O Brasil
possui um dos sistemas de transporte de cargas e de passageiros
mais irracional, antieconômico e poluente do mundo. Ao contrário
dos países mais desenvolvidos, que privilegiam o transporte
ferroviário e hidroviário, o Brasil adotou um modelo
“rodoviarista”, com um altíssimo custo de manutenção e
utilização, causador de um elevado índice de acidentes e danoso
ao meio ambiente.
Ainda que os números sejam imprecisos, se estima que atualmente
o transporte de cargas no Brasil ocorra 60% por rodovias (em São
Paulo mais de 90% e no Rio Grande do Sul em torno de 85%), 23%
por ferrovias, 13% por hidrovias, 3,6% por dutos e 0,4% por via
aérea. Para se ter uma comparação, as ferrovias norte-americanas
respondem hoje por 43% dos transportes do país e ali as
hidrovias também jogam um importante papel. Em todos os países
do mundo que, como o Brasil, possuem dimensões continentais –
EUA, Rússia, China, Índia, Canadá, Austrália e, mesmo, a
Comunidade Européia – as ferrovias cumprem um papel fundamental
no transporte de cargas e pessoas.
A
conseqüência dessa matriz de transportes estapafúrdia tem sido o
alto custo da logística brasileira – diminuindo a
competitividade internacional dos nossos produtos –, a
permanente deterioração das nossas rodovias, devido à sua
utilização por caminhões cada vez mais pesados (verdadeiros
“trens sobre rodas”), mais de 40 mil mortes ao ano (sem contar
mais de 100 mil deficientes permanentes), causadas pelos
veículos automotores, e degradação ambiental.
Essa situação precisa ser enfrentada com urgência, com grandes
investimentos em ferrovias (e também em hidrovias), rompendo com
o “rodoviarismo” irracional que nos foi imposto. Para isso é
necessário enfrentar grandes interesses econômicos enraizados em
nossa sociedade e romper com a incompreensão dos que – com um
raciocínio não dialético – argumentam que como não temos
recursos para manter a atual malha rodoviária, altamente
deteriorada, não há como privilegiar investimentos em ferrovias.
Ora, nunca haverá recursos suficientes para a manutenção de
nossas rodovias enquanto não existir um sistema ferroviário que
retire as cargas pesadas e perigosas das nossas estradas.
Para expor o nosso entendimento sobre essa questão – que
consideramos estratégica para o desenvolvimento nacional –
dividiremos este trabalho em três partes. Na primeira parte,
examinaremos o surgimento das ferrovias no mundo e no Brasil, o
papel que elas jogaram no desenvolvimento nacional e a
progressiva imposição do “rodoviarismo” ao nosso país. Na
segunda parte, estudaremos o caráter predatório da privatização
neoliberal de nossas ferrovias, o seu progressivo
desmantelamento e a situação extremamente precária em que se
encontra hoje a malha ferroviária nacional. Na terceira parte,
apresentaremos propostas para retomar o modal ferroviário no
Brasil, fundamental para um Novo Projeto Nacional de
Desenvolvimento.
O
surgimento das ferrovias no mundo
Não é segredo para ninguém que a invenção da máquina a vapor
moderna, no final do século XVIII e o seu aperfeiçoamento no
decorrer do século XIX, foram decisivos para o desenvolvimento
da Revolução Industrial e para a progressiva substituição da
manufatura pela produção fabril. Coube a Thomas Newcomen e a
James Watt aperfeiçoarem a máquina a vapor durante o século
XVII, tornando economicamente viável sua utilização em larga
escala.
Mas, ela não modificou somente a produção de bens. Ao mesmo
tempo, alterou a locomoção de matérias-primas, bens e pessoas,
revolucionando todo o sistema de transportes da época. Assim, em
1784, James Watt patenteou uma carruagem com tração a vapor e em
1769, Nicholas Cugnot construiu o primeiro vagão movido a vapor.
Ainda no final daquele século, foram construídos os primeiros
navios movidos a vapor, que progressivamente substituíram os
barcos a vela. E, em 1804, o engenheiro inglês Richard
Trevithick construiu a primeira locomotiva de um só cilindro,
com êmbolo e caldeira, para o transporte de cargas nas minas de
carvão.
