O Memorial
do Ministério Público nasceu em agosto de 2000 como Projeto
Memória. Em abril de 2003, recebeu o nome de Memorial. Uma das
suas primeiras tarefas foi a coleta de entrevistas para a
organização de um banco de história oral e para a sua
publicação. Nascia a coleção Histórias de Vida do Ministério
Público do Rio Grande do Sul.
Os
primeiros livros foram publicados em 2001. Com os subtítulos de
“Rememorações para o Futuro” e “Os alicerces da construção”. A
ênfase era no resgate das memórias dos membros mais antigos da
instituição. Através dos depoimentos, conhecemos o Ministério
Público das décadas de 1930 e 1940. O método escolhido foi o de
"histórias de vida". Segundo a professora Loiva Otero Félix,
responsável na época pelo projeto, esse método foi considerado
por ser "um caminho intermediário entre o modelo tradicional de
entrevista fechada, em que o entrevistado responde a um conjunto
de questões elaboradas de igual forma para vários entrevistados,
e o de entrevista aberta, em que as perguntas nascem ao sabor
das questões narradas" (FÉLIX, 2001, p. 33-34).
No primeiro
volume foram publicadas 13 entrevistas de membros que
ingressaram no Ministério Público entre as décadas de 1930 e
1950
[1].
No segundo, foram publicados mais 13 depoimentos de ingressos
entre as décadas de 1950 e 1970.
O terceiro
volume foi publicado em 2005. Algumas alterações foram feitas.
Manteve-se e método de "histórias de vida". Adotou-se, todavia,
um viés temático. Além das perguntas a respeito das origens
familiares, escolaridade, opção pela carreira jurídica e
ministerial, elegeu-se um tema que norteou os depoimentos. No
terceiro volume, foi a mulher no Ministério Público. Foram
publicadas 16 entrevistas de mulheres ligadas à instituição: 11
membros, duas servidoras e três esposas de membros. Um
diferencial em relação aos dois primeiros volumes foi a
introdução da textualização. A textualização consiste na
transposição da linguagem oral para escrita, com supressão de
repetições, estruturação de frases e parágrafos, sem, todavia,
alterar o conteúdo da entrevista. Muitas vezes, os depoentes,
antes de aprovarem as entrevistas, e ao se depararem com a
linguagem falada, a estranham, e tendem a suprimir passagens
importantes ou enxertar textos escritos, alterando o teor do que
foi narrado. A textualização evita que isso ocorra e facilita o
processo de aprovação da entrevista.
O quarto
volume veio em 2006. O recorte temático foi a participação dos
membros do Ministério Público na Assembleia Constituinte de
1988. Foram publicadas 11 entrevistas: seis de membros do
Ministério Público gaúcho; quatro de membros do Ministério
Público paulista; e uma de um deputado constituinte. A
importância do tema motivou uma nova publicação, em 2008,
alusiva aos 20 anos da Assembleia Constituinte. Foram então
publicados 11 depoimentos: sete de membros do Ministério Público
do Rio Grande do Sul; dois de membros do Ministério Público
paulista; e dois de políticos cujas ações se relacionaram
diretamente à história institucional.
Em 2009,
foi publicado o sexto volume da série Histórias de Vida do
Ministério Público do Rio Grande do Sul. Dessa vez, o tema
escolhido foi a Corregedoria-Geral, já que 2009 marcou os
cinquenta anos de sua fundação. Foram publicadas dez
entrevistas, todas de ex-Corregedores-Gerais do Ministério
Público.
No ano de
2010, o tema escolhido foi a atuação dos promotores no Tribunal
do Júri, rememorada por dez promotores, em alguns casos que
marcaram a história do Rio Grande do Sul por sua repercussão
como o assassinato de Eliete Grimaldi por Olímpia Mena Zen em
1980 ou o crime da gangue da Matriz em 1986.
Em 2017, a
coleção Histórias de Vida do Ministério Público do Rio Grande do
Sul está de volta com o tema “Atuação do Ministério Público na
Área Ambiental”. O presente volume reproduz depoimentos de 12
membros do Ministério Público gaúcho. As entrevistas versam
principalmente a respeito da atuação dos promotores na área
ambiental, abordando também aspectos legislativos, evolução
institucional, questões mais importantes, e desafios atuais.
O termo
meio ambiente é, sem dúvida, um dos mais repetidos na
contemporaneidade. Reportagens, documentários, livros, artigos,
Organizações não Governamentais - ONGs -, museus, etc., são
dedicados ao tema. Nas campanhas políticas, no Brasil e no
mundo, é uma das matérias mais cobradas dos candidatos.
Tragédias como a recente em Mariana, Minas Gerais, nos recordam
das consequências de negligenciá-lo. Essa ubiquidade nos faz
esquecer o quão recente é a atenção dada às questões ambientais.
Foi na década de 1970 que a velocidade de exploração da natureza
e as primeiras grandes catástrofes decorrentes da utilização
predatória de recursos ensejaram preocupação internacional com o
tema
[2].
A partir
desse momento, os ordenamentos jurídicos dos diversos países
passaram a dar atenção à matéria. No Brasil, de acordo com
Marchesan, Steigleder e Cappelli, o Direito Ambiental aparece
como ramo autônomo somente a partir de edição da Lei da Política
Nacional do Meio Ambiente em 1981. Até essa data, não havia um
conceito amplo de meio ambiente, sendo ele tratado “pelo direito
privado, através do direito de vizinhança, ou de providências
legais e administrativas setoriais, tomando os bens ambientais
de forma estanque, sem que entre eles houvesse alguma
concatenação” (MARCHESAN, STEIGLEDER, CAPPELLI, 2013, p. 18).
Antes de
1988, o Ministério Público exercia a autoria da ação cível e,
claro, também no processo penal, sendo dominus litis.
