser lançado um ataque a sítios de mísseis com base em suposições, mesmo quando os mísseis norte-coreanos não estivessem em uma posição de fogo.[84]

A resposta da RPDC – após anos de paciente espera e covardes ameaças – foi denunciar o referido acordo e a retomar o seu programa nuclear, retirando-se do TNPN e anunciando que diante das reiteradas ameaças nucleares dos EUA, passaria a produzir suas próprias armas nucleares, como meio de dissuasão a qualquer agressão norte-americana.

O que pouco depois foi concretizado, através da realização de dois testes nucleares. Da mesma forma – comprovando o seu elevado desenvolvimento científico e tecnológico – a RPDC colocou em órbita, em abril de 2012, um satélite de observação da terra e lançou à continuação diversos satélites no espaço.

Em retaliação, os EUA e seus aliados na ONU – violando abertamente o tratado internacional do espaço exterior que garante o direito de explorar o espaço a “todos os Estados, sem discriminação de qualquer espécie” – fizeram aprovar no Conselho de Segurança da ONU, em 22 de janeiro de 2013, a resolução 2087, com duras sanções à RPDC.

Na ocasião, o representante da RPDC na ONU, So Se Pyon denunciou a hipocrisia e discriminação da referida resolução: “Houve não menos de 2.000 testes nucleares e pelo menos 9.000 lançamentos de satélites no mundo desde que a ONU existe, mas nunca houve uma única resolução do seu Conselho de Segurança que proibisse testes nucleares e lançamento de satélites[85] Sem acovardar-se diante das ameaças estadunidenses e de seus cúmplices na ONU, a Coreia Popular efetuou

o seu terceiros teste nuclear em 12 de fevereiro de 2013. Vários dias depois, numa aparente referência ao Iraque e à Líbia, as mídias norte-coreanas recordaram os destinos que haviam acontecido àqueles que haviam abandonado suas armas nucleares em resposta à pressão estadunidense. Estes exemplos, acrescentaram, “ensinam a verdade de que a chantagem nuclear dos EUA deve ser contida com contra-medidas substanciais, não com compromissos ou retirada.”[86]

Em resposta, os Estados Unidos – além de um endurecimento sem precedentes das sanções econômicas, financeiras e diplomáticas – ampliaram em muito a sua ofensiva belicista contra a RPDC, com total cobertura da ONU, sempre calada diante das reiteradas transgressões norte-americanas do TNPN e das normas do Direito Internacional. E, em 7 de março de 2013, aprovaram no Conselho de Segurança a resolução 2094, que ampliou as sanções e impôs inclusive a inspeção dos navios e aviões norte-coreanos que fossem suspeitos de transportar bens proibidos, em um atentado à soberania da RPDC e à Carta das Nações Unidas.

Em um alentado artigo, o Professor Gregory Elich denunciou essa prepotência e arrogância estadunidense e elencou um conjunto de provocações e ameaças contra a RPDC:

Num aumento do arsenal sul-coreano, os EUA aprovaram a venda de 200 bombas destruidoras de bunkers, adequadas para alveja instalações subterrâneas norte-coreanas. (...) A Coreia do Sul também planeja comprar da Europa 200 mísseis de cruzeiro Taurus, lançados do ar, os quais são capazes de penetrar até seis metros de concreto reforçado. (...) Os EUA constituíram uma organização militar responsável pela entrada na Coreia Popular e captura de instalações e armas nucleares no caso de uma crise na RPDC. Naquele cenário, as forças dos EUA também prenderiam “figuras chaves” (...) Não foi revelado quais indivíduos norte-coreanos seriam sujeitos à prisão pelas forças dos EUA. (...) A administração Obama nunca quis negociar com a Coreia Popular e, claramente, pretende efetuar mudança de regime quando acumula sanções sobre sanções e desenvolve planos militares que ameaçam a existência da RPDC. Com efeito, ações dos EUA encorajaram a Coreia Popular a desenvolver um programa de armas nucleares como seu único meio de dissuasão realista contra ataques (...).[87]

Sem intimidar-se – apesar das ameaças e sanções – a RPDC desenvolveu com êxito diferentes tipos de mísseis de médio e longo alcance e detonou a sua Bomba de Hidrogênio, aumentando enormemente o seu poder de dissuasão e tornando-se uma potência nuclear de primeira linha.