Fruto desses avanços, em 1825 foi inaugurada a primeira ferrovia
pública a vapor do mundo, entre Stockton e Darlington, na
Inglaterra, com cerca de 40 km. No final do século XIX, as
ferrovias na Inglaterra já alcançavam 35.000 km e nos Estados
Unidos – então donos do maior sistema ferroviário do mundo –
ultrapassavam os 320 mil km. Em 1869, os EEUU já haviam
completado a ligação entre o Atlântico e o Pacífico através de
uma ferrovia transcontinental. Em sua expansão máxima, a malha
ferroviária norte-americana chegou a ter quase 410 mil km.
Atualmente, ainda é a mais extensa do mundo, com quase 230 mil
km.
Na Rússia – que construiu sua primeira ferrovia em 1837 – a
ligação ferroviária entre São Petersburgo e Moscou, com 650 km,
foi inaugurada em 1851. Já a estrada de ferro Transiberiana,
ligando Moscou a Vladivostok, no litoral do Pacífico, a maior
ferrovia do mundo, foi iniciada em 1891 e concluída em 1916. No
período soviético, a malha ferroviária da URSS alcançou quase
150 mil km. Hoje, beira os 100 mil km e transporta 1,3 bilhões
de passageiros/ano e 1,3 bilhões de toneladas de carga/ano.
Na China, as ferrovias atingem 90 mil km, transportam 2 bilhões
de passageiros/ano e 4 bilhões de toneladas/ano, destacando-se
pela grande quantidade de trens de alta velocidade
Na Índia, a primeira ferrovia construída entrou em funcionamento
em 1853, percorrendo 34 km entre o cais de Bombaim e a cidade de
Thane. Hoje, a rede indiana de ferrovias alcança 64 mil km,
transporta 5 bilhões de passageiros/ano e 1,3 bilhões de
toneladas de carga/ano, integrando os 28 Estados e 3 Territórios
da Índia.
Na Europa, os 25 países da OCDE possuem uma rede de estradas de
ferro que totaliza 198 mil km (em uma área que é menos da metade
do Brasil)
Em todos esses países, as ferrovias foram essenciais para a
integração nacional, fomentaram o desenvolvimento de regiões até
então à margem da economia nacional e incentivaram a ocupação do
interior e o surgimento de inúmeras cidades.
Os
primórdios das ferrovias no Brasil
No Brasil, em 1835, o regente Diogo Antônio Feijó editou o
Decreto 100, que regrou as concessões de ferrovias. Em 1840, o
inglês Thomas Cochrane, solicitou a concessão para a construção
de uma ferrovia pela diretriz do chamado “Caminho Novo”, que
terminava às margens do rio Iguaçu, e que serviria para o
escoamento da safra do café. Mas, como Cochrane não possuía
recursos próprios para tocar a obra, nem conseguiu reunir
capitais para realizá-la, nada aconteceu.
Em 1852, O governo imperial editou o Decreto 641, que garantia o
pagamento pelo governo de juros de 5% a 7% ao ano a todo capital
nacional ou estrangeiro que viesse a ser investido em ferrovias,
no Brasil.
Coube então ao sul-riograndense Irineu Evangelista de Souza,
futuro Visconde de Mauá, pleitear, em 1852, a construção da
primeira ferrovia brasileira, também seguindo a diretriz do
“Caminho Novo”, só que – tendo em vista a concessão já dada a
Cochrane – pelo atalho das tropas, passando pela cidade de
Petrópolis e concluindo no porto da Estrela, praia de Mauá, na
foz do rio Inhomirim. Para viabilizá-la, Irineu – que já era um
próspero empreendedor que em pleno escravismo lutava pelo
desenvolvimento industrial do país – formou a empresa “Estrada
de Ferro Petrópolis”, com um capital inicial de 1.300 contos de
réis, tendo a garantia governamental de 5% de juros ao ano sobre
o capital empregado.