Nenhum problema com relação a isso. Mas houve uma transformação
muito importante do Ministério Público, na esfera cível. Até a
década de oitenta, o Ministério Público era custos legis,
ele era o fiscal da lei no processo civil e só atuava nas ações
de interesse público, seja pela natureza da lide, seja pela
qualidade da parte. Antes da década de 1980, um pouco antes de
1988, o Ministério Público era só interveniente no processo
civil. Falava depois das partes e falava só quando a Fazenda
Pública estivesse presente, ou um menor, ou em questões de
direito de família. Era muito restrita a atuação do Ministério
Público no processo civil e era uma atuação, digamos assim,
subsidiária no processo. Porque ele falava para verificar a
legalidade do procedimento e se havia alguma parte que era
considerada hipossuficiente, ele estava ali para zelar pelos
seus interesses, como no caso da curatela, da tutela do menor.
Essa foi uma grande transformação que aconteceu na década de
1980, um pouco antes da Constituição Federal. Ela começa nessa
lei da política nacional do meio ambiente e continua com a lei
da ação civil pública. Aí, Ministério Público se transforma
radicalmente e passa a ser protagonista de uma ação coletiva que
é a ação civil pública. Então ele muda muito o seu perfil, o seu
dia a dia; porque antes, no processo civil, ele recebia um
processo para dar um parecer. E aí ele se transforma enormemente
e passa a ser o autor, em nome de uma coletividade.
Sílvia
Cappelli, no CAOMA, iniciou um trabalho de realização de
oficinas em Porto Alegre e no interior, já a partir do ano 2000.
Cappelli explica como eram organizadas essas oficinas:
(...) o
Centro de Apoio buscava um parceiro público para o
aprofundamento de um assunto de atuação comum na gestão
ambiental, ou seja, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e o
Ministério Público, ou também, a Secretaria Municipal do Meio
Ambiente de Porto Alegre. O Centro de Apoio organizava todo o
material de legislação, doutrina e jurisprudência existente a
respeito daquele tema e convidava também alguns promotores mais
experientes na área da temática a ser debatida. Por outro lado,
o órgão de gestão também convidava os seus funcionários. Depois
nós contatávamos com a Associação do Ministério Público, com o
procurador-geral e levávamos em conta a divisão espacial da
Associação do Ministério Público para definir as regiões em que
nós íamos aplicar essa oficina de trabalho.
A
promotora acentua que a cada oficina de trabalho era
perceptível, no Centro de Apoio, o ingresso de mais ações, havia
mais Termos de Ajustamento, ou seja, essas oficinas estavam
atingindo a sua finalidade.
Vários dos
depoentes recordaram a importância das oficinas de trabalho.
Paulo da Silva Cirne recorda: “Para mim foi muito importante ter
aquele contato com outros colegas, receber aquelas informações,
o que de certa forma facilitou o meu trabalho. A partir desse
momento, percebi a necessidade do entrosamento entre as
instituições que atuam na área ambiental”.
Observa-se, ao ler a sentença, uma perspectiva um tanto
reducionista por parte do magistrado, que estava analisando as
atividades danosas de um ponto de vista bastante pontual. Isso
foi corroborado nas entrevistas, no sentido de que o Ministério
Público se aparelhou muito mais cedo para a tutela ambiental do
que a magistratura. Mas isso mudou. Em 2004, Ana Maria Marchesan
declarou que o Poder Judiciário não havia ainda despertado para
a tutela dos interesses difusos (SOUTO et alli, p. 59). Doze
anos depois, a promotora comenta que já há muitos juízes
interessados e estudiosos do tema, ainda que mais na
magistratura federal que na estadual. Annelise Steigleder também
vê progresso:
Na
verdade, houve uma sensibilização do Poder Judiciário. De modo
geral, dá para dizer que eles também estão se preparando, estão
se qualificando. Houve uma especialização das Varas Judiciais, e
isso faz com que os juízes ali classificados acabem começando a
lidar mais com as questões ambientais. Então, eu penso que
melhorou muito desde quando eu entrei.
Foram
instalados pontos de coleta de óleo de cozinha em vários locais
da cidade e a população aderiu. O termo de cooperação foi um
grande sucesso e modelo para ações semelhantes.
Convém
lembrar que a destinação dos resíduos sólidos também tem uma
dimensão social. Annelise Steigleder comenta o trabalho que
realiza há três anos relacionado a resíduos sólidos, logística
reversa
[10]
e inclusão social dos catadores. Steigleder ressalta que é
necessário um trabalho em rede com o Ministério Público do
Trabalho e com a Defensoria Pública para que os catadores sejam
incluídos não somente do ponto de vista formal, mas que possam
obter regularização jurídica. Isso inclui pressionar a
Prefeitura para que sejam firmados os termos de permissão de
uso, para que os convênios firmados entre o DMLU e cooperativas
incluam condicionantes de gestão ambiental, para evitar que
nessas cooperativas aconteçam danos ambientais. E também
trabalhar junto à Câmara de Vereadores para que produza
legislação adequada. Para a promotora “É muito complicado, mas é
bem interessante. Conseguimos tirar de uma situação de
invisibilidade uma população muito vulnerável”.
Outro tema
relevante que aparece nos depoimentos é a proteção do bioma
pampa. O bioma pampa ocupa uma área de 176,5 mil Km² e é
constituído principalmente por vegetação campestre – gramíneas,
herbáceas e algumas árvores. Ocupa 63% do território do Rio
Grande do Sul, existindo também na Argentina e no Uruguai.
Annelise Steigleder explica o problema relativo ao bioma pampa
que está sendo manejado pela Promotoria do Meio Ambiente de
Porto Alegre. O Código Florestal de 2012 não incluiu uma
proteção jurídica para campos naturais e nativos. Assim, o
proprietário ou possuidor rural tem dificuldades de caracterizar
sua propriedade no Cadastro Ambiental Rural - CAR
[13].
