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“a história do
desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, num ponto,
da história do desenvolvimento da natureza. (...) na história da
sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência,
que atuam sob o impulso da reflexão ou da paixão, buscando
determinados fins; aqui nada se produz sem intenção consciente,
sem um fim desejado. No entanto, (…) essa diferença em nada
altera o fato de que o curso da história se rege por leis gerais
imanentes. (…) Os homens fazem a sua história (…) e a história
é, precisamente, o resultado dessas numerosas vontades
projetadas em direções diferentes (…) deve-se indagar que forças
propulsoras agem (...) por trás desses objetivos e quais as
causas históricas que, na consciência dos homens, se transformam
nesses objetivos. (…) é necessário não se deter tanto nos
objetivos de homens isolados (…) como naqueles que impulsionam
as grandes massas, os povos em seu conjunto e, dentro de cada
povo, em classes inteiras; e não momentaneamente, em explosões
rápidas, como fugazes fogueiras de palha, mas em ações contínuas
que se traduzem em grandes transformações históricas.”[i]
Até o
surgimento da concepção materialista e dialética da história –
elaborada por Marx, em estreita colaboração com Engels –, as
distintas visões acerca do surgimento, desenvolvimento e
transformação das sociedades humanas eram essencialmente
idealistas ou materialistas mecanicistas.
Para uns, a
marcha da história decorria da “Providência Divina”. Para
outros, era o desenvolvimento da Ideia Absoluta no mundo. Para
outros, ainda, ela era obra dos grandes homens e “as causas
últimas de todas as transformações históricas deviam ser
procuradas nas transformações que se operam nas ideias
dos homens (...) entre todas as transformações, as mais
importantes, as que regiam toda a história, eram as
políticas. Não se perguntava de onde vinham aos homens as
idéias, nem quais as causas motrizes das transformações
políticas.”[ii]
Os que
questionavam essas concepções idealistas, a partir de um ponto
de vista materialista, caiam, em geral, em posições
deterministas ou mecanicistas, identificando como causa
principal do desenvolvimento das sociedades as condições
geográficas, o crescimento da população, a “raça”, etc. Ainda
hoje, o “darwinismo social” (a sobrevivência do mais forte) e o
“malthusianismo” (crescimento populacional superior à capacidade
de produção) são apresentados como explicações “científicas” da
história...
Coube a Marx
descobrir a lei do desenvolvimento da história humana:
“o fato tão simples (...) de
que o homem precisa, em primeiro lugar, comer, beber, ter um
teto e vestir-se, antes de poder fazer política, ciência, arte,
religião, etc.; que, portanto, a produção dos meios de
subsistência imediatos, materiais (...) é a base a partir da
qual se desenvolveram as instituições políticas, as concepções
jurídicas, as idéias artísticas e inclusive as ideias religiosas
dos homens”.[iii]
Para Marx e
Engels, é o trabalho faz surgir o homem, sendo a sua principal
manifestação vital:
“pode-se referir à
consciência, a religião e tudo que se quiser como distinção
entre os homens e os animais; porém, essa distinção só começa a
existir quando os homens iniciam a produção dos seus
meios de vida (...). Ao produzirem os seus meios de existência,
os homens produzem indiretamente a sua própria vida material.
(...) A forma como os homens produzem esses meios (...)
constitui (...) uma forma determinada de manifestar a sua vida,
um modo de vida determinado. (...) reflete muito
exatamente aquilo que são. (...) tanto aquilo que
produzem como com a forma como produzem. Aquilo que os
indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua
produção. (...) O primeiro fato histórico é, pois, a produção
dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção
da própria vida material”.[iv]
FORCAS
PRODUTIVAS, RELAÇÕES DE PRODUÇÃO, CLASSES SOCIAIS
Como toda
produção humana é um processo social, nela os homens estabelecem
uma dupla relação: I - com a natureza (os processos produtivos,
em si); II - com os outros homens (relações de produção),
com os quais cooperam, para realizar a produção e o intercâmbio
dos bens necessários à reprodução de suas vidas.