Só então – depois de inúmeras ameaças infrutíferas, que se chocaram com a firmeza e a altivez dos norte-coreanos –, os EUA – já sob o governo de Donald Trump – baixaram o tom e propuseram um diálogo com a RPDC, como é de conhecimento público...

Desde então, Trump já viajou três vezes ao Sudeste Asiático, para encontrar-se com Kim Jong Un – a quem não cansa de elogiar como “um grande líder de seu povo”. O último encontro, inclusive, ocorreu em território norte-coreano, em Panmunjon, onde exatamente os Estados Unidos se viram forçados a assinar, por primeira vez, um armistício sem vitória...

Ao mesmo tempo em que a RPDC reafirma a sua disposição em discutir a desnuclearização de toda a península coreana (incluindo o Sul), nega-se a qualquer desarmamento unilateral e exige contrapartidas concretas, como o levantamento das sanções, um tratado de paz e garantias contra agressões militares. O que até agora os EUA se negam a aceitar.

Em recente artigo, de 12 de julho de 2019, intitulado “Quão real é a nova flexibilidade da administração Trump com a Coréia do Norte”, Gregory Elich observa:

Se a Coreia do Norte desnucleariza-se ou não, depende inteiramente dos EUA. Se a administração Trump acredita que pode intimidar a Coreia do Norte forçando um desarmamento unilateral está, então, infelizmente, errada. Se, por outro lado, vier a reconhecer que a única maneira de alcançar o seu objetivo é oferecer alguma medida de reciprocidade, a desnuclearização se torna uma meta alcançável. Neste ponto, há pouca indicação de que os EUA estejam preparados para ir além da posição anterior. (...) É uma noção curiosa essa expectativa de que nada precisa ser oferecido à Coreia do Norte em troca de atender às exigências dos EUA. Mais estranha ainda é a convicção de que a Coreia devia estar satisfeita em ser atormentada por sanções incapacitantes para cada concessão que faz. Mas o imperialismo e a arrogância andam de mãos dadas. Não há razão, no entanto, para esperar que os norte-coreanos sejam servis. “A Coreia do Norte quer ações, não palavras”, observa Christopher Green, do International Crisis Group. “Eu não tenho certeza se os EUA estão mentalmente prontos para isso, mesmo agora.[88]

A PAZ E A REUNIFICAÇÃO NÃO ACONTECEM DEVIDO AOS EUA

Evidentemente, não temos a pretensão – neste breve estudo sobre a história da Coréia – de abarcar todos os aspectos e esclarecer todas as controvérsias acerca da atribulada trajetória do povo coreano. A nossa intenção é unicamente levantar o véu de desinformação e de falsidades que as agências de notícias e de propaganda norte-americanas e ocidentais disseminam em todo o mundo, buscando apresentar a Coréia como membro proeminente do “eixo do mal” e pintar os Estados Unidos como o mais “pacífico” e “benemérito” Estado que a humanidade já conheceu.

Os fatos aqui relatados, depois de minuciosa pesquisa – baseada, na sua maioria, em autores ocidentais sem qualquer simpatia com a República Popular Democrática da Coréia – demonstram de forma cabal as atrocidades cometidas pelos norte-americanos na Guerra da Coréia, dizimando 20% da sua população e arrasando sem necessidade o país. Da mesma forma, mostram a total irresponsabilidade e prepotência com que os seus “estadistas” manejavam sua momentânea superioridade em armas nucleares nos anos 50, ameaçando por diversas vezes a humanidade com uma hecatombe nuclear.

Pode-se dizer que a Terceira Guerra Mundial só não ocorreu nesse momento devido à pressão de seus aliados europeus – que temiam serem os primeiros a sofrer uma eventual retaliação soviética – e pela extrema cautela da URSS e da China. Esta, depois de ter aplicado – junto com os norte-coreanos – uma tremenda surra nas tropas estadunidenses, retornou ao paralelo 38, evitando aniquilá-las, para não justificar uma vindita nuclear.