O Decreto nº 52.431/15 do governo estadual, que regulamenta o
CAR no Rio Grande do Sul, distingue entre áreas rurais
consolidadas por supressão de vegetação nativa por atividade
pecuária e áreas remanescentes de vegetação nativa.
A consequência
da distinção
é a dispensa da reserva legal para os
imóveis rurais de até quatro módulos fiscais localizados no
bioma pampa. Já que o artigo 67 do novo Código Florestal
prescreve que, para as áreas rurais consolidadas, a reserva
legal será constituída com os remanescentes de vegetação nativa
em 22 de julho de 2008. A Promotoria do Meio Ambiente ingressou
com uma ação civil pública contestando essa interpretação e
considerando o artigo 67 do Código Florestal inconstitucional.
Para o MP, e para diversos pesquisadores na área, o pastoreio
não causa supressão de vegetação nativa. A ação, que ainda está
em andamento, é no sentido de que se exija a reserva legal no
campo, o que significaria preservar 20% da cobertura florestal.
Para Annelise Steigleder o decreto teve motivação econômica e
política com o objetivo de:
(...)
converter campo nativo em soja, pois hoje o plantio de soja está
dando muito mais dinheiro do que a pecuária. A paisagem do bioma
do pampa fica alterada completamente. Consequentemente, todo o
conhecimento tradicional associado à vida do homem do bioma, o
gaúcho, fica atingido, porque vai perder seu modo de vida.
Enfim, há muitos impactos em vários níveis.
Os alagamentos e inundações são um problema grave em todo o
Estado. Para alguns gera incômodo em períodos de chuvas
intensas. Para os que habitam em áreas de risco, população pobre
e desassistida, representam risco de vida. Nas promotorias
regionais, as mais atingidas pelos alagamentos são a do Sinos e
a de Gravataí.
Ricardo Schinestsck Rodrigues, Promotor de Justiça Regional
Ambiental da Bacia Hidrográfica do Sinos, conta que quando
assumiu a regional a população havia elegido as inundações como
o principal problema. Havia um
plano de
atuação na Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos que estabelecia
que uma das ações deveria ser o zoneamento das áreas sujeitas a
inundações. Elaborou-se, então, o mapeamento dos trechos
inferior, médio e superior da Bacia Hidrográfica do Rio dos
Sinos, sujeitos a alagamentos. Esse mapeamento foi apresentado
em outubro de 2015. Houve, segundo o promotor, resistência das
prefeituras, que julgavam que perderiam autonomia sobre seus
territórios, e do setor privado, na maioria das áreas existentes
entre Canoas e Esteio. Principalmente entre a BR 448 e a BR 116
– empresas imobiliárias que adquiriram grandes áreas para
construir conjuntos habitacionais e zonas industriais ou mistas.
Houve diversas reuniões e audiências públicas e a promotoria
emitiu recomendações aos municípios e aos órgãos ambientais
estaduais – a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e a FEPAM –
para que suspendessem toda e qualquer nova licença que pudesse
interferir nessa deliberação do COMITESINOS. Ao mesmo tempo, a
METROPLAN começou um estudo para planejamento da gestão da
planície de inundação. Assim, a recomendação do MP vinculou a
suspensão dos atos administrativos que pudessem interferir na
planície de inundação à validação desse estudo.
Ximena
Ferreira transformou o tema, inundações urbanas, em objeto de
sua dissertação de mestrado defendida na Espanha em julho de
2016. Há sistemas de drenagem urbana sustentável, que estão
sendo adotados na Europa, de reprodução artificial de ambientes
naturais que foram extintos, como os banhados. Os telhados
verdes e pisos permeáveis já são utilizados aqui, mas seu uso
pode ser ampliado. Mas, segundo a promotora, há muita
resistência das prefeituras que trabalham com base no
imediatismo e sem nenhum planejamento.
Outro tema
que se destacou nas entrevistas foi à proteção ao patrimônio
cultural. Ana Maria Marchesan, autora da obra “A Tutela do
Patrimônio Cultural sob o enfoque do Direito Ambiental” conta
como o Ministério Público gaúcho se aparelhou para trabalhar com
a área:
E aí os
méritos são muito da Dra. Sílvia Cappelli como coordenadora do
Centro de Apoio do Meio Ambiente. Ela organizou oficinas de
trabalho muito legais, temáticas, sobre vários assuntos
ambientais, dentre eles o patrimônio cultural. Essas oficinas
eram muito bem preparadas antes de acontecerem. Nós, eu, a
Annelise Steigleder e outros colegas daqui participávamos junto
com colegas do interior, junto com técnicos do Instituto do
Patrimônio Histórico (...). Fora isso a estrutura do Centro de
Apoio elaborava pastas fantásticas, que eram como cartilhas do
patrimônio cultural, que eram o material a ser fornecido para os
promotores: peças, artigos de doutrina, um material muito bom,
até hoje uso esse material.
A
promotora considera que hoje o Ministério Público do RS está
muito mais habilitado a lidar com o patrimônio cultural, mas
julga que não houve avanço na sua proteção desde que começou a
trabalhar com a matéria: “A proteção em si eu diria que padece
dos problemas de recursos econômicos. Quando o Estado se
depaupera, essa área se fragiliza também”. Annelise Steigleder
aponta que o Estado faz o mínimo e o particular não tem nenhum
incentivo para proteger o seu patrimônio. Isso faz com que
muitos dos casos que chegam à promotoria sejam judicializados.
“Acabamos invariavelmente ingressando com ações contra o
proprietário, que não tem dinheiro para fazer a obra, e contra o
município, que também se recusa a fazer as obras emergenciais”.