As forças
produtivas englobam os homens (com suas técnicas e
habilidades de trabalho, incluindo as “formas de organização” da
produção), os meios de trabalho – com destaque para os
instrumentos de produção, que são o elemento mais dinâmico,
em constante desenvolvimento (pela ação dos próprios homens) – e
os objetos do trabalho – terras, florestas, águas,
subsolo, matérias primas, combustíveis, fontes energéticas,
caminhos, etc. –, sobre os quais se aplica o trabalho humano. Os
objetos do trabalho tanto podem ser fornecidos
diretamente pela natureza, como podem ser resultantes de
trabalho humano já realizado. Juntos, “meio e objeto de
trabalho são meios de produção”.[v]
As relações
de produção – cujo aspecto determinante são as relações de
propriedade quanto aos meios de produção e de circulação –
devem corresponder ao nível das forças produtivas. Quando
correspondem, as impulsionam. Quando não correspondem, as
freiam. Exemplo disso é a descoberta da máquina a vapor já na
antiguidade clássica, mas que não foi aproveitada devido à
existência do modo de produção escravista. As relações de
produção tanto podem ser de “exploração” – na escravidão, na
servidão, no trabalho assalariado – como de “colaboração” – na
comunidade primitiva, no socialismo, no comunismo.
Enquanto a
produtividade do trabalho humano não alcançou um nível
suficiente para produzir mais do que o estritamente necessário
para a reprodução da vida material dos homens – ou seja,
enquanto não foi capaz de gerar um excedente – não foi
viável a exploração e a humanidade permaneceu no estágio da
comunidade primitiva. Com o surgimento e o crescimento desse
excedente, teve início a apropriação privada dos meios de
produção (antes comuns) e a divisão da sociedade em classes.
Inaugurou-se, então, a exploração do homem pelo homem. O caráter
dessas classes e a forma como são distribuídos os resultados da
produção e a riqueza social são determinados pelas relações de
produção:
“O regime de produção e de
troca de uma sociedade (...) determinam (...) o regime de
distribuição do que foi produzido. (...) E com as diferenças no
regime de distribuição surgem as diferenças de classe.
(...) a sociedade se divide em classes privilegiadas e
desprotegidas, exploradoras e exploradas, dominantes e
dominadas.”[vi]
Marx e
Engels também mostraram como o baixo nível das forças
produtivas, nas primeiras sociedades humanas, fez surgir classes
que – pela violência, a espoliação e o logro – eximiram-se do
trabalho produtivo para dedicarem-se à direção da produção, aos
negócios públicos, à justiça, às ciências, às artes, etc.,
lançando sobre os ombros da imensa maioria da comunidade a carga
do trabalho. O que, de certa forma,
foi um mal necessário para o
progresso humano. Hoje, o alto nível alcançado pelas forças
produtivas tornou isso desnecessário e um obstáculo ao ulterior
avanço da humanidade.
MODO DE
PRODUÇÃO E FORMAÇÃO ECONÔMICO SOCIAL
A unidade de
determinadas forças produtivas e determinadas relações de
produção constitui o Modo de Produção dessa sociedade. Na
vida real, não encontramos sociedades “ideais”, com modos de
produção “puros”. Nas sociedades concretas coexistem mais de uma
forma de produção, sendo fundamental identificar o modo de
produção dominante e a maneira como essas distintas formas de
produção se articulam entre si, constituindo a base econômica
dessa sociedade:
“O que vem a ser a
sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da ação
recíproca dos homens. Podem os homens escolher livremente esta
ou aquela forma social? De modo algum. A um nível determinado do
desenvolvimento das forças produtivas corresponde uma forma
determinada de comércio e de consumo. A determinadas fases de
desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo,
correspondem formas determinadas de organização social (...) uma
determinada sociedade civil. A uma sociedade civil determinada,
corresponde uma situação política determinada (...) expressão
oficial dessa sociedade civil.”[vii]
Sobre a base
econômica – e em consonância com ela – se ergue toda uma
superestrutura política e ideológica, formada pelos
aparatos administrativos, judiciários, repressivos, educacionais
e de propaganda e pelas correspondentes, concepções políticas,
jurídicas, religiosas, artísticas e filosóficas:
“na produção social da sua
existência, os homens estabelecem relações determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção
que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base
concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social. O modo de produção da vida material
condiciona o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente,
determina a sua consciência.”[viii]
A base
econômica e a superestrutura formam uma totalidade, a
Formação Econômico-Social.
