Milhões de brasileiros expulsos do campo passaram
a viver na periferia das grandes cidades, em espaços que
restaram da monopolização dos especuladores imobiliários. Esta
situação mostra que o cerne da Reforma Urbana é a questão da
terra.
Ao longo de todo o século XX, milhões de
brasileiros foram expulsos do campo pelo latifúndio improdutivo
e jogados na periferia das grandes cidades. Aí passaram a viver
sem as mínimas condições de habitação, saneamento, saúde e
educação e sem perspectivas de um trabalho digno. A população
urbana do Brasil – que nos anos 1940 representava apenas 26% da
população total – passou em 2000 a 82,5%.
Atualmente, 155 milhões de brasileiros moram nas cidades,
convivendo com uma carência habitacional de em torno de 21
milhões de moradias, sendo 8 milhões de déficit quantitativo
(falta absoluta de moradias) e 13 milhões de déficit qualitativo
(habitações subnormais, irregularidade fundiária urbana). Esse
processo de “favelização” tem crescido muito mais rapidamente do
que o aumento da população urbana. Assim, nos anos 1980, o
crescimento da população favelada foi o triplo do crescimento da
população urbana e na década de 1990 o dobro. Nas 9 maiores
regiões metropolitanas, a periferia cresceu 30% nos anos 1990,
contra apenas 5% em suas áreas centrais. Hoje, nas grandes
cidades brasileiras, a população das favelas representa de 20% a
30% da população total.
Se relacionarmos a carência absoluta de 8 milhões de moradias
com a renda das famílias, constatamos que 90,3% ganham até 3
salários mínimos e 96,3% até 5 salários mínimos. Dessas
famílias, 95,2% estão nas regiões metropolitanas. Ao mesmo
tempo, temos 6 milhões de imóveis vazios, o que nos indica que
esse enorme déficit habitacional decorre da falta de poder
aquisitivo da maioria da população, fruto da perversa
concentração de renda existente em nosso país.
De 1940 a 1980, apesar de o PIB ter crescido ao ritmo de mais de
7% ao ano, manteve-se a concentração de riqueza herdada de nossa
formação escravista, baseada na grande propriedade da terra. As
“décadas perdidas” de 1980 e 1990 aumentaram ainda mais a
exclusão social e essa absurda concentração de renda. Hoje, os
10% mais ricos são donos de mais de 75% de toda a riqueza
nacional, enquanto os 90% mais pobres dispõem apenas de 25% 1.
Da mesma forma, caiu a participação dos trabalhadores na renda
nacional de 55,5% (em 1959) para 39,1% (em 2005). Em um Brasil
que possui 60 milhões de famílias 45% da renda e da riqueza
nacionais são usufruídos por apenas 5 mil famílias. Dessas, 80%
estão em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte.
Assim como o latifúndio impera no campo – onde menos de 2% dos
proprietários são donos de mais de 50% das terras cultiváveis –
nas cidades um punhado de especuladores monopoliza as terras
urbanas edificáveis. São “vazios urbanos” (1/3 das áreas
edificáveis das cidades brasileiras), mantidos sem uso, à espera
de valorização pelos investimentos públicos (água, luz, esgotos,
pavimentação, áreas de lazer, equipamentos públicos em geral)
pagos pelo conjunto da população. Investimentos que – junto com
as inversões privadas em habitação, comércio e serviços – fazem
com que um hectare de solo urbano chegue a valer até dez milhões
de reais nas áreas nobres de nossas grandes cidades, contra
cerca de quatro mil reais por hectare em áreas rurais
agriculturáveis.
A supervalorização do solo urbano
Essa situação criou em nosso país um mercado imobiliário
altamente monopolizado, onde as “mais-valias” decorrentes dos
investimentos públicos e de inversões do conjunto da sociedade
têm sido apropriadas por um punhado de especuladores urbanos. O
resultado é o enorme encarecimento da terra urbana, onerando a
indústria da construção civil (para quem a terra é um insumo),
dificultando ao poder público a aquisição de áreas para a
produção de habitações de interesse social e tornando
inacessível aos trabalhadores a aquisição de lotes para a
construção de suas moradias.
Em decorrência dessa enorme monopolização, o valor médio do solo
urbano triplicou em apenas duas décadas. Na capital paulista,
por exemplo, o preço dos terrenos – que nos anos 1970
representava 10% a 15% do custo da habitação – no final dos anos
1990 passou a representar de 30% a 40% desse custo. No Brasil,
entre 1959 e 1990 o preço dos lotes urbanos aumentou 8 vezes
mais do que o salário mínimo. Por isso, a disputa pela terra
tornou-se o centro dos conflitos sociais urbanos, paradoxalmente
em um país continental que dispõe de mais de 4,5 hectares por
habitante.
O mercado imobiliário privado só consegue produzir habitação
para famílias com renda superior a dez salários mínimos (18% da
população total), onde o déficit é de apenas 0,8%, não tendo
condições sequer de atender à maioria da “classe média”. Não
tem, pois, a menor possibilidade de suprir a demanda de moradias
das famílias com renda de até cinco salários mínimos.
Essa terrível e injusta realidade urbana reproduz a lógica da
sociedade capitalista e do chamado “livre mercado”. Uma lógica
excludente e concentradora de renda, que desmente o hipócrita
discurso liberal ou neoliberal de que as forças do mercado são
capazes de levar a uma sociedade equilibrada e justa.