Alexandre Saltz aponta a ausência de política pública para gerir
o patrimônio cultural. O promotor considera que a
desapropriação, que é um instrumento urbanístico de proteção ao
patrimônio, poderia ser utilizada caso houvesse uma política
nesse sentido. Ximena Cardozo Ferreira também destaca a ausência
de política pública e chama a atenção para a carência de
legislação municipal. Conta que a promotoria de Taquara já
tentou por duas vezes implantar legislação sobre tombamento e
nas duas vezes os projetos de lei encaminhados pelo Poder
Executivo foram derrubados pelo Legislativo. A resistência é dos
proprietários dos prédios e das imobiliárias. Mesmo assim, a
promotoria firmou um compromisso de ajustamento de conduta com o
município para criar um inventário dos bens culturais de
Taquara: “após anos de trabalho, conseguimos que a FACCAT –
Faculdades de Taquara – fizesse, arrolando os principais bens
merecedores de proteção”.
Com
respeito a casos de sucesso, Ana Maria Marchesan considera que
há mais chance quando envolvem ações que precedem qualquer
intervenção, uma vez que depois que os danos se consumam é muito
difícil revertê-los e na seara do patrimônio cultural o dano
muitas vezes implica na perda do bem. Também julga que há mais
possibilidade de um bom desfecho quando há participação da
comunidade.
Um caso
relatado por Annelise Steigleder exemplifica um caso no qual o
engajamento da comunidade pode gerar um desfecho favorável. O
cemitério São José foi, em parte, destruído, pois as lápides não
eram inventariadas, nem tombadas.
E aí,
graças ao trabalho de doutorado da professora Luísa Nitschik
Carvalho, de Pelotas, se conseguiu caracterizar o valor cultural
dos túmulos. E esse caso é especialmente interessante porque, na
verdade, ele não está totalmente concluído, mas, do limão, se
está fazendo uma limonada. Depois de tantas reuniões, tantos
diálogos com a CORTEL - a empresa gestora do cemitério -,
acabaram contratando a professora que, no âmbito da tese dela,
fez um inventário muito bom com relação às obras de arte
funerária. Ela levantou a história das famílias. (...) A
professora acabou sendo contratada para fazer um memorial lá.
Ainda está em andamento. Ela está fazendo o projeto do memorial,
vai fazer roteiros visitação, material didático.
Já outro
caso, lembrado por Ana Maria Marchesan, recentemente teve uma
solução negativa, apesar do amplo envolvimento da comunidade: as
casas de Luciana de Abreu. Em 2002 a construtora Goldsztein
obteve licença para demolir seis casarões da década de 1930
localizados na Rua Luciana de Abreu para construir um prédio de
seis andares. No ano seguinte, o Ministério Público ajuizou uma
ação civil pública para impedir a demolição que ficou suspensa.
A ação estava no STJ que, no final de 2016, decidiu pela
demolição das casas. A construtora demoliu as casas em 23 de
dezembro em uma ação que surpreendeu os moradores pela rapidez.
Apesar disso, Ana Marchesan considera o caso emblemático: “Ali,
para mim, foi uma lição importante no sentido de que o
Ministério Público deixasse de trabalhar só para a comunidade e
passasse a trabalhar com a comunidade. Foi um exemplo claro
disso”. Infelizmente, os interesses econômicos e de especulação
imobiliária prevaleceram.
Um dos
grandes problemas enfrentado pelo MP na defesa do meio ambiente
e na proteção da saúde de trabalhadores e consumidores é o uso
imoderado e inadequado de agrotóxicos em nosso país e no Rio
Grande do Sul. Essa questão foi mencionada nas entrevistas.
Em seu
depoimento, Paulo da Silva Cirne assevera:
Há sete
anos somos campeões mundiais. Possivelmente atingiremos em 2016
o oitavo título consecutivo do país que mais utiliza agrotóxicos
no mundo. (…) O consumo de agrotóxicos no planeta no ano de
2014, teve um aumento de 93%, mas no Brasil o seu crescimento
foi de 190%. (…) Não há razões para que esse consumo tenha se
elevado tanto (…) novas 'fronteiras agrícolas' abertas no país
nos últimos anos não justificam tal crescimento.
Daniel
Martini, ainda que reconheça que não se pode pensar “numa
agricultura totalmente orgânica”, também denuncia essa
realidade: “O Brasil é o maior consumidor do mundo e o RS
consome acima da média nacional. No Brasil, se traçarmos uma
média (…) teremos 5 litros de agrotóxico por habitante, no ano.
No RS, a média sobe para 8 litros”. Martini relata que no Brasil
são liberados agrotóxicos que são proibidos em outras partes do
mundo, como o paraquat. E conclui: “o agrotóxico pode ser
considerado o mal do século (…) o MP deve dar atenção, não só na
defesa do meio ambiente, mas também na defesa da saúde das
pessoas. (…) Estamos nos transformando (…) em seres doentes, uma
geração potencialmente causadora do próprio enfraquecimento da
espécie”.
Certamente
o uso em alta escala de agrotóxicos em nosso Estado tem relação
com o fato do RS ter as mais elevadas taxas de mortalidade por
câncer no Brasil, com 327 mortes para cada 100 mil habitantes,
em 2013. E a previsão é de 1040 novos casos de câncer por 100
mil habitantes, em 2016. A pesquisadora Márcia Sarpa Campos
Mello ressalta que o agrotóxico mais usado no Brasil, o
glifosato, é proibido em toda Europa e “está relacionado aos
cânceres de mama e próstata, além de linfoma e outras mutações
genéticas. (…) o paraquat (gramoxone e outros) causa necrose dos
rins e morte das células do pulmão, que terminam em asfixia (…).
Proibido na Europa e até mesmo na China, onde é fabricado (…)
[é] um dos mais usados hoje no Brasil
[14]
Segundo o
relatório “Um alerta sobre o Impacto dos Agrotóxicos na Saúde” –
da Associação Brasileira de Saúde Coletiva –
70% dos alimentos in natura consumidos no país
estão contaminados por agrotóxicos. Desses, segundo a ANVISA,
28% têm substâncias não autorizadas. E mais de 50% dos
agrotóxicos usados no Brasil são banidos em países da União
Europeia e nos Estados Unidos.