A
SUPERESTRUTURA POLÍTICA E IDEOLÓGICA
O Estado
– que surge com a divisão da sociedade em classes – é o elemento
fundamental da superestrutura política. Para Marx e Engels, o
Estado não é – e nunca foi – a expressão do “bem comum”, a
realização da “Idéia Absoluta” ou o resultado de um “pacto”
entre indivíduos que abrem mão da liberdade em benefício da vida
em sociedade. Ao contrário, é consequência da apropriação
privada dos meios de produção por uma minoria e da divisão da
sociedade em classes. É o reconhecimento do caráter
irreconciliável das contradições de classes nas sociedades
baseadas na exploração. Não é a “conciliação de classes”, mas a
“opressão de classe”:
“O Estado não é (...) ‘a
realidade da idéia moral’, nem ‘a imagem e a realidade da
razão’, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade,
quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a
confissão de que essa sociedade (...) está dividida por
antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas
para que esses antagonismos, essas classes com interesses
econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade
numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado
aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o
choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. (...) Como o
Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes
(...) é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da
classe economicamente dominante, classe que, por intermédio
dele, se converte também em classe politicamente dominante e
adquire novos meios para a repressão e a exploração da classe
oprimida. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos
senhores de escravos, para manter os escravos subjugados; o
Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter
a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno
Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital
para explorar o trabalho assalariado.”
[ix]
Assim, a
essência do Estado são os seus aparatos de coerção – forças
armadas, polícia, sistema judiciário, legislação repressiva,
cárceres, etc.: “até o surgimento da primeira forma de
exploração do homem pelo homem, a primeira forma de divisão em
classes (...), não existia o Estado, não existia um aparato
especial para aplicar sistematicamente a violência e submeter os
homens à dita violência. Esse aparato é o que se chama Estado.”[x]
Ao mesmo
tempo em que desvendaram o caráter de classe do Estado, Marx e
Engels alertaram contra qualquer simplificação e mostraram que o
Estado – que nasce da sociedade – adquire uma relativa autonomia
em relação a essa sociedade que lhe deu origem, passa a ter sua
dinâmica própria e a defender interesses próprios. Ao mesmo
tempo, eles indicaram as contradições que existem no Estado, em
decorrência da luta de classes: “por exceção, há períodos em
que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do
Estado, como mediador aparente, adquire certa independência
momentânea em face das classes.”[xi]
O chamado “bonapartismo” – termo cunhado por Marx em “O 18
Brumário” – é um exemplo clássico disso.
Ao lado dos
aparatos de coerção, atuam – além da burocracia administrativa e
de legislativos subordinados ao capital – os mais diferentes
aparelhos ideológicos (escolas, igrejas, família, meios de
informação, etc.), muitos dos quais de caráter privado, com o
objetivo de impor aos oprimidos a ideologia da classe que possui
o poder econômico e político e conseguir o consentimento dos
explorados para essa dominação. Assim:
“os pensamentos da classe
dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos
dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material
dominante numa dada sociedade é também a potência dominante
espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção
material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual
(...). Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal
das relações materiais dominantes (...) a expressão das relações
que fazem de uma classe a classe dominante (...) são as ideias
do seu domínio.”[xii]
A
HISTÓRIA COMO UMA SUCESSÃO DE MODOS DE PRODUÇÃO
No decorrer
do processo histórico, as já referidas forças produtivas e
relações de produção se desenvolvem em forma e ritmos desiguais.
O constante aperfeiçoamento das forças produtivas – em
especial dos instrumentos de produção – faz com que, em
determinado momento, as forças produtivas entrem em contradição
com as relações de produção existentes. De impulsionadoras das
forças produtivas, as relações de produção transformam-se em
freio ao seu ulterior desenvolvimento.
Tem início,
então, uma época de transformações revolucionárias, as quais
abrem caminho através de uma acirrada luta entre a classe que
detém o poder do Estado e se beneficia do modo de produção
caduco e a classe que representa o modo de produção em gestação.