Ao contrário, o mercado capitalista nasce, ele mesmo, da
desigualdade entre os que produzem e os que se apropriam, e
reproduz de forma ampliada essa desigualdade. A única
alternativa que tem sobrado para as camadas empobrecidas da
população é a ocupação de áreas ociosas – terras privadas que
não interessam ao mercado (de preservação ou de risco), ou
terras públicas. Por tudo isso, é necessária a intervenção do
Poder Público para regular o mercado fundiário e imobiliário,
destinar recursos subsidiados para os segmentos mais
empobrecidos da população e exigir o cumprimento da função
social da propriedade do solo urbano.
Deve-se salientar, ainda, que os vultosos investimentos do PAC
em infra-estrutura social (moradia e saneamento básico), gerando
uma virtuosa “explosão” imobiliária, agravaram ainda mais o
problema, ao encarecer enormemente o solo urbano, que passou a
ser avidamente disputado pelas empresas construtoras, deixando
cada vez menos áreas disponíveis para habitação popular.
A captação das “mais-valias” fundiárias e o enfrentamento dos
“vazios urbanos”
Para enfrentar essa situação, impõe-se a utilização de
mecanismos que recuperem as “mais-valias” fundiárias em
benefício do conjunto da população e garantam espaços nas
cidades para a Habitação de Interesse Social (HIS).
O reconhecimento pela Constituição de 1988 da função social do
solo urbano deu uma base sólida para a conquista do “direito à
cidade para todos”, meta central da Reforma Urbana. O Estatuto
da Cidade (LF 10.257/01), ao regulamentar os artigos 182 e 183
da Constituição, forneceu instrumentos para políticas públicas
urbanas que democratizem as cidades brasileiras.
Para a recuperação das “mais-valias” fundiárias – alguns autores
preferem definir como “gestão social da valorização da terra” 2
– o Estatuto da Cidade (EC) dispõe em suas Diretrizes Gerais a
“justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do
processo de urbanização” (art. 2º, inciso IX) e a “recuperação
dos investimentos do poder público de que tenha resultado a
valorização de imóveis urbanos” (art. 2º, inciso XI). E, ao
tratar dos “instrumentos gerais”, cita a “contribuição de
melhoria“ (art. 4º, inciso IV, alínea b). Ressalte-se, porém,
que tanto essas Diretrizes Gerais quanto a “contribuição de
melhoria” não são auto-aplicáveis, necessitando de legislação
específica.
Para garantir espaços para os “pobres” morarem e combater os
“vazios urbanos” especulativos, o EC, ao regulamentar o § 4º do
art. 182 da Constituição, dispõe sobre a punição da “retenção
especulativa de precisam definir áreas para Habitação de
Interesse Social, através da “instituição de zonas especiais de
interesse social” (art. 4º, inciso V, alínea f), ou siimóvel
urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização”
(art. 2º, inciso VI, alínea e), através do “parcelamento,
edificação ou utilização compulsórios” (art. 5º e 6º), “IPTU
progressivo no tempo” (art. 7º) e “desapropriação com pagamento
em títulos da dívida pública” (art. 8º). Mas, a utilização
desses instrumentos está condicionada à existência de Planos
Diretores e à indicação em “lei municipal específica” (art. 5º)
das áreas sujeitas à sua aplicação. Assim como os Planos
Diretores definem áreas para habitação, uso industrial, serviços
ou mistas, milares.
Igualmente, encontra-se no Congresso Nacional, pronto para ser
votado, o PL 3057/00 – Lei de Responsabilidade Territorial
Urbana – que altera a Lei do Parcelamento do Solo Urbano (LF
6766/79), sem que até agora tenha sido incluída a proposta de
que em todo novo parcelamento do solo urbano seja destinado um
percentual mínimo de 10% a 15% para a produção de HIS, como já
ocorre em vários países. É imprescindível uma grande mobilização
para que conquistemos esse importante avanço no PL 3057/00.
Também é preciso garantir preferência no acesso aos recursos do
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) aos
municípios que tenham em seus planos diretores previsão de áreas
de habitação de interesse social (Zoneamento de Interesse
Social), que exijam um percentual de terras para HIS nos novos
parcelamentos e utilizem os instrumentos de combate aos “vazios
urbanos” previstos no § 4º do art. 182 da Constituição.
Infelizmente, apesar de todos os instrumentos previstos na nossa
Constituição e no Estatuto da Cidade, pouco temos avançado. Os
enormes e poderosos interesses dos donos de terras até agora têm
prevalecido sobre as conquistas legais. Fica cada vez mais claro
que essa é uma questão eminentemente política, cuja solução
depende da mais ampla mobilização daqueles que são os maiores
interessados – os milhões de excluídos do acesso às cidades,
lançados em suas periferias em condições sub-humanas. Sem
dúvida, a questão central da Reforma Urbana continua sendo a
TERRA!
Raul Carrion é deputado estadual do PCdoB no Rio Grande do Sul e
representante da UNALE no Comitê Técnico de Planejamento e
Gestão do Solo Urbano do CONCIDADES e Elena Graeff é arquiteta e
assessora da bancada do PCdoB na Câmara Municipal de Porto
Alegre
Bibliografia
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Notas
1 POCHMANN, MÁRCIO. “O País dos Desiguais”. In Le Monde
Diplomatique Brasil. Outubro de 2007.
2 Entre outros argumentos, a expressão “gestão social” traria um
reforço à idéia de envolver amplamente a sociedade nesse
processo, de forma a permitir o controle social da aplicação
desses instrumentos (SANTORO, Paula & CYMBALISTA, Renato.
“Gestão Social da Valorização da Terra”, Cadernos Pólis, 9. São
Paulo: Instituto Pólis, 2004.