Alexandre
Saltz relata a sua luta contra o uso do agrotóxico FACET, da
BASF, que causava sérias alterações biológicas em quem o
utilizava:
um piloto
agrícola que fazia aplicações desse produto começou a ter uma
despigmentação na pele, ele era moreno, quase negro (…) ficou
literalmente branco, por causa de um produto cujo princípio
ativo era a quinona clorada. (…) conseguimos a liminar e a venda
do produto foi suspensa e depois acabou sendo proibida.
Na mesma
linha, Paulo da Silva Cirne ressalta que o tema da saúde dos
trabalhadores tem grande importância na questão dos agrotóxicos:
“a legislação brasileira exige que os postos de saúde e os
hospitais façam uma notificação quando constatem que uma pessoa
está contaminada pelo uso de agrotóxico ou está com algum
sintoma de contaminação. O que se observou é um número muito
baixo de notificações (…), abaixo da realidade.” E relata sua
ação para que os profissionais de saúde – em todos os
atendimentos que possam ter relação com a aplicação de
agrotóxicos – busquem identificar os produtos aplicados,
“inclusive, para podermos pressionar a ANVISA para que acelere
alguns processos que proíbem determinados princípios ativos (…)
já banidos nos países mais evoluídos”.
Eduardo
Coral Viegas lamenta a impossibilidade de enfrentar isso com uma
legislação estadual mais protetiva, pois “as decisões dos
tribunais superiores são de que as leis estaduais não podem
estabelecer regramentos mais restritivos ao uso de agrotóxicos
do que a lei federal. Assim, se o governo federal autoriza que
determinado agrotóxico seja comercializado no Brasil (…) um
Estado não pode impedir a comercialização no seu território”.
Prosseguindo em sua análise, Paulo da Silva Cirne diz que em
relação ao “receituário agronômico” – criado para coibir o uso
inadequado de agrotóxicos – o produtor rural “necessita de
receita e de um técnico que a assine” e “esse profissional
deveria visitar a propriedade rural, (…) dimensionar
adequadamente o tipo e a quantidade do agrotóxico para uma
determinada cultura”. Mas, alerta ele, “o problema é que muitas
vezes, o profissional que assina essa receita não vai até a
propriedade verificar as condições acima mencionadas. (...) Nos
hortigranjeiros, a situação é ainda mais grave, porque algumas
culturas não têm um produto específico para ser utilizado. (…)
em alguns casos, os produtores usam produtos inadequados para
aquelas culturas, (…) sobras de agrotóxicos utilizados em outras
plantações.” E defende a rastreabilidade total dos agrotóxicos
usados, possível devido às normas existentes de comercialização
e destinação final de seus recipientes.
Referindo-se ao Projeto de Lei Federal nº 3.200/2015, que altera
a atual Lei dos Agrotóxicos (Lei n º 7.802/1989), Sílvia
Cappelli afirma que se está tentando enfraquecer ainda mais a
legislação, retirando competências do IBAMA e da ANVISA.
Isso é uma
pressão articulada do poder econômico, inclusive internacional.
Eles são realmente muito fortes. (…) As fábricas de agrotóxicos,
de transgênicos e de medicamentos costumam ser as mesmas no
plano internacional. Daí porque essa pressão dos agrotóxicos
fica fácil de entender.
Daniel
Martini complementa que o Projeto de Lei retrocede a níveis de
proteção inferiores à Lei 7.802, o que é inconstitucional, já
que em matéria de direitos fundamentais não pode haver
regressão. Um exemplo elucidativo é adotar a nomenclatura de
'defensivo fitossanitário', eliminando a nomenclatura de
'agrotóxico'.
Já o Fórum
Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos – do qual
o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul participa –
denuncia que “se aprovado o PL não haverá necessidade de
registro de herbicidas, tais como o 2,4D, o paraquat e o
glifosato, por não se enquadrarem no conceito de 'defensivos
fitossanitários' proposto.
Outro
grave problema que tem sido enfrentado pelo MP-RS é a mineração
de areia no Delta do Jacuí e no Lago Guaíba. Há cerca de três
anos, houve grande movimentação da imprensa condenando a
degradação ambiental decorrente da mineração de areia nos
afluentes do Guaíba. Ato contínuo – diante da importância do
insumo areia para a construção civil e para as obras públicas –
diversas empresas passaram a defender a imediata liberação do
Guaíba para a mineração de areia, sem qualquer estudo ou
zoneamento ambiental. Até um mapa que indicava as áreas
concedidas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM
– a cada empresa apareceu.
Em relação
a esse tema, Daniel Martini faz uma análise bastante abrangente:
O MP
recomendou à SEMA que suspendesse não só a mineração, mas também
a pesquisa, até que seja realizado um zoneamento efetivo do lago
(…) A região hidrográfica do lago Guaíba concentra a parte
final, ou a foz, de diversos rios e bacias hidrográficas. (…)
pela sua característica de lago – ou seja, um ambiente lêntico,
um ambiente que não tem escoamento, corredeiras, enfim – é um
local de depósitos de sedimentos. (…) no Rio dos Sinos (…) o rio
mais poluído do Estado (…) encontraremos cromo hexavalente sendo
lançado no rio (…) um cromo que se acumula no organismo dos
peixes, é altamente cancerígeno e transmissível, inclusive de
mãe para filho pelo aleitamento materno, mesmo dez, quinze
vinte, trinta anos após a ingestão pela mãe. (…) O Guaíba é
manancial para o abastecimento público. (…) é possível que o
tratamento público não esteja habilitado para fazer o tratamento
desse elemento químico (…) [a] mineração no lago Guaíba é algo
que precisa ser visto com cautela (…) hoje a mineração está
suspensa por conta de uma ação do MP.