Encerrada a guerra com o armistício, todos os esforços para estabelecer uma paz definitiva e para realizar a reunificação pacífica da Coréia foram barrados pelos Estados Unidos, que não escondem o seu objetivo de manter na Coréia do Sul uma poderosa base militar e nuclear, de onde possam ameaçar a China, a ex-URSS e a própria Coréia do Norte.

Frustrados por não terem conseguido forçar a República Popular Democrática da Coréia ao colapso nos anos que se seguiram ao desmantelamento do Leste Europeu da URSS, os Estados Unidos continuam tentando por todos os meios estrangulá-la, sem qualquer respeito para com a autodeterminação dos povos e o Direito Internacional. Para isso, os EUA utilizam a sua hegemonia na ONU, aplicando todo o tipo de sanções econômicas, financeiras e diplomáticas contra o heróico povo norte-coreano e usam todo o seu poderio tecnológico e militar para ameaçá-lo.

Como afirmou o vice-Diretor do Departamento Internacional do Partido do Trabalho da Coréia, Pak Gun Kwang na conversa que tivemos em 2014, quando de nossa viagem à RPDC:

Os Estados Unidos mantém 30 mil soldados e mais de 1.000 artefatos nucleares na Coréia do Sul. Ameaçam permanentemente a RPDC com seus B52 e suas bases nucleares no Hawai e em Guam. Por isso a RPDC viu-se obrigada a desenvolver suas armas nucleares. Os EUA não conseguem liquidar com a RPDC devido ao seu poderio nuclear. Essa é a única garantia da paz.

 

NOTAS

[1] CUMINGS, Bruce. El Lugar de Corea en El sol – Una historia moderna. Córdoba: Comunic-arte Editorial, 2004, pp. 244-245.

[2] GARCIA ALVAREZ, Raul I. e PARDILLO GOMEZ, Mayra. Corea Sí. Pyongyang, 1992, p. 115.

[3] CUMINGS, idem, p. 219.

[4] FRIEDRICH, Jörg. Yalu – à beira da terceira guerra mundial. Rio de Janeiro, 2011, p. 188.

[5] CUMINGS, idem, p. 251.

[6] CUMINGS, idem, pp. 478-479.

[7] JO AM e NA CHOL GANG. Corea en El Siglo XX. Pyongyang, 2002, p. 98.

[8] TRIAS, Vivian. Historia del imperialismo norte-americano-2. La hegemonia:1919-1963. Buenos Aires, 1977, p. 224.

[9] CUMINGS, idem, p. 233.

[10] HOROWITZ, D. Estados Unidos Frente a la Revolución Mundial (de Yalta al Vietnam). Barcelona, 1968, p. 147.

[11] VITORINO, William. Guerra na Coréia – A origem de um conflito. São Paulo, 2010, p. 59.

[12] ZENTNER, Christian. Grandes Guerras de nuestro tiempo – Las Guerras de La Postguerra (I). Barcelona, 1980, p. 70.

[13] GIORDANO, Mário Curtis. História do Século XX. Aparecida/SP, 2012, p. 572.

[14] CUMINGS, idem, p. 231.

[15] HO JONG HO, KANG SOK HUI E PAK THAE HO. L’impérialisme US, provocateur de la guerre de Corée. Pyongyang, 1993, p.85.

[16] Idem, p. 85.

[17] Idem, p. 88.

[18] Idem, p. 89.

[19] Compilação de provas documentais da provocação pelos imperialistas americanos da Guerra Civil da Coréia. Pyongyang, p.115.

[20] CUMINGS, idem, p. 276.

[21] New York Herald Tribune, 30.10.49. In: CUMINGS, idem, p. 286.

[22] Idem, 01.11.49.

[23] CUMINGS, idem, p. 284.

[24] New York Times, 20.06.50.

[25] Daily Mail, Londres, 19.06.50, edição parisiense.

[26] FO317, fragmento nº 84057, Gascoigne a FO, 27 de junho de 1950.

[27] CUMINGS, idem, p. 293.

[28] STONE, Irving F. La historia oculta de La Guerra de Corea. Cuba, 1952, p. 62.

