Tratado como
irrelevante pela historiografia oficial, o Movimento da
Legalidade – que neste mês de agosto completa 59 anos – foi,
sem dúvida, uma das maiores e mais radicais mobilizações cívicas
do Rio Grande do Sul e do Brasil, impedindo – de armas na mão –
que o golpe militar de 1961 se efetivasse.
Lembremos que outra
tentativa de golpe já havia sido bloqueada, em 1954, pelo gesto
extremo do suicídio de Getúlio Vargas e pelos massivos protestos
que se seguiram a ele, comovendo todo o País. E, em 1955, o
contragolpe preventivo do Marechal Lott – afastando Carlos Luz
da Presidência interina e substituindo-o por Nereu Ramos,
Presidente do Senado – foi a única maneira de garantir a posse
de Juscelino Kubitscheck, ameaçado pelas articulações golpistas
do Vice-Presidente Café Filho e do próprio Presidente da Câmara,
Carlos Luz.
Em todos
esses acontecimentos – assim como em 1964 –, uma constante: de
um lado as forças reacionárias, antinacionais e
antidemocráticas, do outro as forças patrióticas e
progressistas, que defendiam reformas estruturais para o País e
a ampliação da democracia. Esse foi, na verdade, o pano de fundo
da grande luta pela Legalidade.
Quando
Jânio, no dia 25 de agosto de 1961, entregou a sua
carta-renúncia aos ministros militares e ao presidente do
Senado, Auro de Moura Andrade, não foi um gesto tresloucado do
histriônico presidente do Brasil. Ao contrário – como o próprio
Jânio Quadros confessaria anos mais tarde, no seu livro
“História do Povo Brasileiro” –, foi um intento fracassado de
auto-golpe, na expectativa de retornar “nos braços do povo”, com
poderes absolutos e apoio militar:
“Nessa altura
Jânio Quadros não viu como malograr nos seus objetivos, ainda
que com sacrifício próprio. Posto em movimento o esquema,
compenetrados e ajustados os ministros militares quanto a esse
objetivo essencial, a sua consecução não poderia falhar. (...)
Seu raciocínio foi o seguinte: Primeiro operar-se-ia a renúncia;
segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João
Goulart distante na China, não permitiriam as forças militares a
posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro ou bem se
passaria a uma fórmula, em conseqüência da qual ele mesmo
emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime
institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se
encarregariam de montar esse novo regime, cabendo depois a um
outro cidadão – escolhido por qualquer via, presidir o país sob
o novo esquema viável e oportuno. (...) O plano, porém, falhou
exatamente na vacilação dos chefes militares. (...) João
Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamentar, desfez, tal
vez sem sabê-lo, todo o plano concertado.”(1)
O fato de
João Goulart se encontrar na China Socialista e ser uma
sexta-feira – quando o Congresso normalmente estava vazio –
constituía o panorama ideal para o desenlace pretendido. Só que
a artimanha foi mal calculada e “o tiro saiu pela culatra”.
Devido à denúncia, feita no dia anterior por Carlos Lacerda,
Governador da Guanabara, de que Jânio Quadros preparava um
auto-golpe, os congressistas estavam em peso em Brasília e se
revezavam na tribuna, debatendo os acontecimentos.
O
deputado Almino Affonso, líder do PTB, após ler a carta-renúncia
de Jânio Quadros – onde este afirmava que “forças terríveis
se levantam contra mim” –, acusou:
“Nada, Sr.
Presidente, neste instante permite, sob pena de nos considerarem
ingênuos, de aceitar que o documento corresponde à verdade dos
fatos. (...) O Partido Trabalhista Brasileiro, neste instante,
fiel às suas tradições democráticas, não pode aceitar esta
renúncia senão como um golpe em que o presidente da República
pretende retornar ao governo à maneira de um ditador,disfarçado
ou não, seja sob que forma for.” (2)
E o
deputado Gustavo Capanema complementou:
“A renúncia é, por
definição, ato unilateral. Irretratável. (...) A única coisa que
nos cabe é tomar conhecimento. (...) o que se segue é a
aplicação pura e simples da Constituição. Assume o governo o
vice-presidente, pelo resto do período.” (3)
O
presidente do Senado, Moura Andrade, convocou então uma sessão
extraordinária do Congresso, a qual, quando foi aberta às 16h45,
contou com a presença de 45 senadores e 230 deputados. Depois de
ler a carta-renúncia de Jânio Quadros, Moura Andrade afirmou: “a
renúncia é um ato de vontade do qual deve tomar conhecimento o
Congresso Nacional. Nos termos da Constituição, caberá ao
presidente da Câmara assumir a presidência da República.”