Na referida
recomendação, o MPRS afirma “que eventual atividade de pesquisa
ou de extração de areia no Lago Guaíba pode comprometer o
abastecimento de água de Porto Alegre” e cita informação
prestada pelo DMAE, em 16 de março de 2011, segundo a qual “As
unidades de tratamento de água não são projetadas para atender
alterações severas da qualidade da água, decorrentes do
revolvimento de sedimentos”
[15].
Sobre
isso, Sílvia Cappelli complementa: “A Promotoria de Porto Alegre
está tratando do tema (…) essa é uma questão tão importante para
nós, ao menos da Região Metropolitana, que foi objeto de um
processo criminal com prisão temporária de autoridades”. Já
Anelise Stifelman manifesta que sua “maior preocupação em
relação a esse assunto são os impactos que a extração de areia
no Lago Guaíba pode provocar no Parque Estadual de Itapuã”.
Tratando
do tema de uma forma geral – incluindo a mineração de areia no
rio Jacuí e outros afluentes do Guaíba – Alexandre Saltz comenta
que o MP trabalhou na questão junto com Polícia Federal e com a
Brigada Militar, fiscalizando as dragas no rio e os pontos de
venda: “Isso foi um dos motores daquela ação civil pública que
tramita na Vara Federal Ambiental que levou, inclusive, a
Justiça Federal a suspender a extração de areia no rio Jacuí por
muito tempo”.
Em que
pesem as precauções indispensáveis em uma questão de tal
relevância, no segundo semestre de 2016, a SEMA – pressionada
pelo setor da mineração – apresentou ao Comitê de Gerenciamento
da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba o documento “Zoneamento
Ambiental para Atividade de Mineração no Lago Guaíba”, onde
afirma que “cessada a restrição judicial, a FEPAM formou grupo
de trabalho para a elaboração de Zoneamento Ambiental para
atividade de extração de areia no Lago”. No referido documento é
apresentado um mapa das áreas onde é autorizada a mineração de
areia no Guaíba. Tudo isso, diga-se de passagem, antes da
conclusão do Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Rio
Grande do Sul.
Analisando
esse documento, a Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA)
questiona:
O
Relatório (…) apresenta (…) informações contraditórias,
superficiais, desatualizadas (…). Questões fundamentais (…) como
o conhecimento da dinâmica das correntes, da
hidrossedimentologia, do perfil do subfundo, da composição
físico-química do sedimento, do comportamento de plumas de
dispersão, do impacto sobre a hidrodinâmica e as margens (...)
não estão suficientemente elucidadas. (…). Nesse sentido, somos
de parecer que o 'Zoneamento Ambiental para atividades de
mineração do Lago Guaíba' não tem a mínima condição de ser
colocado para votação no Comitê de Gerenciamento da Bacia
Hidrográfica do Lago Guaíba.
Percebe-se
que o tema envolve grandes interesses econômicos, os quais não
devem prevalecer sobre o princípio da devida precaução.
A falta de
acesso de boa parte da população brasileira aos serviços básicos
de saneamento – água tratada, coleta e tratamento de esgotos,
drenagem de águas pluviais, coleta e destinação de resíduos
sólidos –, além de causar sérios problemas de saúde pública, tem
tido um peso crescente na degradação ambiental. Isso decorre,
por uma parte, do alto grau de urbanização do Brasil – onde
quase 85% da população vive em áreas urbanas – e, por outra
parte, do baixo percentual de cobertura desses serviços.
Referindo-se a isso, Ximena Cardozo Ferreira diz:
Temos
problemas decorrentes da urbanização e o maior deles na bacia do
Rio dos Sinos é o problema do saneamento. Temos uma deficiência
imensa de saneamento. Não é à toa que o Rio dos Sinos é o
terceiro rio mais poluído do país. (…) Em 2013, a média [de
esgotos tratados] da bacia era em torno de 4%. Como exemplo
posso citar o município de Novo Hamburgo, que atualmente tem 5%
de esgotos tratados (…) os maiores entraves dessa bacia são a
sua enorme urbanização, com pouquíssimo tratamento de esgotos,
uma grande deficiência de saneamento e uma forte carga poluidora
industrial.
O que é
confirmado por Ricardo Schinestsck Rodrigues, que explica como
vem ocorrendo a contaminação ambiental na bacia do Rio dos
Sinos, após a mortandade de peixes de 2006:
a partir
daquela situação de suma gravidade (…), os órgãos ambientais e o
Ministério Público apertaram o cerco às atividades industriais,
relativamente aos resíduos produzidos. (…) as atividades
industriais se adequaram a essa situação. (…) Hoje, (…) a
atividade industrial está longe de ser a que mais polui o Rio
dos Sinos e seus afluentes. Hoje, o que mais polui é o
esgotamento sanitário.
Analisando
essa situação no Brasil, constatamos que, em 2013, somente 83%
da população tinha acesso à água tratada e, em relação à coleta
de esgotos, vemos que apenas 49% da população dispõe dela.
Percentual que cai para 40% se considerarmos o tratamento dos
esgotos. Isso que significa que mais de 100 milhões de
brasileiros não dispõem desses serviços. Em consequência, a cada
ano, só nas capitais brasileiras, são lançados na natureza 1,2
bilhões de m3 de esgotos, sem qualquer tratamento.
Para
alcançar a universalização dos serviços básicos de saneamento,
foram previstos investimentos de 500 bilhões de reais, entre
2014 e 2033. Os Programas de Aceleração do Crescimento 1 e 2
destinaram 70 bilhões para isso. Porém, com a aprovação no
Congresso Nacional do Projeto de Emenda Constitucional que
congela por 20 anos todos os gastos da União, estados e
municípios (PEC241/PEC55), a meta de universalização do
saneamento básico foi abandonada.