[29] CUMINGS, idem, p. 304.

[30] Idem, p. 305.

[31] Idem, p. 300.

[32] Idem, pp. 300; 303-304.

[33] New York Times, 24.08.50.

[34] New York Times, 29.09.50.

[35] HEIFERMAN, R., SHERMER,D. e MAYER, S.L. Guerras do Século 20. Rio de Janeiro, 1975, p. 463.

[36] FRIEDRICH, idem, p. 243.

[37] FRIEDRICH, idem, p. 259.

[38] CUMINGS, idem, p. 309.

[39] FRIEDRICH, idem, p. 263.

[40] CUMINGS, idem, p. 311.

[41] Idem, p. 317.

[42] HOROWITZ, idem, p. 149.

[43] CUMINGS, idem, p. 318.

[44] Idem, p. 325.

[45] FRIEDRICH, idem, p. 334.

[46] HOROWITZ, idem, p. 149.

[47] CUMINGS, idem, pp. 325-326.

[48] FRIEDRICH, idem, pp. 287-290.

[49] CUMINGS, idem, p. 319.

[50] Idem, p. 320.

[51] BRITTO, Letelba R. de. Um brasileiro na Coréia, Rio de Janeiro, 1952, p. 16; p. 20; pp. 102-105.

[52] CUMINGS, idem, pp. 322-323.

[53] FRIEDRICH, idem, p. 423.

[54] Idem, pp. 413-414; p. 421; p. 436.

[55] Idem, p. 443.

[56] HOROWITZ, idem, p. 151.

[57] CUMINGS, idem, pp. 324-329.

[58] FRIEDRICH, idem, p. 467.

[59] CUMINGS, p. 545.

[60] Idem, pp. 546-548.

[61] KIM IL SUNG. Informe al 6º Pleno del Comité Central del Partido del Trabajo de Corea, 05.08.53. In: KIM IL SUNG. La Construcción del Socialismo. Buenos Aires, 1973, p. 60.

[62] KIM IL SUNG. Sur l’édification socialiste. In: SURET-CANALE, J e VIDAL, J.E. A República Popular Democrática da Coréia. Lisboa, 1977, p. 43.

[63] HONG SEUNG EUN. Le Developpement Economique de la Republique Populaire Démocratique de Corée. Pyongyang, 1990, pp. 38-39.

[64] KIM IL SUNG. Rapport d’activité Du Comité Central. In: SURET-CANALE, J. e VIDAL, J.E., idem, p. 43.

[65] SURET-CANALE, J. e VIDAL, J.E., idem, p.50.

[66] KIM IL SUNG. Rapport d’activité du Comité Central. In:SURET-CANALE, J. e VIDAL, J.E., Idem, p. 45.

[67] HONG SEUNG EUN, idem, p. 27.

[68] CUMINGS, idem, p. 481.

[69] KIM IL SUNG. Rapport d’activité..., idem, p. 87-88.

[70] SURET-CANALE, J. e VIDAL, J.E., idem, p.10.

[71] CUMINGS, idem, pp.481-483.

[72] HONG SEUNG EUN, idem, pp. 49-50; pp. 56-59.

[73] CUMINGS, idem, p.482.

[74] HONG SEUNG EUN, idem, p. 60.

[75] SURET-CANALE, J. e VIDAL, J.E., idem, p. 118.

[76] Idem, pp. 119-120.

[77] SURET-CANALE, J. e VIDAL, J.E., idem, p. 128-129.

[78] CUMMINGS, idem, pp. 528-529.

[79] CUMMINGS, idem, p. 484.

[80] Idem, p. 484; p. 531.

[81] Idem, pp. 540, 542-543.

[82] CUMMINGS, idem, p. 543.

[83] Idem, pp. 554-555.

[84] ELICH, Gregory. Como Obama fomenta uma crise na Península Coreana. CounterPunch, 21.04.13.

[85] Idem.

[86] Idem.

[87] Idem

[88] ELICH, Gregory. Quão real é a nova flexibilidade da administração Trump com a Coreia do Norte?CounterPunch, 12.07.19.