A
inauguração do primeiro trecho da estrada de ferro Petrópolis –
a 3ª da América Latina e a 21ª do mundo, com 14,5 km de extensão
– ocorreu em abril de 1854, com a presença do próprio Imperador
D. Pedro II. Em 1856, a linha chegou à raiz da serra,
totalizando 16,1 km. Faltava enfrentar a subida da Serra da
Estrela.
A
rodovia “União e Indústria” deveria alimentar e tornar rentável
a “Estrada de Ferro Petrópolis”, trazendo-lhe as cargas da
província de Minas Gerais. Forçado a abrir mão dessas cargas
para a estrada de ferro D. Pedro II (inaugurada em 1858), Mauá
lastimou: “a estrada de ferro de Petrópolis (...) era
entregue ao extermínio! Minha opinião (...) foi que se
levantassem os trilhos e se vendesse em hasta pública o material
da empresa”. (MAUÁ. Autobiografia..., p. 127-128).
A
Ferrovia de Mauá só chegou a Petrópolis em 1883, quando ele
caminhava para a falência e a ferrovia não mais lhe pertencia.
A
partir da ferrovia construída por Mauá, multiplicaram-se as
ferrovias privadas, tanto pela expansão da produção do café,
quanto pela garantia governamental de juros de 5% a 7% em
relação ao capital empregado (o risco ficava por conta do
Estado, o lucro cabia ao capital). A quase totalidade foi
construída no sentido Oeste-Leste, do interior para o litoral –
onde se encontravam os portos de exportação, sem qualquer
preocupação de interligação com as outras regiões e com a
integração nacional. Estavam voltadas à exportação de produtos
primários, eram desarticuladas entre si, atendiam a interesse
privados localizados, não seguiam parâmetros técnicos comuns -
do que a diferença de bitolas é a expressão mais óbvia – o que
dificultava a integração física entre as diferentes malhas e
aumentava os custos de operação, devido à necessidade de
sucessivos transbordos de cargas.
Enquanto as ferrovias não tiveram que enfrentar a concorrência
das rodovias, essas graves deficiências não impediram o
crescimento, ainda que lento, da malha ferroviária – que em 1907
atingia 17.280 km, transportava 35 milhões de passageiros e 7,5
milhões de toneladas de carga – sendo operada por 56 diferentes
empresas, onde 73% tinham menos de 250 km, o que as tornava
pouco competitivas.
Como diz Tony Belviso (BELVISO. Guinadas..., p. 60-61):
"As
ferrovias brasileiras tiveram o apogeu de expansão quilométrica
até os anos 20 (...) culminando com a queda da Bolsa de Valores
de Nova York. (...) Antes mesmo desse período, a maioria das
empresas ferroviárias já havia sido encampada ou estatizada, sob
a mesma alegação: prejuízos e déficits financeiros. Para não ver
os trilhos serem abandonados, piorando ainda mais a já frágil
ligação com as áreas por ele servidas, o Estado assumia o papel
de empreendedor, encampando e mantendo a operação (...) e
cobrindo os prejuízos à custa de impostos. Assim, muitas
companhias foram criadas apenas com o intuito de serem
repassadas ao governo e terem seu capital de volta com lucro
(pago com tributos de todos), ficando o poder público com a
operação e o déficit. Na década de 20 existiam 48 empresas
ferroviárias. Desse total, apenas 18 ainda permaneciam na
iniciativa privada. Nos anos 50, apenas uma empresa era
particular, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro.”
Ou seja: em um primeiro momento, o Estado sustentou a construção
das ferrovias com a garantia de juros ao capital privado que
viesse a ser investido nelas, portanto, sem risco para os
empresários. Após, lhes garantiu polpudos lucros, assumindo o
ônus da manutenção e operação das ferrovias por eles
construídas...
A
implementação do “rodoviarismo” no Brasil
Em 1950, a malha ferroviária brasileira totalizava 36.745 km –
dos quais 75% nas regiões Sul e Sudeste – sendo operada por 46
estradas de ferro, onde apenas 6% possuíam bitola larga. A
maioria das locomotivas ainda era a vapor, recém tendo sido
iniciada a eletrificação das linhas (1.199 km, em 1950), logo
abandonada devido a opção pelas locomotivas diesel-elétricas,
que começaram a ser adquiridas a partir de 1956, dentro do
modelo norte-americano.
Em 1957, – diante do elevado grau de obsolescência das
ferrovias federais – o governo Juscelino Kubitscheck criou a
Rede Ferroviária Federal S/A, reunindo 18 empresas – que
totalizavam 37 mil km de linhas férreas, cujo controle, direta
ou indiretamente, já era do governo federal, que subsidiava a
sua operação e manutenção. Nessa ocasião, as ferrovias
brasileiras transportavam 55 milhões de passageiros e
transportavam 26 milhões de toneladas de cargas.
Vivíamos tempos do “Plano de Metas” do Governo JK, que propunha
“Fazer 50 anos em 5”. As ferrovias não estavam contempladas
nessas metas e a RFFSA nunca mereceu uma maior atenção de JK. Ao
contrário, este estava preocupado na implantação de fábricas de
automóveis no Brasil e na construção de uma ampla rede de
estradas em todo o país, numa opção claramente “rodoviarista”.
Diversos ramais deficitários – avaliados com uma lente puramente
microeconômica e imediatista – foram desativados.
Os governos Jânio Quadros e João Goulart, que se seguiram, não
alteraram essa situação. Apesar de todas essas dificuldades, em
1964 o transporte de passageiros pela RFFSA chegou a 63,9
milhões (17% mais que em 1957) e o de cargas a 27,2 milhões de
toneladas (5% a mais).
Com o regime militar, veio a criação, em outubro de 1965, do
GEIPOT (Grupo Executivo de Integração da Política de
Transportes), conforme a proposta do “Acordo de Assistência
Técnica” firmado entre o governo brasileiro e o BIRD (Banco
Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento).
Nessa época, eu era estudante de engenharia na UFRGS e tive a
oportunidade de trabalhar como calculista no GEIPOT, realizando
a medição do consumo de combustível de distintos veículos, a
diferentes velocidades, nas mais variadas estradas do Rio Grande
do Sul. Minha primeira surpresa ocorreu por ocasião das provas
de seleção, quando só me exigiram duas habilidades: domínio do
cálculo matemático e da língua inglesa (o domínio do português
não me foi exigido...). A segunda surpresa foi o fato de que
praticamente todos os engenheiros e técnicos envolvidos no
projeto eram estrangeiros!
Ficou claro para mim – já naquele momento – que a elaboração da
política nacional de transportes do regime militar, através do
GEIPOT, se dava sob forte influência estrangeira, especialmente
norte-americana. Não creio ser um mero acaso a opção pelo
“rodoviarismo” no transporte de cargas – em detrimento do
hidroviário e ferroviário – em um país continental como o
Brasil. Principalmente se tivermos em conta nossa dependência em
petróleo e asfalto, além do fato das grandes montadoras de
automóveis serem todas estrangeiras. Aliás, o Relatório da
“Subcomissão de Transporte Ferroviário, que funcionou na
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 1991, já
apontava:
”A
ferrovia no Brasil prosperou até o final da Segunda Grande
Guerra Mundial; após isso, enquanto o mundo inteiro desenvolvia
o transporte ferroviário, o Brasil, com altíssimos custos,
assumia o rodoviarismo. Não é o caso de nos determos aqui na
verdadeira história da subordinação a interesses particulares de
grupos poderosos que se escondem por trás dessa opção política.
Mas cabe registrar, ainda que de passagem, que a força desses
interesses – das montadoras internacionais de automóveis, dos
grandes grupos petrolíferos, etc. – influenciou decisivamente as
políticas de transporte implementadas pelo Estado brasileiro,
num claro exemplo de privatização da coisa pública.” (ALERS.
Relatório..., p. 15).
O
fato é que durante o regime militar foram eliminados cerca de 5
mil km de ramais de baixa densidade – muitos onde hoje estão
instaladas grandes e potenciais empresas exportadoras – e os
trens de passageiros de longo curso foram sendo progressivamente
desativados. Ao mesmo tempo, o transporte de cargas passou a se
especializar em minérios e produtos agrícolas para a exportação,
proibindo-se as encomendas, os correios, as mercadorias em
pequenas expedições e as cargas fracionadas.
