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   Porto Alegre, sexta-feira, 22 de novembro de 2024

   
Desenvolver o Marxismo e sua Teoria Revolucionária

Raul K. M. Carrion

Marxismo - Toda Matéria

O capitalismo vive hoje uma profunda crise estrutural decorrente da implementação das políticas neoliberais em escala mundial. Cada vez mais os ônus dessa crise vem sendo jogado sobre os ombros dos trabalhadores – que vêem seus empregos eliminados, seus direitos surrupiados, seus salários reduzidos – e sobre as costas dos países mais fracos.

Na Europa, a “troika” impõe políticas recessivas e anti-povo, sem qualquer respeito à democracia e à soberania das nações – como ocorreu na Grécia. Ao mesmo tempo, crescem as provocações e as agressões militares dos EUA e da OTAN contra os povos e os países que resistem aos seus planos de dominação, o que coloca na ordem do dia com redobrada força a luta pela paz.

Contraditoriamente, apesar dessa profunda crise demonstrar a incapacidade do capitalismo em dar qualquer solução aos problemas da humanidade – e, ao contrário, só agravá-los –, o mundo não gira à esquerda e sim à direita. A xenofobia, o racismo, o machismo, as discriminações, a intolerância religiosa, a violência, não cessam de crescer. Na Europa Ocidental, a social-democracia assume o ideário neoliberal e a direita fascista cresce em toda parte. Nos países ex-socialistas, prevalece o anticomunismo e não há a perspectiva de uma retomada socialista nem a curto, nem a médio prazo.

Mesmo na América Latina – onde as forças anti-neoliberais obtiveram nos últimos anos importantes avanços – observamos uma contra-ofensiva do imperialismo e das forças reacionárias, com o objetivo de varrer do mapa qualquer experiência progressista. Honduras, Paraguai, Argentina, Brasil e Equador já tiveram seus processos revertidos. Venezuela se encontra sob fogo cerrado do imperialismo e das forças de direita.

No seio de boa parte da classe operária, dos trabalhadores, da juventude e da intelectualidade progressista, prevalecem a confusão e a falta de alternativa em relação ao capitalismo. Nos campos da Filosofia, da História, das Ciências Sociais, da Economia, da Política, etc., ganham força o idealismo, o irracionalismo e o obscurantismo.

Impõe-se aos marxistas examinar essa realidade com acuidade e sem concessões. È indiscutível que vivemos, desde algum tempo, um quadro de defensiva estratégica do pensamento e das lutas revolucionárias, o que se iniciou com o progressivo abandono do socialismo na URSS – a partir de meados dos anos 50 do século passado –, se aprofundou com a “Perestroika” e a “Glasnost” e teve o seu desenlace na derrocada do Leste europeu e na restauração do capitalismo na União Soviética, na virada dos anos 90.

Essa derrota estratégica da revolução mundial refletiu, por um lado, a estagnação e a dogmatização do marxismo; por outro, deflagrou uma crise até hoje não superada do pensamento revolucionário marxista. Referindo-se a isso, João Amazonas afirmou, em 1992, em seu Informe Político ao 8º Congresso do PCdoB:

instalou-se uma crise de certa profundidade no movimento marxista-leninista. Crise no campo da teoria, da Filosofia, da própria concepção de socialismo (...) A crise instalada no socialismo corrói a luta do povo por um futuro melhor, enfraquece o impulso combativo dos trabalhadores (...) priva o movimento de massas do fator consciente, que é o motor da ação conseqüente: ‘sem teoria revolucionária – disse Lenin – não há movimento revolucionário’. A superação dessa crise é questão decisiva para a retomada da ofensiva contra o capitalismo (...) Lamentavelmente, ainda é débil a luta contra a crise do marxismo, que apresenta maior complexidade por envolver o socialismo no poder e abarcar o conjunto do movimento revolucionário. (...) pouca atenção, no plano teórico, às deformações verificadas na construção do socialismo (...) Não se poderá vencer a crise sem desenvolver a teoria, o que significa atualizar o marxismo (...). São muitos os problemas a enfrentar, entre os quais a elaboração da experiência adquirida nesses muitos anos de luta de classes e de vigência do socialismo, a sistematização dos elementos novos que serão incorporados à teoria do marxismo-leninismo. (...) É tarefa árdua que requer esforço persistente de pesquisa e elaboração científica (...) Devemos preparar-nos, os revolucionários de todo o mundo, para cumpri-la no mais breve prazo. (...) O combate pela superação da crise do marxismo é a grande tarefa histórica da atualidade.[1]