(4) Em seguida, deu posse ao Deputado Ranieri Mazzilli, como
presidente interino, tendo em vista a ausência do
Vice-Presidente João Goulart, em viagem oficial à China.
Tão logo
Jânio se tornou uma “carta fora do baralho”, os três ministros
militares – Odílio Deniz, Sylvio Heck e Grun Moss – comunicaram
a Mazzili que não aceitariam que João Goulart assumisse a
presidência da República, ao retornar ao país. Esse veto militar
atendia aos interesses dos Estados Unidos, que temiam que o
Brasil adotasse uma orientação simpática a Cuba ou viesse a ter
uma aproximação com a China ou a União Soviética.
Chegada a
notícia da renúncia ao conhecimento de Leonel Brizola, este
tratou de comunicar-se com Jânio, colocando o Governo do Rio
Grande do Sul à sua disposição. Esclarecido que este não fora
compelido a renunciar, Leonel Brizola passou a defender o
cumprimento da Constituição e a posse de João Goulart. Nesse
contexto, no domingo 27 de agosto, Brizola fez um pronunciamento
que teve repercussão nacional:
"O Governo do
Estado do Rio Grande do Sul cumpre o dever de assumir o papel
que lhe cabe nesta hora grave da vida do País. Cumpre-nos
reafirmar nossa inalterável posição ao lado da Legalidade
Constitucional. Não pactuamos com golpes ou violências contra a
ordem constitucional e contra a liberdade pública. Se a atual
Constituição não satisfaz, em muitos de seus aspectos, desejamos
o seu aprimoramento e não sua supressão, o que representaria uma
regressão e o obscurantismo. (...) Por motivo dos
acontecimentos, como se impunha, o Governo deste Estado
dirigiu-se à S. Excia., o Sr. Vice-Presidente da República, Dr.
João Goulart, pedindo seu regresso urgente ao País, o que deverá
ocorrer nas próximas horas. (...) O povo gaúcho tem imorredouras
tradições de amor à Pátria comum e de defesa dos direitos
humanos. E seu Governo, instituído pelo voto popular – confiem
os Rio-Grandenses e os nossos irmãos de todo o Brasil – não
desmentirá estas tradições e saberá cumprir o seu dever."(5)
Diante da atitude golpista dos ministros militares, Brizola
entrou em contato com o Comandante do III Exército – General
Machado Lopes – para saber do seu posicionamento. Recebeu a
resposta de que “como soldado ficarei com o Exército”. Esse
diálogo deixou claro que Machado Lopes se subordinava à postura
golpista dos ministros militares. Brizola ainda tentou o apoio
de outros comandantes de Exército, no resto do país – como o
gaúcho Costa e Silva –, mas em vão. Posteriormente, Brizola
relataria: “com muita dificuldade consegui um contato
telefônico com o general Costa e Silva, que comandava o IV
Exército, no Recife. Nosso diálogo foi duro e violento. Respondi
com a mesma moeda suas grosserias e agressividades.” (6)
Apesar do
quadro adverso, Brizola não se intimidou. Colocou a Brigada
Militar e a Polícia Civil em rigorosa prontidão, fez com que
ocupassem os pontos chaves da cidade e organizou a defesa do
Palácio Piratini. Concentrou a maioria das tropas da Brigada
Militar em Porto Alegre e requisitou todos os depósitos de
combustível e de pneus.