Comentando
isso, Eduardo Coral Viegas afirma que a maioria dos municípios e
estados não tem esgoto, só há 50% de cobertura de esgotos. E
esse percentual muitas vezes diz respeito apenas ao afastamento
do esgoto, não do tratamento até a última fase. “Depois do
PLANASA, houve investimentos mais pesados no PAC1 e no PAC2, mas
agora (…) os recursos acabaram. Vamos ficar muitos e muitos
anos, décadas, sem investimento na área de saneamento”.
Opinião
que é endossada por Ricardo Schinestsck Rodrigues:
o maior
responsável pela poluição do Rio dos Sinos e seus afluentes é o
esgoto doméstico. Portanto, é preciso incentivar as estações de
tratamento de esgoto (…). Com a ETE Luiz Hall, o percentual de
tratamento de esgotos nesta sub-bacia de Novo Hamburgo passará
de 4% para 90%. (…) A maioria das (…) obras de saneamento eram
provenientes do Governo Federal, dos Programas de Aceleração do
Crescimento e certamente vão ser congeladas. (…) Hoje nós temos
na região projetos para cinco estações de tratamento de esgotos,
que dependem de verbas federais, que certamente vão ser
suspensas. Em São Leopoldo, só uma delas atenderá oitenta mil
pessoas. Acredito que a PEC 55 vai afetar diretamente o
saneamento básico. Vamos ter freado o adequado tratamento dos
esgotos.
Coral
Viegas também questiona a privatização dos serviços de
saneamento:
A
privatização não funciona porque acaba com o 'subsídio cruzado',
inviabilizando o atendimento às pequenas comunidades. No Rio
Grande do Sul, temos 497 municípios. Desses 497 municípios, 317
são atendidos pela CORSAN. Dos 317 atendidos pela CORSAN, menos
de 70 dão lucro; os outros dão prejuízo. Se houver abertura para
a iniciativa privada, ela só vai pegar a parte boa. (…) a tarifa
vai aumentar tanto nos municípios entregues à iniciativa
privada, quanto na 'carne de pescoço' que ficará com o Estado, o
qual terá de elevar o valor das tarifas para poder fechar as
contas. (…) A iniciativa privada tem como principal objetivo o
lucro (…) precisa reduzir despesas e aumentar receitas. No
saneamento, deve funcionar exatamente ao contrário. (…) Não é
possível pagar a universalização do saneamento e do esgotamento
sanitário só com a tarifa, pois (…) tem que ser módica,
justamente para que as pessoas tenham acesso à água e ao esgoto.
E
Schinestsck Rodrigues complementa:
O Estado e
os municípios ficarão com o ônus do saneamento básico. (…) A
água é mercadoria lucrativa. Todo mundo vem extrair, tratar e
distribuir. O esgoto é subsidiado. (…) Teoricamente, o esgoto
deveria ser 1,7 vezes o valor da água (…). Hoje, em geral, o
esgoto é cobrado no máximo 70% do valor da tarifa da água (…)
ele é subsidiado pela água. Se passar a água para a iniciativa
privada, o Poder Público Municipal vai assumir um grande
passivo.
Sem dúvida
o saneamento básico é uma das preocupações centrais de todos
aqueles que lutam por um meio ambiente saudável e uma população
sadia.
Não por
acaso, todas as civilizações desenvolveram-se ao longo de
grandes cursos d'água. A água é fundamental para a existência de
qualquer atividade humana e da própria vida. Por isso, a sua
degradação é uma questão de extrema gravidade, como acentua
Daniel Martini: “em relação aos setores ambientais, eu
colocaria, com absoluta prioridade, a questão dos recursos
hídricos. A água é uma questão de sobrevivência das populações
como um todo”.
Infelizmente, os rios, os lagos e o próprio mar são tratados
como depósitos infinitos, que se autorregenerariam
automaticamente. Ali são lançados os esgotos – na sua maioria
sem qualquer tratamento – de mais de 6 bilhões de humanos;
dejetos e sobras de milhões de indústrias e serviços;
agrotóxicos e produtos químicos utilizados na produção agrícola
e na pecuária; além de milhões de toneladas de lixo, geradas
pelo consumismo doentio e devido à dita “obsolescência
programada”.
Assim,
convivemos, hoje, com um quadro de contaminação dos cursos
d'água em todo o mundo, o que gera a deterioração da qualidade
das águas do planeta e um elevado custo para torná-la passível
de uso humano. No Brasil e no nosso Estado o quadro não é
diferente. Segundo Daniel Martini, “temos, no Rio Grande do Sul,
três dos dez rios mais poluídos do Brasil”!
No nosso
Estado, entre as principais causas da degradação dos cursos
d'água estão o lançamento de resíduos das lavouras – com elevada
carga de agrotóxicos –, os dejetos industriais, os esgotos in
natura e os resíduos sólidos (“lixo”), sem qualquer
tratamento prévio.
Eduardo
Coral Viegas relata que:
neste ano
[2016],(...) tenho trabalhado (…) com o problema do lançamento
no rio [Gravataí] das águas de lavoura com grande carga de
material em suspensão, que é o lodo das lavouras. (…) Essa água,
muito turva, está sendo captada pela CORSAN, que não dá conta de
produzir o que normalmente produz (…) tendo que reduzir em até
dois terços a sua produção. (…) a cada três horas era preciso
parar a estação de tratamento para limpar os tanques de
decantação. (…) 48 bairros ficaram desabastecidos em Gravataí.
Referindo-se à alteração do gosto e do odor da água de Porto
Alegre, ocorrida em 2016, Ana Maria Marchesan diz o MP
interditou a empresa CETTRALIQ, a causadora dessa alteração de
gosto e odor na água. Mas os efluentes ainda estão no pátio da
empresa. Deseja-se não só que os resíduos sejam retirados de lá,
como também que a empresa indenize a sociedade pelos danos
causados e ressarça o DMAE que gastou mais de três milhões de
reais para fornecer água com a qualidade mínima.