Bem antes, já em 1981, atento à estagnação e ao dogmatismo que prevaleciam no pensamento marxista – João Amazonas havia afirmado que “Nas condições atuais do mundo e do nosso país, a frente teórica adquire importância sobressalente, de primeiro plano. (...) Em tais circunstâncias, salta à vista a extraordinária importância que assume a luta teórica.[2] E, respondendo àqueles que dizem que hoje o que importa é o enfrentamento dos problemas atuais, afirmou:

vivemos uma crise do marxismo que já dura mais de 30 anos. E muita gente até hoje não se deu conta que essa é uma questão fundamental. Desde que os revisionistas ocuparam o poder na União Soviética, verificou-se a degenerescência do socialismo, com forte repercussão na teoria. (...) Temos de nos debruçar seriamente sobre esse problema da crise do socialismo, temos de enfrentá-la, ou não conseguiremos passar à ofensiva contra o capitalismo e fazer a revolução. (...) Há companheiros que dizem que combater os erros é justo. Mas se deve ficar por aí; que agora é só cuidar dos problemas atuais. (...) tal opinião não faz mais do que repetir Berstein, que dizia que o objetivo é nada e o movimento é tudo. Movimento sem uma teoria que ilumine o caminho não leva a coisa alguma. Por isso, superar a crise do marxismo é hoje tarefa de primeiro plano para o movimento revolucionário mundial. Na nossa opinião, essa questão se resolve fundamentalmente no campo teórico. (...) A teoria entrou numa fase de estagnação. Era preciso sistematizar, generalizar a riquíssima experiência da construção socialista. E isso não foi feito. Ficou um vazio na teoria revolucionária dos nossos dias, que precisa ser preenchido. Necessitamos, todos nós, fazer grandes esforços no campo teórico, ligado à prática revolucionária, para superar a crise do marxismo. Afirmamos com muita consciência que, sem superar essa crise, não haverá revolução socialista, proletário-revolucionária, em nenhuma parte do mundo. (...) Hoje, a direita avança por toda parte. (...) O movimento de esquerda está em descenso. (...) A ausência de uma teoria de vanguarda atualizada priva o movimento de massas do fator consciente. Como seria possível fazer a revolução prescindindo do fator consciente? (...) Os operários, ao ouvir falar de um socialismo desatualizado, respondem que o socialismo fracassou na União Soviética e em toda parte. Não nos darão atenção. (...) Estamos diante de uma tarefa de significação histórica a ser realizada (...) sentimo-nos muito pequenos diante da magnitude dessa tarefa. Impõe-se a conjugação de esforços no plano mundial. Se ainda não temos base suficiente para enfrentá-la devidamente, devemos, ao menos, começar a trabalhar nessa direção, compreendendo que sem teoria revolucionária não existe movimento revolucionário. Estagnada como se encontra, a teoria não poderá cumprir sua missão.[3]

Quinze anos depois, em 2007, Renato Rabelo – no texto “Cinco anos sem Amazonas: o desafio de desenvolver a teoria marxista” – retomou o assunto: “Desde a década de 80, ele procurou problematizar o que conceituou de crise do marxismo (...) Qual é a crise diagnosticada por Amazonas? Para ele não se pode vencer tal crise sem se desenvolver a própria teoria marxista. A crise, então, é justamente uma crise de desenvolvimento da teoria revolucionária. (...) o marxismo não é algo estático e a crise expressa justamente uma necessidade de atualização do marxismo.[4] Em seu Informe Político ao 11º Congresso do PCdoB, Renato Rabelo aprofundou essa questão:

a nossa convicção (...) é de que a teoria revolucionária não está pronta para qualquer período histórico, requer constante renovação (...) temos o grande desafio de atualizar e desenvolver a teoria revolucionária, no bojo do pensamento avançado da nossa época e no curso do movimento transformador das massas trabalhadoras e populares (...) A nossa compreensão é de que esse grande desafio se avultou, em conseqüência do impacto da derrota histórica do socialismo, que teve seu ápice nos começos dos anos 90[5].