A revolucionarização da base econômica revoluciona toda a
superestrutura política e ideológica e dá origem a uma nova
formação econômico-social:
“Em certo estágio de
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
entram em contradição com as relações de produção existentes,
ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações
transforma-se no seu entrave. Surge, então, uma época de
revolução social. A transformação da base econômica altera, mais
ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura.”[xiii]
Rejeitando
qualquer “determinismo”, Marx e Engels mostram que as
transformações revolucionárias não são uma fatalidade (a
alternativa é a autodestruição das classes em luta) e dependem
sempre da ação dos homens:
“Homem
livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da
corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram
em constante antagonismo entre si, travaram uma luta
ininterrupta, umas vezes oculta, aberta outras, uma luta que
acabou sempre com uma transformação revolucionária de toda
sociedade ou com o declínio comum das classes em luta.”[xiv]
[negritado meu]
Assim, para
os marxistas, a causa última das modificações sociais não deve
ser procurada na consciência dos homens, na sua busca de verdade
e justiça, mas nas transformações que ocorrem nos modos de
produção; não na Filosofia, mas na Economia da sua
época:
“os homens não dispõem
livremente de suas forças produtivas – que constituem a
base de toda a sua história, (...) forças produtivas já
alcançadas, pela forma social que lhe é anterior, que eles não
criaram e que é o produto da anterior geração. Graças ao simples
fato de que toda nova geração se encontra face a forças
produtivas já adquiridas pela geração precedente e que lhe
servem de matéria-prima para a nova produção, surge um
encadeamento na história, surge a história da humanidade”.[xv]
Analisando
diferentes modos de produção ao longo da história, Marx afirma
que “os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês
moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da
formação econômica da sociedade.”[xvi]
Significa
isso que toda sociedade humana passou, ou passará,
necessariamente, por essa sequência de modos de produção
elencada por Marx? Ou – como “codificam” alguns – pela sucessão
“comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo,
socialismo”, numa verdadeira “escatologia histórica”? Nada mais
distante do pensamento de Marx.
Essa
sequência – apresentada na Contribuição à Crítica da Economia
Política – tem um mero caráter exemplificativo. Em outros
textos – especialmente nos Grundrisse (1857-58) –, ao
examinar as “Formas que precedem à produção capitalista”,
Marx enumera outros modos de produção – como o “germânico”, o
“eslavo”, o “celta” – e alerta, inclusive, que o chamado modo de
produção “antigo” (o escravismo greco-romano) não é aplicável a
diversas outras sociedades escravistas. Poderíamos referir,
ainda, ao “escravismo colonial” moderno e às sociedades maia,
asteca e incaica, que não se encaixam nesse “esquema”.
E nos
Grundrisse, Marx afirma que “a escravidão e a servidão
nada mais fazem (...) que desenvolver a propriedade baseada no
regime tribal”.[xvii].
Ou seja, a escravidão e a servidão podem surgir diretamente da
comunidade primitiva, não sendo necessariamente modos de
produção sucessivos no tempo.
Concordando
com Hobsbawn, “a teoria geral do materialismo histórico
requer apenas a existência de uma sucessão de modos de produção
e não a existência de modos específicos, nem que haja uma ordem
pré-determinada para esta sucessão.”[xviii]
A LUTA DE
CLASSES – MOTOR DA HISTÓRIA
Analisando o
papel decisivo da ação dos homens na transformação dos modos de
produção, Engels diz:
“Marx demonstrou que toda
história da humanidade, até hoje, é uma história de lutas de
classes, que todas as lutas políticas (...) giram unicamente em
torno do poder social e político de umas e outras classes
sociais. Por parte das classes caduca, para conservar o poder e,
por parte das classes novas, para conquistá-lo. E o que dá
origem e existência a essas classes? As condições materiais
tangíveis, em que a sociedade de uma época dada produz e troca o
necessário para o seu sustento.”[xix]
E no
prefácio à edição alemã, de 1883, do Manifesto Comunista, Engels
acrescenta que as classes e a luta de classes não existiram
sempre, nem existirão eternamente, cabendo ao proletariado
dar-lhes fim:
“toda a história (desde a
dissolução da posse comunitária primordial das terras) tem sido
uma história de lutas de classe, lutas entre classes exploradas
e exploradoras, dominadas e dominantes, em diferentes etapas do
desenvolvimento social; que esta luta, porém, atingiu agora uma
etapa em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) já
não se pode libertar da classe exploradora e opressora (a
burguesia) sem ao mesmo tempo libertar, para sempre, toda a
sociedade, da exploração, da opressão e das lutas de classes”.[xx]
AUTONOMIA
RELATIVA DAS SUPERESTRUTURAS E SUA INFLUÊNCIA SOBRE A BASE
ECONÕMICA
Significa a
determinação da superestrutura pela base econômica – como
apregoam os críticos do marxismo – que Marx e Engels ignoraram o
papel das idéias e da política no desenvolvimento das sociedades
humanas e caíram no determinismo econômico? Evidentemente que
não, pois, como afirma Engels:
“Segundo a concepção
materialista da história, o fator que, em última instância,
determina a história é a produção e a reprodução da vida real.
Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que
isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o
único fato determinante, converte aquela tese numa frase
vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os
diferentes fatores da superestrutura, que se levanta sobre ela –
as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as
constituições que, uma vez vencida a batalha, a classe
triunfante redige, etc., as formas jurídicas e inclusive os
reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas
participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as
idéias religiosas (...) – também exercem sua influência sobre o
curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua
forma, como fator predominante.”[xxi]
Em longa
carta a C. Schmidt (1890), Engels desenvolve sua análise sobre a
relativa autonomia do Estado, do direito, da filosofia (assim
como a religião) frente à base econômica e destaca a sua
considerável influência sobre os processos econômicos:
“É um jogo de ações e
reações de duas forças desiguais: de um lado, o movimento
econômico e, de outro lado, o novo Poder político que aspira ao
máximo de independência possível e que, uma vez instaurado,
dispõe também de movimento próprio. O movimento econômico
impõe-se sempre, de maneira geral; mas encontra-se sujeito às
repercussões do movimento político criado por ele mesmo e dotado
de relativa independência (...). O mesmo acontece com o direito
(...). Dentro de um Estado moderno, o Direito não deve apenas
corresponder à situação econômica geral e constituir sua
expressão legítima; deve, além disso, ser uma expressão
coerente em si mesma, e que não se volte contra si mesma
através de contradições internas. Para chegar a isso, a
fidelidade do reflexo das condições econômicas se desvanece cada
vez mais. (...) a filosofia de cada época tem como premissa um
determinado material de idéias que lhe é legado por seus
predecessores (...) a supremacia final do desenvolvimento
econômico (...) se opera (...) na filosofia (...) pela ação de
influências econômicas (...) sobre o material filosófico
existente (...) a economia não cria a partir do nada, mas
determina a maneira como se modifica e se desenvolve o material
de idéias pré-existente; e, mesmo assim, quase sempre o faz de
modo indireto (...). Se o Poder político é economicamente
impotente, porque então lutamos pela ditadura política do
proletariado? A autoridade (isto é, o Poder do Estado) é também
uma potência econômica!”[xxii]
E, em carta
a Starkenburg (1894), Engels aprofunda a questão:
“O desenvolvimento político
jurídico, filosófico, religiosos, literário, artístico etc.,
baseia-se no desenvolvimento econômico. Mas todos eles reagem,
também, uns sobre os outros e sobre a infra-estrutura econômica.
Não se trata de que a situação econômica seja a causa, o
único elemento ativo, e que o resto sejam efeitos
puramente passivos. Há todo um jogo de ações e reações à base da
necessidade econômica, que, em última instância, termina
sempre por impor-se. (...) Não se pode dizer, pois, que a
situação econômica exerce um efeito automático (...). Não. São
os próprios homens que fazem sua história, mas num determinado
ambiente, de que são o produto, e tendo por base relações
efetivas que se encontram já em vigor. Entre elas, em última
instância, o papel decisivo cabe às relações econômicas; e só
elas nos dão o único fio de encadeamento capaz de levar à
compreensão dos acontecimentos, por mais que as relações
restantes, políticas e ideológicas, possam influir também sobre
eles.”[xxiii]
DETERMINISMO, ACASO E PAPEL DO INDIVÍDUO E DOS “GRANDES HOMENS”
NA HISTÓRIA
Ao rejeitar
tanto o determinismo mecanicista, quanto a concepção da história
como “território do acaso”, o marxismo mostra como o acaso
– “acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão
difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou
subestimá-la “[xxiv]
– é
uma das formas de manifestação da necessidade:
“Os homens fazem, sim, sua
história; mas, até agora, fazem-na sem dispor ainda de uma
vontade coletiva e de acordo com um plano coletivo (...). Suas
aspirações se entrechocam. Daí, em todas essas sociedades, o
império da necessidade, cujo complemento e forma de
manifestação é o acaso. A necessidade que assim se
impõe, através de acasos, é, também, em última instância, a
necessidade econômica. (...) E quanto mais afastado estiver dos
problemas econômicos o campo de pesquisa em que atuamos, isto é,
quanto mais próximo estiver da ideologia puramente abstrata,
tanto maior será o número de acasos com que nos defrontaremos em
seu desenvolvimento, tanto mais ziguezagues mostrará sua curva
de evolução. Mas uma vez traçado o eixo médio dessa curva, (...)
quanto mais amplo for o período em questão e quanto maior for o
domínio que se investiga, tanto mais esse eixo se aproximará do
eixo do desenvolvimento econômico e tanto mais tenderá a ser-lhe
paralelo.”[xxv]
Ao mesmo
tempo que destacam a ação dos indivíduos, Marx e Engels mostram
que é a ação coletiva dos indivíduos (a luta de classes) e não a
ação de indivíduos isolados, que determina a marcha da história:
“(...) a história faz-se de
tal modo que o resultado final decorre sempre dos conflitos que
se estabelecem entre muitas vontades individuais, cada uma das
quais é o resultado de uma multidão de condições de existência
particulares (...), de um conjunto inumerável de forças que se
entrecruzam, (...) que dão em conseqüência uma resultante – o
acontecimento histórico – que, por sua vez, pode ser encarado
como produto de uma força única que, como um todo, atua
inconsciente e involuntariamente. (...) Não se deve, porém,
deduzir que as diferentes vontades individuais sejam iguais a
zero, pelo fato de que elas não alcancem o que desejam, mas se
fusionem numa espécie de média geral, de resultante comum. (...)
todas elas contribuem para o resultado comum e acham-se,
portanto, incluídas dentro dela.”[xxvi]
Mas, não
significará isso – como alegam alguns – que os homens são meros
“agentes inconscientes” de uma “lógica” histórica, que atua com
base nas condições materiais de sua existência? Engels é
taxativo: “A história não faz nada (...) ‘ela não trava
combates’! Ao contrário, é o homem, o homem real e vivo
que faz tudo isso (...) e conduz todos esses combates. Não é
(...) a ‘história’ que se serve do homem como meio para realizar
(...) seus próprios fins; ela é apenas a atividade do homem que
busca seus próprios fins.”[xxvii]
E quando
fala da “necessidade” que se impõe na história, Engels refere-se
a homens que ainda não se libertaram da “necessidade” e da
“contingência”, e os convida a tomarem em suas mãos o próprio
destino e a darem o salto “do reino da necessidade para o reino
da liberdade”:
“Na época atual, a dominação
do indivíduo pelas condições objetivas, o esmagamento da
individualidade pela contingência (...) colocou (...) uma tarefa
bem precisa: substituir a dominação das condições existentes e
da contingência sobre os indivíduos pela dominação dos
indivíduos sobre a contingência e as condições existentes. (...)
Esta tarefa prescrita pela situação atual coincide com a que
consiste em dar à sociedade uma organização comunista.”[xxviii]
Da mesma
forma, os “grandes homens” – que inevitavelmente surgem nos
momentos de aguçamento da luta de classes – refletem uma
necessidade histórica, contribuindo para acelerar ou retardar as
transformações e para dar-lhes uma forma particular, mas não as
determinam: “a aceleração
ou o retardamento do desenvolvimento dependem, em grau
considerável, desses acasos, entre os quais figura o ‘acaso’
relativo ao caráter dos homens que dirigem o movimento”.[xxix]
E Engels arrematta:
E aqui surgem os grandes
homens. O fato de que surja um deles – precisamente este; num
momento dado e num dado país – constitui naturalmente puro
acaso. Se, porém, o suprimirmos, far-se-á sentir a necessidade
de substituí-lo e surgirá um substituto: será pior, ou melhor –
mas acabará por surgir, mais cedo, ou mais tarde.”[xxx]
O
MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO NÃO É NENHUMA “FILOSOFIA DA
HISTÓRIA”
Para Marx e
Engels – radicalmente dialéticos e materialistas –, sua teoria
científica da história não é uma nova “filosofia da história”,
um sistema acabado e definitivo, para todo o sempre, ou uma
“bola de cristal” para prever o futuro:
“nossa concepção da história
é, antes de tudo, um guia para o estudo e não uma alavanca
destinada a erguer construções à maneira hegeliana. É necessário
estudar novamente toda a história – e estudar em suas minúcias
as condições de vida das diversas formações sociais –, antes de
fazer derivar delas as ideias políticas, estéticas, filosóficas,
religiosas, sobre o direito privado, etc., que lhe correspondem.”[xxxi]
O que Lenin,
no seu tempo, soube compreender perfeitamente: “não
consideramos (...) a teoria de Marx como algo acabado e
intocável (...) esta teoria não faz senão fixar as pedras
angulares da ciência que os socialistas devem impulsionar
em todos os sentidos (...) essa teoria fornece apenas os
princípios diretivos gerais, que se aplicam no particular
(...) de modo diferente”.[xxxii]
Como um
conhecimento completo e definitivo da realidade é inatingível,
nada é mais alheio ao marxismo do que visões dogmáticas e
definitivas da história e do conhecimento humano:
“Da
mesma forma que o conhecimento, também a história nunca poderá
encontrar seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito
da humanidade. Uma sociedade perfeita, um ‘Estado’ perfeito, são
coisas que só podem existir na imaginação. Pelo contrário, todas
as etapas históricas que se sucedem nada mais são que outras
tantas fases transitórias no processo de desenvolvimento
infinito da sociedade humana, do inferior para o superior (...)
esta filosofia dialética põe fim a todas as ideias de uma
verdade absoluta e definitiva (...). Diante dela, nada é
definitivo, absoluto, sagrado. Ela faz ressaltar o que há de
transitório em tudo que existe; e só deixa de pé o processo
ininterrupto do vir-a-ser e do perecer, uma ascensão infinita do
inferior ao superior”.[xxxiii]
O
conhecimento histórico é ainda mais complexo do que nas ciências
da natureza, pois nessas “aparecem muitos fenômenos que (...)
se repetem, com certa regularidade, dentro de limites de tempo
bastante dilatados (...) o mesmo não acontece na história da
sociedade, na qual as repetições de situações (...) são a
exceção e não a regra. Mesmo quando ocorrem, as repetições não
se dão nunca exatamente nas mesmas condições”.[xxxiv]
Sem
pretender ter conseguido abordar o Materialismo Histórico e
Dialético em toda a sua riqueza e complexidade, concluo com
palavras de Engels: “o materialismo moderno é
substancialmente dialético e já não há necessidade de uma
filosofia superior para as demais ciências. (...) Tudo o que
resta da antiga filosofia (...) é a teoria do pensamento e de
suas leis: a lógica formal e a dialética. Tudo o mais se
dissolve na ciência positiva da natureza e da história.”[xxxv]
*Raul Carrion
é Historiador graduado pela
UFRGS, com Especialização em História Afro-Asiática pela FAPA.
Preside a Fundação Maurício Grabois, secção RS, sendo autor,
organizador ou coautor de diversos livros e publicações.
Dirigente histórico do PCdoB, no RS, foi Vereador de Porto
Alegre e Deputado Estadual pelo PCdoB.
[i]
ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã. In: MARX, K. e ENGELS, F.
Obras escolhidas, vol. 3. Rio de Janeiro: Editorial
Vitória, 1963, pp. 197-199.
[ii]
ENGELS, F. Karl Marx. In: MARX, K. e
ENGELS, F. Obras escolhidas, vol. 2. Rio
de Janeiro: Editorial Vitória, 1961, p. 346.
[iii]
ENGELS, F. Discurso diante da sepultura de Marx.
In: Idem, p. 353.
[iv]
MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã, vol. 1. Lisboa:
Editorial Presença, 1980, pp. 19, 33.
[v]
MARX, K. e ENGELS, F. O Capital, Livro 1, Vol. 1.
São Paulo: DIFEL, 1982, p. 205.
[vi]
ENGELS, F. Anti-Dühring. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1976, p. 128.
[vii]
MARX, K. Carta a P. V. Annenkov, (28.12.1846).
In: MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas,
vol. 3. Idem, p. 245.
[viii]
MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política.
São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 24.
[ix]
ENGELS, F. A origem da família, da propriedade
privada e do Estado. In: MARX, K. e ENGELS, F.
Obras escolhidas, vol. 3. Idem, pp. 135-138.
[x]
LENIN, V. I. Acerca del Estado. In: LENIN, V.I.
Obras Escogidas, Vol.3. