A Função Social da Propriedade, em especial do solo urbano, está
hoje consagrada na Constituição da República e na legislação
infraconstitucional, mas ainda não conquistou cidadania na
realidade do país e no mundo jurídico – extremamente conservador
e patrimonialista – que teima em ignorá-la. Só a luta dos
interessados nela – a imensa maioria do povo brasileiro – Será
capaz de trazê-la para o mundo dos fatos
O “DIREITO ABSOLUTO”
DE PROPRIEDADE
O liberalismo tem como um de seus pilares básicos o direito de
propriedade privada, com caráter absoluto, individual e
inviolável. A criação do Estado é justificada, inclusive, pela
defesa da “sacrossanta” propriedade privada. Nesse sentido, as
palavras de Locke, em seu Segundo Tratado, são
elucidativas: “Por Poder Político, entendo o direito de fazer
leis com penalidade de morte e, por conseguinte, com toda
penalidade menor, para o fim de regulamentar e conservar a
propriedade”.
Essa concepção da propriedade individual e absoluta – inscrita
de forma clássica na Declaração dos Direitos do Homem da
Revolução Francesa (1789) e no Código Napoleônico de 1804 –
inspirou a Constituição brasileira de 1824 que em seu artigo
179, inciso XXII, afirmava: “É garantido o Direito de
Propriedade em toda sua amplitude. Se o bem público, legalmente
verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão
será ele previamente indenizado do valor dela”.
A primeira Constituição republicana, de 1891, em seu artigo 72,
parágrafo 17, manteve esse direito “absoluto”: “O direito de
propriedade mantém-se em toda a plenitude, salvo a
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante
indenização prévia”.
O Código Civil de 1916 (só recentemente alterado) recepcionou
essa visão do direito absoluto de propriedade, em seu artigo
524: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar
e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que
injustamente os possua”.
Ou seja, todos esses instrumentos legais abordaram o interesse
geral – no que diz respeito à propriedade – como exceção e a
eventual necessidade da sua desapropriação, por interesse
social, ficou condicionado à uma prévia indenização, em dinheiro
vivo.
De forma pioneira, mas fugaz, a Constituição de 1934 inovou,
dispondo em artigo 113, alínea 17: “É garantido o direito de
propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse
social ou coletivo, na forma que a lei determinar” –,
introduzindo pela primeira vez a questão do caráter social da
propriedade.
A Constituição de 1937 retornou, em seu artigo 122, alínea 14, à
concepção do direito absoluto e irrestrito de propriedade,
assegurando “O direito de propriedade, salvo a desapropriação
por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização
prévia”.
Em seu artigo 141, parágrafo 16, a Constituição de 1946 manteve
a mesma formulação – “É garantido o direito de propriedade,
salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade
pública, ou interesse social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro” –, mas em seu artigo 147 dispôs que
“O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social.
A lei poderá (...) promover a justa distribuição da propriedade,
com igual oportunidade para todos”, retomando a temática do
caráter social da propriedade.
A Constituição de 1967 – depois de afirmar em seu artigo 150,
parágrafo 22, que “É garantido o direito de propriedade,
salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade
pública ou por interesse social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro” – inscreveu em seu artigo 157,
inciso III, o princípio da “função social da propriedade”.
O FIM DA “PROPRIEDADE
ABSOLUTA” NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Mas, é somente na Constituição Cidadã de 1988 – no contexto da
redemocratização do país – que se romperá, de forma explícita,
com a concepção secular da “sacrossanta e absoluta propriedade
privada”.
Uma primeira mudança sutil, mas fundamental, é que o
encabeçamento de seu artigo 5º assegura o “direito à
propriedade”, conceito bem mais amplo do que o mero “direito
de propriedade”, que se resume ao direito dos que já
possuem propriedades, ou seja, dos “proprietários” e não dos
“despossuídos”. O mesmo artigo, em seu inciso XXIII, determina
que “a propriedade atenderá a sua função social”,
reforçando a visão de que o direito à propriedade é inseparável
do cumprimento de uma função social.
Mas serão seus artigos 182 e 183, que formam o “Capítulo da
Ordem Urbana” – pela primeira vez inserido na Constituição
Brasileira – que irão fundamentar a exigência do cumprimento da
função social da propriedade privada e pública do solo urbano.
Assim, o seu parágrafo 2º exige que a cidade cumpra suas funções
sociais, de forma a garantir o bem-estar de seus habitantes,
dispondo que “A propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no plano diretor”.
Indo mais longe, o parágrafo 4º do artigo 182 afirma que “É
facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica
para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei
federal, do proprietário do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento
ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana progressivo no tempo; III -
desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública
de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo
de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e
sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros
legais”.
Já o seu artigo 183 dispôs sobre o “usucapião especial urbano”
– reduzindo para cinco anos a posse sem contestação de uma área
urbana, para a aquisição do direito à sua propriedade – e criou
o “direito real de uso para fins de moradia” nas terra
públicas (que não podem ser usucapidas).
Na medida em que o artigo 182 da Constituição Federal remete aos
Planos Diretores Municipais a definição dos parâmetros que
determinam o cumprimento ou não da função social da propriedade
do solo urbano, ressalta a importância da inserção de forma
explícita nos Planos Diretores Municipais dos instrumentos de
efetivação da função social da propriedade, contidos na
Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Além disso, são
necessárias leis municipais que identifiquem os “vazios urbanos”
existentes (privados e públicos) e determinem o seu parcelamento
ou edificação compulsórios.
Por fim, em seu artigo 170 – que enumera os fundamentos da ordem
econômica –, logo após o princípio da “propriedade privada”
é colocado o princípio da “função social da propriedade”,
deixando claro que só é legitima e tem amparo constitucional a
propriedade que cumpre sua função social.
O “ESTATUTO DA CIDADE”,
A “MP 2220/2002” E O NOVO CÓDIGO CIVIL
É importante ressaltar que a “lei federal” referida no artigo
182 da Constituição só veio a ser aprovada treze anos depois, em
2001, sendo conhecida como o “Estatuto da Cidade”. Ela
regulamenta esses dois artigos e avança em diversos outros
instrumentos urbanísticos:
No que se refere ao parcelamento ou edificação compulsória, a
Lei dá o prazo de um ano – após a notificação do proprietário do
imóvel – para que ele apresente o seu projeto à prefeitura, e
concede mais dois anos – a contar da aprovação do projeto – para
o início das obras.
Não sendo atendidos esses prazos, a Prefeitura pode aplicar o
IPTU Progressivo no tempo, podendo dobrar o seu valor a cada
ano, durante cinco anos, até uma alíquota máxima de 15%.
Após, se o proprietário continuar descumprindo sua obrigação de
parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá
efetivar a desapropriação do imóvel, através de títulos da
dívida pública – autorizados pelo Senado Federal – pagáveis em
dez anos pelo valor venal (declarado para fins de IPTU) da
terra, descontados os acréscimos de valor devidos a obras
públicas realizadas após a notificação inicial.
Da mesma forma, o Estatuto da Cidade regulamentou o
“Usucapião Especial Urbano” e previu novos instrumentos de
política urbana, como a instituição de “Zonas Especiais de
Interesse Social” e a criação de “Operações Urbanas
Consorciadas” – que torna possível a parceria entre o
proprietário privado da terra e o poder público, para viabilizar
que o solo urbano cumpra com sua função social.
Já a Medida Provisória 2220/2001 regrou a “Concessão de Uso
Especial para fins de moradia” (no caso de imóveis públicos não
utilizados ou subutilizados).
Ainda expressando os avanços ocorridos na Constituição de 1988 e
no Estatuto da Cidade no referente à função social da
propriedade, o novo Código Civil de 2002, em seu art.
1.228, parágrafo 1º, também limitou o direito de propriedade ao
dispor que: “O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de
modo que sejam preservados (...) o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico (...).”. E, em seu
parágrafo 4º determina que “O proprietário também pode ser
privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa
área, na posse ininterrupta e de boa-fé por mais de cinco anos,
de considerável número de pessoas, e estas nela houverem
realizado, em conjunto ou separadamente, obras ou serviços (...)
de interesse social e econômico relevante.” Nesse caso,
segundo o seu parágrafo 5º, “o juiz fixará a justa
indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a
sentença como título para o registro do imóvel em nome dos
possuidores”.