Ximena
Cardozo Ferreira – abordando a grande mortandade de peixes que
ocorreu em 2006 no Rio dos Sinos – comenta:
era onde
estava localizada a UTRESA, onde se identificou que houve um
vazamento expressivo, que foi o determinante da mortalidade. A
UTRESA é uma central de resíduos industriais (...) uma OSCIP
(...) Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, sem
fins lucrativos. (…) em 2010, houve outras duas mortandades
menores (…). Nesses dois episódios (…) o rio estava
sobrecarregado de matéria orgânica, com problemas quanto ao
saneamento (…) mas também houve uma sobrecarga expressiva de
resíduos industriais.
Sobre a
mortandade de peixes ocorrida em 2010, Alexandre Saltz afirma
que grande parte dos lançamentos ocorria em dias de chuva, em
uma medida de economia de custos para a empresa.
Mas, essa
contaminação não ameaça apenas nossas águas superficiais, mas
põe em risco, inclusive, nossas águas subterrâneas, com destaque
para o Aquífero Guarani, como nos alerta Eduardo Coral Viegas:
O Aquífero
Guarani é um dos maiores do mundo (…) é um aquífero estratégico
porque abarca oito estados brasileiros, incluída toda a região
sul, mais o Uruguai, Paraguai e Argentina (…) não há gestão
integrada entre os estados brasileiros. Cada estado é
proprietário das águas que estão sob o seu território. (…)
também não há gestão integrada entre os países onde se situa o
aquífero. (…) A maioria dos poços, ao longo do território
brasileiro (…) são poços irregulares, ilegais, que não são
construídos de acordo com a técnica exigida, não têm prévia
autorização. (...). Uma vez poluída a água do subsolo, não há
como despoluir. (…) É diferente de um rio que, se o deixares
correndo por quinze dias, sem poluir, se autodepura.
Em
decorrência de uma denodada luta do MP do RS, tanto a Lei da
Política Nacional de Saneamento quanto a jurisprudência da STJ
passaram a exigir a outorga do Poder Público para a abertura de
qualquer poço artesiano, não permitindo que isso ocorra onde
existir rede pública de água potável.
Daniel
Martini destaca, também, a elaboração em nosso Estado de
legislações inovadoras e de iniciativas protetoras dos recursos
hídricos. A Lei Estadual nº 10.350/94, Lei da Política Estadual
de Recursos Hídricos, inspirou a Lei nº 9.433/97, Lei da
Política Nacional de Recursos Hídricos. E no Rio Grande do Sul
estão os dois comitês mais antigos de bacias hidrográficas do
país, o Comitê Sinos e o Comitê Gravataí.
Mas,
preocupa Coral Viegas o fato de que até hoje não tenha sido
instituída no Rio Grande do Sul a cobrança pela água, embora a
lei estadual já tenha 22 anos. Também não há Plano Estadual e há
um sistema muito deficitário de análise de outorgas: “Temos um
inquérito civil tratando da criação de agências e da
implementação da cobrança do uso da água”.
Como se
vê, há muito que fazer nessa área.
Todos os
temas destacados são considerados prementes para os promotores
depoentes. Com respeito a expectativas, alguns, como Alexandre
Saltz, são otimistas “(...), pois, com respeito à proteção
ambiental hoje há um nível de consciência que não havia há
alguns anos atrás”. Outros, como Annelise Steigleder, são
pessimistas “Porque vejo que, mesmo no Ministério Público,
dependemos de uma determinação judicial, atuamos sempre por
amostragem, conseguimos identificar grandes temas e tentamos
atuar. Mas é claro que não conseguimos atuar na política”.
Em termos
de desafios para o futuro, muitos dos entrevistados apontaram o
desenvolvimento do já iniciado trabalho em rede. Ximena Cardozo
Ferreira considera que é preciso ultrapassar o âmbito
institucional: “trabalhar em rede, mas não só em rede interna,
trabalhar em rede externa, interinstitucional, porque são
inúmeros órgãos envolvidos na proteção ambiental”. Ana Maria
Marchesan vê com otimismo a implantação das promotorias
regionais, mas considera que o cargo de promotor regional
deveria ser único e não cumulativo com outra promotoria:
“[deveria se]criar com um cargo de promotor específico,
estrutura de servidores específica para isso, lugar, tudo”.
O reforço
do assessoramento técnico também é sugerido. Annelise Steigleder
sugere a existência de uma equipe técnica que trabalhasse em
conjunto com as promotorias: “Teríamos que ter condições de
atuar mais aparelhados, porque nós temos, diante de nós, um
poder econômico fortíssimo”.
Ana Maria
Marchesan também considera que seria interessante um trabalho
mais articulado com o segundo grau:
O
Ministério Público tinha que trabalhar como um todo, como um
escritório de advocacia. Ter um procurador que desse
continuidade ao nosso trabalho. (...) Talvez a criação de
procuradorias especializadas em meio ambiente ou direitos
difusos, como já existem em outros estados, talvez ajude. Mas eu
ainda acho que o modelo de escritório de advocacia em que um
procurador trabalharia conosco, ali, para mim, seria muito
melhor.
Aliás, o
trabalho conjunto, seja como ocorre na Promotoria do Meio
Ambiente de Porto Alegre, seja em rede ou por bacia
hidrográfica, é visto como uma marca de nascença e como um dos
grandes diferenciais da área ambiental do MP que, dentro da
instituição tem um alto índice de efetividade.
Historiadora Cíntia Vieira Souto
Historiador Raul Carrion
2017
Bibliografia
ANTUNES,
Paulo de Bessa. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas: 2016.