Com isso, muitas estações ficaram sem razão de existir e
acabaram fechadas. Um número cada vez maior de cidades deixou de
ter vínculo com as ferrovias, que perderam qualquer caráter
integrador e promotor do desenvolvimento, reduzindo-se a meros
corredores de exportação de commodities (produtos primários
cotados internacionalmente) e de matérias primas, sem
interligação entre as malhas – em um claro processo voltado à
espoliação de nossas riquezas naturais. Em 1970, o transporte de
passageiros caiu para 33,8 milhões (-47%) e o de cargas aumentou
para 32,6 milhões de toneladas (+20%). Em 1980, o número de
passageiros transportados reduziu-se a apenas 13,8 milhões
(-59%), enquanto as cargas transportadas subiram para 71 milhões
de toneladas (+117%).
A
descoberta das jazidas de ferro de Carajás, no Pará, no final da
década de 70, ensejou a construção da Estrada de Ferro Carajás,
concluída em 1985, com 892 km de extensão, acentuando ainda mais
a concentração de nossas ferrovias no transporte de minérios e
produtos primários em geral. Cinco mercadorias – minério de
ferro, carvão mineral, produtos siderúrgicos, derivados de
petróleo e grãos agrícolas, passaram a concentrar 90% do
transporte de carga da malha federal.
O
volume da carga transportada, em 1996, às vésperas da sua
privatização, chegou a 83 milhões de toneladas e desde então vem
crescendo, sem alterar o seu perfil de cargas de baixo valor
agregado. Na medida em que as empresas mineradoras e
exportadoras de produtos primários são ao mesmo tempo
controladoras e maiores clientes das ferrovias concedidas, não
têm qualquer interesse em diversificar a sua carga ou em
integrar a economia nacional, realizando uma verdadeira
“captura” de um serviço essencialmente público pelos interesses
privados.
A
privatização predatória do sistema ferroviário brasileiro
As duas crises do petróleo, seguidas pela crise da dívida
externa, colocaram o Brasil em uma situação financeira
extremamente vulnerável. Diversas estatais – entre elas a RFFSA
– foram forçadas a endividar-se no exterior, para obter os tão
necessários dólares para fechar a Balança de Pagamentos.
Vivíamos tempos de “thatcherismo” (1979-1990), que logo se
expressaria em políticas neoliberais.
Ao assumir a Presidência da República, Fernando Collor de Melo
aderiu à cartilha neoliberal e criou – através da Lei 8.031/90 –
o Programa Nacional de Desestatização (PND), que pouco depois
incluiu a privatização da RFFSA, dando ao BNDES a função de
executar o PND. O seu Impedimento, em 1992, lhe inviabilizou a
privatização das ferrovias, tarefa que será fielmente executada
por FHC, entre 1996 e 1998. Assim, entre 1996 e 1998, a RFFSA
leiloou suas malhas Oeste (1,621 km, bitola métrica),
Centro-Leste (7.080 km, bitola métrica), Sudeste (1.674 km,
bitola larga), Tereza Cristina (164 km, bitola métrica),
Nordeste (4.536 km, bitola métrica) e Sul (6.586 km, bitola
métrica).
A
Ferrovia Paulista S/A (FEPASA) – que em 1971 havia unificado as
várias ferrovias estaduais que competiam entre si – foi incluída
no programa de saneamento da dívida do Estado de São Paulo com a
União e privatizada em 1998 (4.236 km, bitola métrica e larga),
por míseros R$ 360 milhões. O Estado de São Paulo arcou com os
custos da demissão de 10.026 funcionários, entre 1995 e 1998, e
assumiu a responsabilidade pelo pagamento dos 50 mil aposentados
da ferrovia. Também a Ferroeste, do Paraná (248 km, bitola
métrica), foi vendida em 1998.
Ao todo, foram repassados quase 28 mil km de ferrovias, por em
torno de R$ 2 bilhões, pagáveis em prestações a perder de vista.
Lembremos que o custo da implantação de apenas 1 km de ferrovia
é de em torno de R$ 2 milhões e que as ferrovias foram
concedidas por 30 anos, renováveis por mais 30, e que as
concessionárias receberam não só a linha férrea, mas todo o
sistema de estações, oficinas de manutenção, prédios,
locomotivas, vagões e demais equipamentos operacionais. Só uma
concessionária – a ALL, que hoje controla quase 40% de todo o
parque ferroviário brasileiro – recebeu 11.750 km de ferrovias,
934 locomotivas e 27.919 vagões.
A
ANTT (Agência Nacional de Transporte Terrestre) – responsável
pela regulação e fiscalização das concessões – só foi criada em
junho de 2001, cinco anos após a primeira privatização,
caracterizando-se, desde então – como comprova sobejamente o
Ministério Público Federal – pela omissão e conivência em
relação ao descumprimento das obrigações contratuais pelas
concessionárias.
O
resultado foi desastroso para o patrimônio público, como é
denunciado pelo Doutor em Engenharia da UFRJ Eduardo Gonçalves
David:
”Não se
conhecem casos significativos nos quais, em virtude da
privatização, a exploração se expandiu. Ocorreu o contrário,
trechos subutilizados no passado estão hoje totalmente
abandonados, de tal forma que é pura ficção a quilometragem de
linhas divulgada, pois contabiliza o patrimônio público
'oficialmente repassado'. Na realidade, alguns prédios
desativados ruíram, o mato cobriu a linha não utilizada, trilhos
e dormente foram furtados, a faixa livre foi invadida por
casebres e até por sólidas construções de alvenaria, vagões
locomotivas e carros de passagem inservíveis foram cortados a
maçarico e vendidos como sucata. (..,.) ninguém sabe e ninguém
viu, simplesmente sumiu. (…) Respeito ao patrimônio histórico e
cultural deve ser buscado em outra freguesia.” (DAVID.
Trilhos..., p. 28)
Referindo-se ao que se passou com a Fepasa, após a sua
privatização, o Engenheiro Adriano Murgel Branco, ex-Professor
da Universidade Mackenzie, ex-Secretário de Habitação e
ex-Secretário de Transportes do Estado de São Paulo, afirma:
”Hoje a
rede de 5 mil km de ferrovia, concedida à iniciativa privada,
não opera nem a metade da carga de 1986, foi interrompida em
trechos importantes para o desenvolvimento estadual, atua pouco
no transporte para o porto de Santos (das 80 mil toneladas
anuais ali operadas, apenas 20% chegam ou saem por ferrovia)
fatos que resultam em ineficiências, altos custos e perda de
competitividade.” (BRANCO, Ferrovia...., p. 49)
Se olharmos o quadro em nível nacional, dos 28,8 mil km de
ferrovias concedidas pelo governo FHC, dois terços foram
simplesmente desativados e abandonados pelas concessionárias – à
revelia dos contratos de concessão, causando a dilapidação do
patrimônio arrendado e enormes prejuízos à economia nacional –
com a complacência e a omissão da ANTT, a quem caberia a tarefa
de fiscalizar a prestação desse serviço público.
Como afirma o Ministério Público Federal em recente
Representação ao Tribunal de Contas da União (07.06.11):
”São
inúmeros e recorrente os casos de dilapidação do patrimônio da
extinta Rede Ferroviária Federal S.A. pelas concessionárias do
serviço público de transporte ferroviário de cargas (...) seja
em relação aos bens imóveis ou móveis arrendados, seja em
relação a materiais rodantes ou estruturas e superestruturas
utilizados pela concessionária (...). Os contratos de
concessão/arrendamento são sistematicamente descumpridos (…). O
Poder Concedente silencia e omite-se de forma inaceitável. A
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) não se tem
desincumbido a contento de sua tarefa de regulação e
fiscalização. Na falta de efetivo controle, as concessionárias
como que se apropriam do negócio do transporte ferroviário de
carga como se fosse próprio; fazem suas escolhas livremente,
segundo os seus interesses econômicos. O quadro é de genuína
captura, em que o interesse privado predomina sobre o interesse
público. (...) o Estado entregou à iniciativa privada
aproximadamente 28 mil quilômetros de estradas de ferro
(estrutura e superestrutura). Desses, cerca de 16 mil
quilômetros foram abandonados unilateralmente pelas
concessionárias, ao arrepio da legislação e dos contratos de
concessão. O prejuízo ao erário daí advindo pode ser estimado em
mais de 40 bilhões. (...) As concessionárias limitam e tem
limitado a oferta de transporte ferroviário apenas e tão somente
a alguns trechos de alta rentabilidade, normalmente corredores
de escoamento de produção agrícola e de minérios para os portos
brasileiros. E sempre para os mesmos clientes. (...) os leilões
(...) culminaram na alienação das ferrovias para os antigos
clientes cativos/preferenciais da Rede Ferroviária Federal S.A.,
que, desde então, sobrepõem o interesse econômico (privado) em
detrimento do interesse público na prestação contínua, adequada
e acessível aos usuários, impedindo que o transporte ferroviário
seja efetivamente uma alternativa ao modal rodoviário.”
(MPF. Representação..., p. 2, 8-9)
Ou seja, o Brasil – depois de ter contado com uma malha
ferroviária, já modesta, de 37 mil km – hoje tem menos de 10 mil
km de ferrovias em funcionamento, a serviço unicamente do
interesse privado de algumas mineradoras e outras poucas
empresas exportadoras de produtos primários.
Por isso mesmo, acatando a Representação do MPF, acima referida,
contra a Agência Nacional de Transportes Terrestres, o TCU
emitiu no dia 15.02.2012 o acórdão 312/2012 determinando à ANTT
que:
“a) no
prazo de 45 dias, apresente ao Tribunal um relatório descritivo
(...) de modo a identificar todos os trechos ferroviários
concedidos (...) classificados (...) em uma das seguintes
situações:
a.1) em
razoável ou plena utilização da capacidade instalada;
a.2)
subutilizados (média inferior a um trem de carga por dia,
transitando no trecho); ou
a.3) em
completo desuso; (...)
b) no
prazo de 150 dias apresente ao Tribunal um completo levantamento
do estado de conservação dos trechos classificados como
subutilizados ou em completo desuso, informando que providências
foram tomadas para assegurar a execução dos serviços.”
(TCU, Acórdão... , p. 1)
Decisão que deixa claro a situação de descalabro a que levou a
privatização predatória do nosso sistema ferroviário, levada a
efeito pelos governos neoliberais.
O desmonte
das ferrovias e a irracional estrutura dos transportes no Brasil
O
resultado de todos esses anos de abandono do sistema ferroviário
e da falta de um plano estratégico para a locomoção de cargas e
de passageiros no Brasil é a manutenção de uma matriz de
transportes extremamente onerosa para a economia do país,
altamente poluente, causadora de um crescente congestionamento
de nossas vias e estradas e responsável por mais de 40 mil
mortes a cada ano, só por conta de acidentes com veículos
automotores.
Assim, ainda que os números não sejam precisos, estima-se que
hoje o transporte de cargas no Brasil ocorra 60% por rodovias
(em São Paulo 93% e no Rio Grande do Sul 85%), 23% por
ferrovias, 13% por hidrovias, 3,6% por dutos e 0,4% aéreo, em
flagrante dissintonia com a maioria dos países do mundo.
Só como comparação, nos Estados Unidos – grande incentivador do
“rodoviarismo” no nosso país – o modal rodoviário movimenta 28%
das cargas, as ferrovias 40%, as hidrovias 16% e os dutos 16%.
Sua rede ferroviária, que já foi de 400 mil km, reduziu-se, mas
mantém 240 mil km (para uma área de 9,4 milhões de km2).
Nos 25 países da Europa da OCDE, ainda que as rodovias
movimentem 44% das cargas – e aqui pesam as pequenas distâncias
– as ferrovia totalizam 198 mil km de (para 4 milhões de km2),
além da intensa utilização das hidrovias.
O
resultado é que o nosso custo logístico em transporte é de 17%
do PIB, enquanto nos países desenvolvidos é de 6 a 8% e nos
países emergente é de 12%. Situação que afeta seriamente a nossa
competitividade.
Segundo estudos do Porto Autônomo de Paris, os custos indiretos
e operacionais dos principais modais de transporte de cargas
são:
Modo
rodoviário – US$ 66,0 / mil ton/km
Modo
ferroviário – US$ 28,4 / mil ton/km
Modo
hidroviário – US$ 14,3 / mil ton/km
(BRANCO,
Ferrovia...., p. 48)
O
que nos dá uma proporção aproximada de custo de 1 para 2 e para
4,7, mostrando as enormes perdas para a economia nacional ao
manter a atual matriz de transporte. Apesar do transporte
ferroviário ter um custo muito inferior ao do transporte
rodoviário, com tarifas, na média mundial, 30% menores, no
Brasil assistimos o fato insólito de que o seu preço é muito
próximo do preço do transporte por caminhões. Algo que muitos
atribuem ao fato que muitas das operadoras das linhas férreas
também são detentoras de grandes frotas de caminhões...
Prosseguindo nossa análise comparativa entre os distintos
modais, se confrontarmos a sua eficiência energética constatamos
que o modal rodoviário fica em uma situação ainda pior: o
consumo por mil ton/km no modal rodoviário é de 43,4 litros, nas
ferrovias 12,6 e nas hidrovias 7,4, em uma proporção de 1 para
1,8 e para 6 (BRANCO, Ferrovia...., p. 49).
O
Poder Público concedente não tem tomado qualquer iniciativa para
que o transporte ferroviário volte a cumprir suas funções
sociais e coletivas. Como afirma o Ministério Público Federal:
“Trechos
de menor rentabilidade e de usuários menos expressivos ou não
ligados aos investidores do setor não despertam interesse da
iniciativa privada e encontram-se totalmente abandonados e
alijados do desenvolvimento nacional. Em resumo: é a iniciativa
privada quem determina onde e em que condições o serviço público
será disponibilizado. É por isso que grandes e inúmeros trechos
ferroviários encontram-se abandonados, invadidos, depredados e
sucateados. (…) transporte ferroviário brasileiro (…) caminha –
a passos largos – para investimentos em grandes corredores
ferroviários que visam unir regiões produtoras de monocultura e
minérios para os mercados internacionais. Na realidade, os
principais clientes e usuários do transporte ferroviário de
cargas apropriaram-se do serviço público concedido,
transformando-o em parte do ativo de suas empresas. (…) Ora, se
assim é, não surpreende que as concessionárias optem por
transportar suas próprias cargas, em detrimento do interesse
público e da comunidade em geral.” (MPF. Representação...,
p. 9-10).
BIBLIOGRAFIA CITADA
ASSEMBLEIA
LEGISLATIVA DO ESTADO-RS. Relatório da Subcomissão de
Transporte Ferroviário. 1991.
BELVISO,
Tony. Guinadas Ferroviárias In História Viva, Caminhos do
Trem, vol. 4, A conquista do Território. VASQUEZ, Pedro (org).
São Paulo, Dueto Editorial, 2008.
MAUÁ,
Visconde de. Autobiografia; Exposição aos credores e ao
público. O meio circulante no Brasil. Rio de Janeiro:
TOPBOOKS, 1998.
BRANCO,
Adriano Murgel. Ferrovia versus Rodovia. In História
Viva, Caminhos do Trem, vol. 6, De volta aos trilhos. VASQUEZ,
Pedro (org). São Paulo, Dueto Editorial, 2008.
DAVID,
Eduardo Gonçalves. Trilhos e cenários. In História Viva,
Caminhos do Trem, vol. 6, De volta aos trilhos. VASQUEZ, Pedro
(org). São Paulo, Dueto Editorial, 2008.
PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. Representação do Ministério
Público Federal contra a UNIÃO (Ministério dos
Transportes Terrestres - ANTT) e América Latina
Logística, 07 de junho de 2011.
TRIBUNAL
DE CONTAS DA UNIÃO, Plenário. Acórdão Nº 312/2012. TCU.
2012.