A LUTA PELA EFETIVAÇÃO DA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
No entanto, decorridos vinte e sete anos da promulgação da
Constituição da República, quatorze anos do Estatuto da
Cidade e treze anos do novo Código Civil, o que se
verifica é que suas disposições inovadoras só têm sido aplicadas
em raríssimos casos. E, o que é pior, em muitos casos com sérios
retrocessos, como em decisões judiciais liminares de
“reintegrações de posse” em relação a ocupações consolidadas
(posse superior a um ano e um dia) de famílias de baixa renda,
sem considerar se a propriedade cumpre ou não a sua função
social e sem sequer ouvir as famílias a serem despejadas.
Situações que têm se multiplicado devido ao boom
imobiliário que vem ocorrendo no Brasil, devido aos inúmeros
programas sociais de moradias para as populações mais carentes.
Tudo isso em clara contradição com o disposto na Constituição
Federal, no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil, muitas
vezes “esgrimindo” as normas caducas do velho Código de Processo
Civil (1973), instituído pela ditadura militar...
O que já levou ao absurdo de comunidades que possuíam o
direito à concessão de uso especial para fins de moradia
sobre as áreas que ocupavam – de acordo com o disposto na Medida
Provisória 2220/01 (transformada em lei) – terem as suas casas
destruídas por ordem judicial. O que comprova a grande inércia e
o conservadorismo do pensamento jurídico brasileiro em relação
ao direito de propriedade. Seja porque nossa cultura jurídica
patrimonialista resiste em aceitar os novos princípios
constitucionais e legais – especialmente a exigência do
cumprimento da função social da propriedade –, seja
porque a nova legislação urbanística, sobretudo a de âmbito
municipal, elaborada para atender os novos dispositivos
constitucionais e legais, ainda não foi incorporada à prática
social.
Tampouco tem sido realizado – seja em nível federal (sequer pelo
Ministério das Cidades!), estadual ou municipal – qualquer
levantamento ou censo das áreas urbanas não-utilizadas ou
subutilizadas – os chamados “vazios urbanos” –, em relação aos
quais deve ser exigido o parcelamento ou a edificação
compulsória. Sem o que o parágrafo 4º, do artigo 182 da
Constituição Federal vira “letra morta”
A tudo isso, se soma o fato de existirem no Brasil mais de sete
milhões de imóveis edificados vazios, que não cumprem portanto a
sua função social. Uma quantidade maior que o déficit
habitacional quantitativo existente. Infelizmente, esses imóveis
não são alcançados pelo artigo 182 da Constituição Federal e
pelo Estatuto da Cidade, apesar de estarem descumprindo a função
social da propriedade, exigida por esta mesma constituição em
seus artigos 5º e 170.
Por tudo isso, impõe-se a realização de um amplo debate sobre a
função social da propriedade do solo urbano – seja no campo
doutrinário, seja no campo de sua aplicação prática – buscando
superar esse conservadorismo jurídico que não encontra respaldo
nem na carta constitucional, nem nas atuais normas legais.
Ao mesmo tempo, é preciso aperfeiçoar a legislação vigente
dispondo, por exemplo, que nos casos de reintegração de posse de
áreas de ocupação consolidada de famílias de baixa renda, se
exija dos proprietários a comprovação do cumprimento da função
social do seu imóvel e que as famílias ameaçadas de serem
desalojadas sejam necessariamente ouvidas.
Concluímos lembrando que Reforma Urbana não se confunde com a
mera construção de conjuntos habitacionais para as populações
empobrecidas, em regiões cada vez mais distantes, geralmente
desprovidas dos serviços básicos e sem acesso aos benefícios da
cidade moderna. Não existe verdadeira Reforma Urbana sem desatar
o “nó da terra” e efetivar a função social da propriedade,
democratizando o acesso à terra urbanizada, bem localizada, para
a ampla maioria da população, especialmente a mais excluída.
Raul K. M. Carrion