A
Assembleia Legislativa – presidida pelo deputado Hélio
Carlomagno (PSD) –, declarou-se em sessão permanente. Lideranças
políticas, sindicais e estudantis reuniram-se na Câmara
Municipal de Porto Alegre e decidiram realizar uma manifestação
de rua. Saíram da Prefeitura e subiram a Borges de Medeiros,
gritando palavras de ordem contra o golpe. Ao chegarem ao
Piratini já eram cinco mil, exigindo o respeito à “Legalidade”
e a posse de João Goulart. Falando da sacada do Palácio, Brizola
aderiu a essa palavra de ordem. Estava começando o “Movimento
da Legalidade”.
Lideranças sindicais como Eloy Martins, Jorge Campezatto, Álvaro
Ayala, Luiz Vieira, Lauro Hageman, Ony Nogueira e José Cezar
Mesquita, e outros – a maioria do Partido Comunista do Brasil –
criaram o Comando Sindical Gaúcho Unificado com a tarefa
de organizar Comitês de Resistência Democrática (CRDs).
A sede do Sindicato dos Alfaiates era o coração da mobilização
sindical. João Amazonas – então Secretário-Geral do Partido
Comunista do Brasil no Rio Grande do Sul – relataria, anos mais
tarde: “Nós tomamos uma decisão: vamos organizar batalhões
patrióticos. Ocupamos um prédio do governo que tinha ali, na
Avenida Borges de Medeiros (...) organizamos os batalhões
patrióticos por categoria profissional (...). Alguns dias
depois, fizemos um desfile. (...) Tudo organizado por nós.”
No prédio
do “Mataborrão”, localizado na Av. Borges de Medeiros com
a Andrade Neves, lideranças populares, sindicais e estudantis
organizaram o primeiro “Comitê de Resistência Democrática”
– com forte presença de trabalhistas, comunistas e socialistas
–, o qual passou a alistar milhares de pessoas para lutar em
defesa da Constituição. Ali estavam a poeta Lila Ripoll,
organizando os artistas; o ex-deputado federal comunista Abílio
Fernandes; o líder metalúrgico Elói Martins; Fúlvio Petracco,
presidente da FEURGS; Fernando Almeida; Carlos Araújo; Victor
Douglas Júnior; Luís Heron Araújo; e tantos outros lutadores do
povo. Logo, os CRDs se espalharam por todo o Estado e mais de
100 mil gaúchos se alistaram para defender a Legalidade.
Os dias
que se seguiram foram marcados por desfiles dos batalhões
operários da construção civil, Carris, estivadores, marítimos,
ferroviários, metalúrgicos, bancários, enfermeiros, etc. e dos
batalhões de secundaristas, universitários, intelectuais,
artistas, militares reformados, Centros de Tradições Gaúchas,
escoteiros, enfim a cidadania mobilizada.
Sem
titubear, a UNE decretou uma greve nacional em defesa da posse
de João Goulart. Seu presidente, Aldo Arantes – que anos depois
foi deputado federal pelo PCdoB – viajou para Porto Alegre, onde
instalou a sede da UNE. Utilizando a “Rede da Legalidade”,
convocou os estudantes de todo o país a resistirem ao golpe. O
Governador de Goiás, Tenente coronel Mauro Borges Teixeira,
lançou uma proclamação à nação, aderindo ao movimento liderado
pelo governador do Rio Grande do Sul.
Na
Guanabara, a Comissão Permanente das Organizações Sindicais
– dirigida pelos comunistas – deflagrou uma greve entre os
marítimos, portuários, trabalhadores em transporte de
passageiros e trabalhadores industriários. Os ferroviários da
Leopoldina paralisaram suas atividades. No Rio de Janeiro, o
Marechal Lott lançou um Manifesto denunciando o veto dos
ministros militares à posse de Jango e defendendo o respeito à
Constituição. Pouco tempo depois, foi preso pelos golpistas, na
Fortaleza da Lage.