Fica claro que a superação da crise do marxismo e de sua teoria revolucionária não será alcançada espontaneamente, pelo mero “passar dos anos”, mas somente através de um grande esforço coletivo, que investigue cientificamente e generalize a experiência de mais de 100 anos de lutas revolucionárias e de experiências de construção socialista. Como afirmou João Amazonas em 1990:

A ciência social dá um salto qualitativo toda vez que (...) se mostra capaz de generalizar a experiência prática. (...) agora, quando o socialismo venceu uma importante fase da sua concretização, coloca-se na ordem do dia a reelaboração – com os novos dados da prática – da teoria da construção da sociedade do futuro. (...) Examinando-se de maneira crítica o passado recente e a experiência vivida, constata-se que a teoria – ao não ter respondido às exigências da evolução social – entrou em crise. E dela somente pode sair, reelaborando os fenômenos novos, dando-lhes correta interpretação. (...) É tarefa transcendental dos nossos dias reformular, em muitos aspectos, a teoria da edificação socialista, a partir do precioso material acumulado na URSS até meados da década de 50 e em outros países (...) Reformular não significa invalidar a base teórica que existia. Significa atualizar criadoramente o marxismo. (...) A crise do marxismo será superada tão prontamente quanto maior for o empenho dos autênticos revolucionários em investigar suas causas e ir a fundo nas questões teóricas que norteiam a marcha da classe operária no rumo do comunismo.[6]

Tema que Renato Rabelo desenvolve em sua intervenção no 10º Encontro de Partidos Comunistas e Operários, realizado em 2008, em São Paulo:

o êxito da nova luta pelo socialismo está na correspondência do desenvolvimento e atualização do pensamento avançado, revolucionário, que responda às exigências de nossa época (...) Vão forjando um acervo inicial que permite construir uma teoria revolucionária para o nosso tempo, os ensinamentos mais positivos retirados das experiências socialistas do século passado, de seus êxitos e seus revezes, a experiência atual dos países socialistas que não sucumbiram à contra-revolução (...) e, também, as experiências recentes do processo inicial de luta progressista e revolucionária na América Latina e em outras frentes de luta avançadas.[7]

Questão também abordada por Renato, ainda em 2008, em palestra proferida em Lisboa,:

O desenvolvimento destas várias experiências (...) podem ser componentes importantes para a atualização e melhor definição da teoria revolucionária moderna. (...) essa definição depende da capacidade de sistematizar as lições das experiências da construção do socialismo no século 20, tanto as que foram derrotadas como as que se desenvolveram.[8]

Mas – poderia contestar alguém –, não há “modelo único” de socialismo ou de revolução socialista! Cada povo, cada país deverá empreender seu próprio caminho e criar o seu modelo específico de socialismo. Como pretender, então, elaborar uma “Teoria da Revolução Socialista”, necessariamente de caráter geral, abstrato? Quem levanta essa objeção demonstra uma grande incompreensão da teoria do conhecimento e da lógica dialética marxista, assim como o papel que nela desempenha a “teoria”.

João Amazonas nos ensina:

A prática é a base do conhecimento, no entanto, é a teoria que generaliza a experiência, que revela as leis objetivas em atuação, que dá ao homem a consciência da necessidade. (...) O que ocorreu na construção socialista, particularmente na URSS, constitui vasta experiência não sistematizada ainda, um enorme material de trabalho para pesquisa. Essa imensa e complexa tarefa, que diz respeito ao futuro da humanidade, vai demandar muito esforço teórico, a mobilização de todas as energias criadoras do movimento operário. Não pode ser resolvida da noite para o dia. Exige perseverança, correta interpretação da doutrina dialética dos clássicos do marxismo, espírito criativo inovador. (...) Prescindir da teoria ou rebaixar seu papel é uma forma de descartar o socialismo (...) Das três formas de luta de classes – econômica, política, teórica – a que se referia Engels, precisamente a luta teórica ganha maior dimensão nos dias que vivemos.[9]

Ou seja, o PCdoB rejeita os modelos ou “receitas” universais para a revolução e para o socialismo, mas não confunde isso com a negação da “teoria”, pois “sem teoria revolucionária não existe movimento revolucionário”. Por isso, o nosso “Programa Socialista” – ao mesmo tempo que afirma que não há “modelo único de socialismo” – não nega a necessidade de uma teoria geral da revolução proletária, constantemente atualizada e adaptada à realidade de cada país: “Embora em suas linhas mestras o socialismo científico seja idêntico em todos os países, sua concretização em cada lugar exige ponderar as particularidades locais, nacionais.[10]

E, para aqueles que – ainda que compreendam a necessidade de uma “teoria do socialismo para o século XXI – acham que isso já foi resolvido pela 8ª Conferência Nacional, que em 1995 aprovou o “Programa Socialista” do PCdoB, respondemos com as palavras de Amazonas no artigo “O Socialismo do Século XXI”, escrito em 1997, três anos após a referida Conferência:

o socialismo ressente-se da derrota que sofreu na ex-União Soviética e no Leste europeu. (...) Evidenciou-se profunda crise no campo de teoria, da ideologia. (...) Sem vencer essa crise, o socialismo não poderá avançar, nem comandar exitosamente a luta emancipadora de milhões de trabalhadores, dos explorados e oprimidos. Não há movimento revolucionário na ausência de teoria revolucionária. (...) vencer a crise no plano da teoria não significa repetir simplesmente fórmulas ultrapassadas, posições dogmáticas, sectárias. (...) É preciso renovar o marxismo revolucionário, extrair as lições das primeiras tentativas de instauração do socialismo, particularmente na ex-União Soviética (...) No curso do século XXI a crise da teoria e da construção socialista será superada. Em vários países observam-se sérios esforços para enfrentar essa tarefa de magnitude histórica.[11]

Tenho a convicção de que o desenvolvimento do marxismo e de sua teoria revolucionária – atualizando-a para os dias de hoje – precisa partir do exame da riquíssima experiência de mais de 100 anos de lutas revolucionárias e de processos de construção do socialismo, com os seus acertos e os seus erros. Nesse estudo, é necessário separar o que é geral e universal do que é singular e particular; e deslindar o que é atual e vigente e o que é passado e caduco. Se não avançarmos no terreno da teoria revolucionária, permaneceremos estagnados, em uma eterna defensiva estratégica.

Sabemos o tamanho do desafio, que não é para uma pessoa ou para um único partido, mas para o conjunto do movimento comunista internacional. Mas não nos atemorizamos. Como afirmou o camarada Renato Rabelo: os ideólogos do capitalismo senil são geriatras; nós, os ideólogos do socialismo nascente, somos pediatras!

A Humanidade, diante da disjuntiva “Socialismo ou Barbárie”, não titubeará em escolher o caminho da construção de uma sociedade sem explorados e sem exploradores, sem oprimidos e sem opressores! O Século XXI será o século do Socialismo!

NOTAS


 

[1] PCdoB. Informe Político ao VIII Congresso-fevereiro de 1992. In: Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro – Documentos do PCdoB de 1960 a 2000. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2000, pp. 442-443.

[2] AMAZONAS, João. Apresentação da Revista Princípios nº 1, 1981. In: AMAZONAS, João. Os Desafios do Socialismo no Século XXI. São Paulo: Editora Anita, 1999, p. 117.

[3] AMAZONAS, João. Pela Unidade do Movimento Comunista - Pronunciamento na reunião de Partidos Comunistas e Organizações Revolucionárias no VIII Congresso do PCdoB, 1992. In: AMAZONAS, João. Os Desafios do..., Idem, pp. 223-225.

[4] RABELO, Renato. Idéias e Rumos. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2009, pp. 351-352.

[5] RABELO, Renato. Idem, p. 109.

[6] AMAZONAS, João. A teoria se enriquece na luta por um Mundo Novo, 1990. In: AMAZONAS, João. Os Desafios do..., Idem, pp. 175-181.

[7] RABELO, Renato. Idem, p.155.

[8] RABELO, Renato. Idem, p.147.

[9] AMAZONAS, João. Defender e desenvolver a teoria marxista: exigência da época atual - Revista Princípios nº 20, 1991. In: AMAZONAS, João. Os Desafios do..., Idem, pp. 205-210.

[10] PCdoB. Programa Socialista. In: Construindo o Futuro do Brasil - Documentos da 8ª Conferência Nacional do PCdoB - 1995. São Paulo: Editora Anita, 1995, p. 23.

[11] AMAZONAS, João. Os Desafios do..., Idem, pp. 42-43.