João Bosco e Aldir Blanc
Às 22h55min do dia 22 de novembro de 1910 – há exatos 100
anos – ecoaram na Baía da Guanabara os tiros dos canhões da
poderosa Armada do Brasil, recentemente renovada na Inglaterra
com as mais mortíferas belonaves do mundo. Entre os navios
rebelados estavam os poderosos dreadnoughts Minas Gerais
e o São Paulo, encouraçados pesados de última geração, armados
com canhões de grande alcance e enorme poder destrutivo.
No
elegante Clube da Tijuca, a nata da sociedade carioca
participava de uma luxuosa recepção, promovida pelo recém
empossado presidente da República – o marechal Hermes da
Fonseca.
Os
telégrafos funcionam freneticamente dando notícias
desencontradas, até que os primeiros oficiais e sub-oficiais
fugidos desembarcam no cais e relataram que os marinheiros – em
sua imensa maioria negros – haviam se apossado pela força dos
navios e assumido o seu comando. A revolta teria causado a morte
de diversos oficiais e marinheiros. O chefe dos revoltosos – o
marinheiro de 1ª classe João Cândido Felisberto, gaúcho de
Encruzilhada do Sul –, manobrava a esquadra, com a maestria de
um Almirante e ameaçava bombardear a capital da República, caso
as suas reivindicações não fossem atendidas.
E quais
eram, 22 anos após a abolição da escravidão, as reivindicações
dos marinheiros rebelados?
Exigiam
que o Presidente da República pusesse fim à chibata e aos
castigos físicos na Marinha, houvesse tratamento digno aos
marinheiros, soldos justos e anistia aos revoltosos: “Nós
marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo
mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira (...) que
durante vinte anos de República ainda não foi bastante para
tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da pátria (...) que
V. Excia. faça (...) reformar o Código Imoral e Vergonhoso que
nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo e outros
castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo (...) Tem V. Excia
o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória, sob
pena de ver a Pátria aniquilada.”
Antecedentes
O Brasil
foi o último do mundo a abolir a escravidão, mas isso não
significou uma verdadeira libertação do povo negro. Excluídos do
direito à propriedade pela “Lei das Terras” de 1850, excluídos
do trabalho livre pela imigração européia e por políticas
racistas que pregavam o “branqueamento” da população brasileira,
despossuídos dos mais elementares direitos civis, os negros
sobreviveram na periferia dos centros urbanos ou em áreas rurais
marginais, em condições de subemprego crônico.
Na Marinha
Brasileira, a oficialidade, era toda ela branca, sem exceção, e
provinha de famílias oligárquicas, até bem pouco escravocratas.
Já os marujos, na imensa maioria, cerca de 90%, eram negros,
mulatos ou mestiços recrutados à força entre as camadas mais
pobres da sociedade, muitos retirados das prisões. Assim –
apesar de terem decorrido décadas desde a abolição –, as
relações entre os oficiais e os marinheiros continuavam
reproduzindo as relações das senzalas e o uso da chibata para o
castigo dos marinheiros era visto como algo normal.
É verdade
que logo após a proclamação da República, havia sido editado o
decreto nº 3, em 16 de novembro de 1889, abolindo os castigos
corporais nos navios de guerra. Mas, em 12 de abril de 1890, o
decreto nº 328 reintroduziu a chibata na Marinha, através da
chamada Companhia Correcional, no que eram enquadrados os
marinheiros considerados “indisciplinados”. Seu artigo 8º
determinava: “Para as faltas leves, prisão e ferro na
solitária, a pão e água; faltas leves repetidas, idem, idem por
seis dias; faltas graves, 25 chibatadas.” É desnecessário
dizer que esse número não era respeitado, ficando ao arbítrio do
comandante a sua quantidade, que em geral excedia em muito o
prescrito.
Um
episódio, aparentemente trivial, espelha bem o recorte racial e
de classe existente na Marinha Brasileira da época. Tão logo
ingressou na Marinha, João Cândido Felisberto teve que abrir mão
do nome Felisberto, pois havia um suboficial com o mesmo nome,
que não aceitava ser confundido com um negro...
É essa
realidade anacrônica que entra em choque, no início do século
XX, com a modernização da Marinha. De fato, em 1906, em um
ambicioso plano de modernização de sua Armada, o governo
brasileiro encomendou da Inglaterra dois grandes encouraçados –
o Minas Gerais e o São Paulo – três cruzadores,
seis contratorpedeiros, seis torpedeiros, seis torpedeiros
menores, três submarinos e um navio carvoeiro, tornando-se a
terceira mais poderosa marinha de guerra do mundo.
Para
aprender o manejo desses modernos navios, centenas de marujos
brasileiros – entre eles João Cândido Felisberto, já então
marinheiro de 1ª classe – foram enviados em 1908 para os
estaleiros de New Castle, na Inglaterra, onde passaram a
conviver com marinheiros de todo o mundo e tiveram contato com
as idéias avançadas da classe operária européia. Da mesma forma,
tomaram conhecimento da revolta do encouraçado Potenkim –
ocorrida em 1905, na frota do Mar Negro. Todas essas
experiências inspiraram a sua decisão de lutar por condições
dignas de vida e de trabalho na Marinha Brasileira. O próprio
João Cândido confirmou, anos depois, que a preparação da Revolta
da Chibata teve início na Inglaterra.
A
Revolta
De volta
ao Brasil, no início de 1910, João Cândido passou a articular a
revolta junto com Francisco Dias Martins, o “Mão Negra”, tendo
como principais reivindicações a abolição da chibata, a melhoria
da alimentação e a elevação dos soldos. O país vivia os
rescaldos da campanha presidencial que dividira o país entre os
partidários do Marechal Hermes da Fonseca – o vencedor – e o
civilista Rui Barbosa.
Inicialmente, a revolta foi marcada para o dia 15 de novembro,
mas um forte temporal nesse dia fez com a mesma fosse adiada
para 24 ou 25 de novembro. Um acontecimento inesperado, porém,
antecipou a deflagração do movimento.
No dia 16
de novembro, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes – do
encouraçado Minas Gerais – foi retalhado por 250
chibatadas, por haver ferido levemente, com uma navalha de
barbear, o cabo Valdemar de Sousa que lhe denunciara por haver
tentado introduzir duas garrafas de aguardente no navio. Com
requintes de selvageria e perante toda a tripulação reunida para
assistir o castigo, Marcelino foi açoitado até perder os
sentidos. Reanimado à força, o castigo prosseguiu, até quase a
morte. Dias depois, quando o Comandante José Carlos de Carvalho
visitou o encouraçado Minas Gerais, para negociar o fim
da revolta, afirmou: “as costas desse marinheiro
assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.
Naquela
noite, nos porões do encouraçado, os marinheiros juraram que
isso teria fim e que Marcelino seria o último marinheiro
chibatado. A revolta foi antecipada para a noite do dia 22 de
novembro, quando fosse dado o toque de recolher. Como disse João
Cândido, anos depois: “Naquela noite o clarim não pediria
silêncio e sim combate!”
E assim
foi. Às 22h55min do dia 22 de novembro explodiu a insurreição a
bordo do encouraçado Minas Gerais. O Comandante João
Batista das Neves e dois oficiais que resistiram foram mortos,
os demais aprisionados. Pouco depois, a guarnição do São
Paulo também se sublevou e forçou os oficiais a abandonarem
o navio. Não houve mortes. Mas, no cruzador Bahia, a luta
também cobrou vítimas. Às 22h50, quando o Minas Gerais
disparou um tiro de canhão para comunicar-se com os navios
comprometidos com a rebelião, o São Paulo e o Bahia
responderam. Pouco depois, o encouraçado Deodoro, mais
antigo, também respondeu.
A revolta
havia sido vitoriosa. Os rebeldes dominavam os navios mais
poderosos e controlavam a baía da Guanabara, na capital da
República. As tripulações dos navios menores haviam sido
transferidas para esses quatro navios – onde tremulava a
bandeira vermelha – para fortalecer a sua capacidade de combate.
As baterias de terra e os poucos navios fiéis ao governo
permaneciam silenciosos diante do poderio esmagador da frota
insurreta. O Rio de Janeiro estava à mercê dos rebeldes. A
esquadra rebelada manobrava – dirigida por João Cândido e seus
marinheiros – com grande habilidade, sem qualquer oficial a
bordo.
Surpreendido pelos acontecimentos, o Presidente Hermes da
Fonseca retornou ao Palácio do Catete, tomando conhecimento da
primeira mensagem dos rebeldes: “Não queremos a volta da
chibata. Isso pedimos ao Presidente da República, ao Ministro da
Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos,
bombardearemos cidade e navios que não se revoltarem.” Sem
meios para resistir à revolta, Hermes da Fonseca não sabia o que
fazer.
O Senador
Pinheiro Machado, homem forte do governo, enviou o deputado
Federal pelo Rio Grande do Sul – Comandante retirado José Carlos
de Carvalho – para parlamentar com os marujos. Ao voltar de sua
missão, Carvalho prestou um depoimento ao Congresso que
estarreceu a nação, mostrando o barbarismo com que os
marinheiros eram tratados.
Em suas
proclamações, os revoltosos deixam claro o motivo central da
luta: “Por isto, pedimos a V.Excia. abolir o castigo da
chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito de nossa
liberdade, a fim de que a Marinha Brasileira seja uma Armada de
cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus
senhores o direito de serem chicoteados.”
Nesse
contexto, coube ao Senador Rui Barbosa apresentar um projeto de
anistia aos insurretos, à qual se somariam o compromisso do fim
do castigo da chibata e a melhoria das condições de trabalho na
Marinha. Depois de um intenso debate – onde alguns parlamentares
questionaram sua concessão antes que os rebeldes depusessem as
armas – a anistia foi aprovada com rapidez, tanto no Senado como
na Câmara dos Deputados. Concluída a votação da anistia e
anunciado pelo Governo o fim dos castigos físicos na Marinha, no
dia 26 de novembro a bandeira vermelha foi arriada dos navios e
os mesmos foram entregues em perfeita ordem aos novos
comandantes.
A
anistia traída e a vingança contra os revoltosos
Ainda não
havia secado a tinta com que havia sido assinada a anistia e já
as oligarquias dominantes começaram a tramar a repressão aos
anistiados. No mesmo dia 26, o Comandante do cruzador Bahia
enviou correspondência indicando 10 nomes que deveriam ser
expulsos da Marinha. No dia 27, os canhões dos navios foram
desativados e as munições desembarcadas. No dia 28 o decreto nº
8.400 autorizou a expulsão da Marinha de qualquer marinheiro “cuja
permanência se tornar inconveniente à disciplina”.
Mas o pior
ainda estava por vir. No dia 9 de dezembro, depois de ampla
difusão do boato de que o exército invadiria os navios e as
bases navais para massacrar os marinheiros, teve início uma
revolta no Batalhão Naval da ilha das Cobras e no cruzador
ligeiro Rio Grande do Sul, sem a participação de João Cândido e
seus seguidores. Isolados, os revoltosos foram dizimados, apesar
de hastearem a bandeira branca. Em seguida, o governo se valeu
do acontecido para obter a aprovação do Estado de Sítio e
deflagrar a repressão aos anistiados.
Na noite
de Natal, mais de uma centena de marinheiros foi jogada no
cargueiro Satélite, do Lóide Brasileiro, com destino a
Santo Antônio da Madeira e Linha Telegráfica, na Amazônia. No
caminho, muitos foram fuzilados. Os demais, ao chegarem na
Amazônia, foram sendo entregues, ao longo do rio, a seringueiros
que necessitavam de mão-de-obra. A maioria acabou morrendo de
doenças tropicais ou na semi-escravidão. Referindo-se a esses
fatos, Edmar Morel – o escritor que descobriu João Cândido no
fim de sua vida e o livro A revolta da Chibata –
denuncia: “Ganhei o original de um documento inédito. O
relatório do comandante Carlos Storryu, do Satélite, cargueiro
em que foram fuzilados diversos marinheiros anistiados, alguns
com os pés e mãos algemados.”
No início
de 1911, outros 2.000 marinheiros foram expulsos da Marinha.
João
Cândido e outros 17 líderes – mesmo não tendo qualquer
envolvimento com essa segunda revolta – foram encerrados em uma
masmorra sem ventilação e asfixiados com cal viva, lançada sobre
eles. Dezesseis morreram, só João Cândido e “Pau de Lira”
sobreviveram. Alquebrado, João Cândido foi internado no Hospital
de Alienados e dado como louco.
Analisando
essa traição, Evaristo de Moraes Filho, no prefácio à terceira
edição de A Revolta da Chibata, afirma: “A verdade é
que a anistia que fora concedida pelo governo num momento de
pânico e de medo, nunca chegou realmente a ser aplicada. Refeito
do susto, o governo prendeu, deportou, massacrou os
participantes da revolta, com requintes de barbaridade e de
vingança tardia.”
Perseguido até a morte
Quando
recebeu alta do Hospital de Alienados, João Cândido foi
novamente encerrado em uma prisão, onde permaneceu por 18 meses
aguardando julgamento. Sem recursos para contratar um advogado,
foi defendido por Evaristo de Moraes, contratado pela Irmandade
da Igreja Nossa Senhora do Rosário, o qual se negou a receber
qualquer remuneração pelo seu trabalho. Só em 1912, João Cândido
foi julgado e absolvido. Tão logo saiu da prisão, com os pulmões
tomados pela tuberculose, foi expulso da Marinha.
Desempregado e com a saúde abalada, buscou algum trabalho para
sobreviver. Inicialmente, tentou emprego no Lóide Brasileiro,
mas nada conseguiu. Na Costeira, a resposta também foi
negativa. Depois de muito caminhar, conseguiu trabalho no
patacho Antonico. Mas pouco tempo depois foi demitido por
pressão da Marinha. Conseguiu emprego no barco Ramona,
depois no Ana, mas sempre acabava demitido. Vítima
permanente de perseguição, o “Almirante Negro” – que conseguira
a proeza de manobrar com maestria as mais modernas e poderosas
belonaves – teve de desistir de ser marinheiro. Foi convidado
para trabalhar como “tira”, mas recusou com altivez. Preferiu
sobreviver vendendo peixe no cais do porto.
Alguns
anos depois, foi descoberto pelo escritor comunista Edmar Morel,
que, com base em longas conversas com ele, foi o primeiro a
relatar a epopéia dos marinheiros rebelados em seu livro
A Revolta da Chibata, publicado em 1963. Não por acaso,
Edmar Morel será punido com a dispensa compulsória e a cassação
de seus direitos políticos pelo golpe de 1964.
Durante o
Governo Goulart, João Cândido recebeu uma humilde pensão, mas
esta lhe foi retirada pela ditadura militar. O “Almirante Negro”
veio a falecer em 1969, aos 89 anos de idade, em situação de
penúria
Em 24 de
julho de 2008, o Presidente Lula sancionou a Lei 11.756/08,
concedendo a anistia póstuma a João Cândido Felisberto e a seus
companheiros de rebelião. E, em 20 de novembro de 2008, o
“Almirante Negro” teve a sua estátua inaugurada na Praça Quinze,
no Rio de Janeiro, com a presença de Luís Inácio Lula da Silva.
Ainda que
ignorado pela maioria dos historiadores oficiais, a sua luta
mudou o Brasil e fez com que nunca mais qualquer marinheiro
brasileiro sofresse a infâmia da chibata. João Cândido
Felisberto viverá para todo o sempre na memória do povo
brasileiro e seu exemplo germinará nas novas gerações de
combatentes pela Liberdade e pelo Socialismo!