Ao
comunicar-se com o Marechal Lott, Brizola foi orientado a
procurar os generais legalistas Oromar Osório – comandante da 1ª
Divisão de Cavalaria de Santiago – e o Gen Peri Bevilaqua – da
3ª Divisão de Infantaria de Santa Maria – as duas mais poderosas
do III Exército. Os dois generais se solidarizaram de imediato
com a causa da Legalidade, inclusive, passando a
pressionar Machado Lopes para que assumisse a defesa da
Constituição. A seguir, Brizola passou a manter contato com as
guarnições militares do interior do Estado, a maior parte das
quais aderiu à Legalidade. A cada hora que passava, a
posição golpista dos ministros militares perdia terreno no seio
do III Exército e o próprio General Machado Lopes lhes informava
disso em seus comunicados. (7)
Brizola
começou, então, a divulgar o manifesto do Marechal Lott, em
defesa da Legalidade, junto com seu próprio manifesto,
ambos amplamente distribuídos aos jornais, rádios e TVs. Seus
discursos e entrevistas tinham enorme audiência e despertavam a
cidadania rio-grandense. Um número crescente de pessoas passou a
se concentrar na Praça da Matriz, em defesa da Constituição. Já
passavam de 50 mil pessoas.
Mas, na medida em que
as principais rádios divulgavam o manifesto de Lott, os seus
transmissores eram silenciados e lacrados pelo III Exército. A
Rádio Guaíba, cujos proprietários se negaram a transmiti-lo, foi
uma das poucas que permaneceu no ar.
Nas
primeiras horas do dia 28 de agosto, segunda-feira, Brizola
tomou conhecimento de que os ministros golpistas haviam ordenado
ao III Exército e ao 5º Comando Aéreo que submetessem o Governo
do Rio Grande do Sul pela força, se necessário bombardeando o
Palácio Piratini. (8)
O
Governador tomou, então, a decisão de requisitar a Rádio Guaíba
e passou a irradiar diretamente dos porões do Palácio Piratini,
convocando o povo a vir até a Praça da Matriz, para defender a
Constituição.
Estava
criada a “Rede da Legalidade”, que chegou a englobar mais
de 100 emissoras de todo o país, denunciando os golpistas e
convocando o povo brasileiro a defender a Constituição. Tropas
da Brigada Militar e forças da Polícia Civil foram enviadas para
proteger a torre e os transmissores, na Ilha da Pintada. Também
a central telefônica foi ocupada e guarnecida por tropas da
Brigada Militar. Ao mesmo tempo, Brizola requisitou mais de três
mil revólveres à fábrica Taurus, em Porto Alegre,
distribuindo-os aos Batalhões Populares.
Os
Ministros Militares chegaram determinar um ataque aéreo ao
Palácio Piratini. A ordem era submeter Brizola e todos os que
estivessem com ele. Contudo, na base aérea de Canoas, a
tentativa dos oficiais aviadores – que obedeciam às ordens dos
ministros militares – de levantar vôo para bombardear o Palácio
Piratini, foi impedida pelos suboficiais e sargentos, que
desarmaram os aviões e esvaziaram os seus pneus. (9) A seguir, o
Tenente-Coronel Aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista,
assumiu o comando interino da 5ª Zona Aérea e o Major Mário de
Oliveira o Comando da Base Aérea de Canoas. Em represália, Alfeu
de Alcântara será assassinado, na própria Base Aérea, em 4 de
abril de 1964, logo após o golpe militar.
Mas, a
ordem dos golpistas foi reafirmada: “Calem Leonel Brizola!“
Tropas do III Exército – por determinação do general golpista
Antônio Carlos Muricy – se deslocaram até a Ilha da Pintada para
silenciar os transmissores da Rádio Guaíba e calar a “Cadeia
da Legalidade”. Porém, no momento em que se preparavam para
agir, o General Machado Lopes desautorizou a ação e determinou o
seu retorno aos quartéis. Em seguida, solicitou uma reunião com
Brizola, que a aceitou, desde que ela ocorresse no Palácio
Piratini. Não sabendo qual seria o posicionamento do General
Machado Lopes, Leonel Brizola fez um pronunciamento dramático,
defendendo a Legalidade e afirmando que lutaria até o
último alento contra qualquer golpe militar:
“nós não nos
submeteremos a nenhum golpe, a nenhuma resolução arbitrária. Não
pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam!
Que nos chacinem neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a
imposição de uma ditadura contra a vontade do seu povo! Está
rádio será silenciada tanto aqui como nos transmissores, mas não
será silenciada sem balas. (...) Poderei ser esmagado. Poderei
ser destruído. Poderei ser morto (...). Não importa. Ficará o
nosso protesto, lavando a honra da desta Nação. Aqui
resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem
honra, sem dignidade e sem glória. (...) Que decolem os jatos!
Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e
do sacrifício do povo! Joguem estas armas contra este povo. Já
fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos.
Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos
e irmãos farão a independência do nosso povo.”(10)
O povo
respondeu ao pronunciamento de Brizola afluindo em massa ao
Palácio Piratini e à Praça da Matriz. Em pouco tempo eram mais
de 100 mil pessoas. Pressionado por essa grande mobilização
popular e por seus principais comandantes, Machado Lopes tomou a
decisão de não mais acatar as ordens dos ministros militares e
apoiar uma saída Constitucional para crise. Como relatou o
jornalista Adaucto Vasconcellos: “O general Machado Lopes,
comandante do III Exército, à frente de um grupo de oficiais, se
aproximava do Palácio lentamente. A massa começou a deslocar-se
na direção dos militares. Foram segundos da mais alta
dramaticidade. O Hino Nacional, brotado da garganta de milhares
de pessoas, petrificou os oficiais. Eles pararam e cantaram com
o povo. Machado Lopes estava emocionado e trêmulo. O III
Exército estava aderindo à Legalidade.” (11)
Unificado
o Rio Grande do Sul com a adesão do III Exército e seus 120 mil
homens – o mais poderoso do País –, reforçado pela Brigada
Militar e com o apoio massivo da população, equilibraram-se as
forças no tabuleiro nacional, ainda mais que os próprios
golpistas não confiavam na unidade do seu campo, onde cada vez
mais se levantavam vozes dissonantes. Quando o Presidente
Mazzilli – submisso aos Ministros Militares – nomeou para o
Comando do III Exército o General Cordeiro de Farias, em
substituição a Machado Lopes, este afirmou: “prenderei o
substituto, tão logo ponha os pés no Rio Grande do Sul!”
Rapidamente foi
montada a defesa de toda a região Sul. Divisões do III Exército,
oriundas do Rio Grande do Sul, atingiram em marcha batida Santa
Catarina e o Paraná, dirigindo-se à fronteira com São Paulo. O
litoral gaúcho foi ocupado por tropas da Brigada Militar. A
imprensa noticiou a obstrução (fictícia) da barra de Rio Grande
para impedir o acesso das belonaves inimigas à Lagoa dos Patos e
a Porto Alegre. O grupo antiaéreo de Caxias do Sul deslocou-se
para Porto Alegre. A disposição de luta e a consciência popular
cresciam à medida que o tempo passava. A resistência ao golpe
transformava-se cada vez mais em um levante popular que envolvia
as próprias Forças Armadas e punham em risco o regime
Diante do
imponderável, tanto as elites dominantes quanto os altos mandos
militares passaram a trabalhar por uma saída negociada, que
evitasse a guerra civil. Essa saída foi a casuística emenda
parlamentarista, votada em dois turnos nos primeiros dias de
setembro e aceita a contragosto pelos ministros militares
golpistas.
Finalmente, em 7 de setembro de 1961 – data da Independência
Nacional –, João Goulart assumiu a Presidência da República, sob
um regime parlamentarista. O povo, os trabalhadores, os
militares democratas – conduzidos por um grande e destemido
líder – haviam vencido! A vitória não havia sido completa, mas,
talvez, tenha sido a possível naquelas circunstâncias. O povo
havia mostrado a sua vontade e a sua força.
O grande
e heróico Movimento da Legalidade foi por muito tempo
ignorado pela grande imprensa e pela historiografia oficial. A
ordem era manter o episódio no mais completo esquecimento, para
que não fosse lembrada a vitoriosa mobilização patriótica e
popular que – liderada pela figura intrépida de Leonel Brizola –
alterou os rumos da história do Brasil, detendo o golpe que se
gestava e derrotando os planos das elites conservadoras.
No ano em
que comemoramos os 59 anos da Legalidade e que
novas ameaças à democracia surgem no horizonte – orquestradas
pelos mesmos que historicamente sempre se opuseram a qualquer
avanço social –, o exemplo de determinação e de coragem que
Leonel Brizola e o povo gaúcho demonstraram em circunstâncias
tão difíceis devem servir-nos de modelo e inspiração.
Com
certeza, em tais momentos, não há espaço para tibiezas e
vacilações!
Historiador Raul
Carrion - Presidente da FMG-RS
Atualizado em 25 de
agosto de 2020
NOTAS
(1) QUADROS, Jânio e ARINOS DE MELO FRANCO, Afonso. História
do Povo Brasileiro- Vol. VI. São Paulo: Jânio Quadros
Editores Culturais S.A., 1967, pp. 241-242.
(2) MARKUN, Paulo e HAMILTON, Duda. 1961: que as armas não
falem. São Paulo: Editora SENAC SãoPaulo, 2001, p.115.
(3) Idem.
(4) MARKUN...,Idem, p. 116.
(5) BRIZOLA, Leonel. In: MACHADO LOPES, José. O III Exército
na crise da renúncia de Jânio Quadros. Rio de Janeiro:
Editorial Alhambra, 1980, p.41-42.
(6) FELIZARDO, Joaquim. A Legalidade - último levante gaúcho.
Porto Alegre: Editora da Universidade, 1988, p. 47.
(7) “Assistindo ao entusiasmo do povo gaúcho pelo acatamento
da Lei, ouvindo matraquear a Cadeia da Legalidade e auscultando
a opinião dos Comandos das Grandes Unidades que compunham o III
Exército, confirmei a impressão de que qualquer solução que
implicasse o veto à posse do Sr. João Goulart na Presidência da
República levaria à guerra fratricida, com todas suas maléficas
conseqüências.” (MACHADO LOPES, José, idem, p. 45.)
(8) “1- O gen. Orlando Geisel transmite ao gen. Machado
Lopes, comandante do III Exército, a seguinte ordem do Ministro
da Guerra: O III Exército deve compelir imediatamente o Sr.
Leonel Brizola a por termo à ação subversiva que vem
desenvolvendo (...) Faça convergir sobre Porto Alegre toda tropa
do Rio Grande do Sul que julgar conveniente (...) empregue a
Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário.”
(Mensagem do gabinete do Ministério da Guerra ao III Exército,
às 6h da manhã do dia 28.08.61. In: FELIZARDO, Joaquim, idem, p.
32.)
(9) “(...) decidiram os sargentos e suboficiais, com apoio de
cabos, soldados e taifeiros, apoiar o Movimento Legalista. (...)
No comando do 1º do 14º Grupo de Aviação de Caça estava o Major
Aviador Cassiano. (...) O major Cassiano resolve acatar a ordem
de bombardear o Palácio Piratini, dada pelos Ministros
Militares. (...) os suboficiais e sargentos do Esquadrão de Caça
estavam detidos no hangar, dominados pelos oficiais comandados
pelo major Cassiano. Os sargentos que se encontravam no cassino
da base, aproximadamente 100, tomaram uma decisão (...) ‘– Vamos
libertar os colegas do Caça. Não vamos permitir a decolagem dos
aviões, vamos assumir o controle interno da base’ (...) Lá
chegando libertamos os colegas. (...) O Major Cassiano sentiu
que a partir daquele momento avião nenhum decolaria, como de
fato não decolou. (...) os sargentos e suboficiais, sob
liderança do segundo sargento Lague, determinaram aos soldados
que esvaziassem os pneus dos aviões, o que foi executado,
deixando as aeronaves inoperantes para decolagem.(...) os aviões
não bombardearam o Palácio somente porque, dias antes, os
sargentos de armamento do esquadrão desligaram o sistema de
bombas deixando-os, assim, inoperantes.” (CALIXTO, Ney de
Moura. Os Sargentos da Legalidade.Canoas: Prefeitura de
Canoas – Secretaria de Comunicação, 2011, pp.17-22, 34.)
(10) LEITE FILHO, Francisco das Chagas. El Caudillo Leonel
Brizola. São Paulo: Editora Aquariana, 2008, pp. 121-124.
(11) FELIZARDO, Joaquim, idem, p.41.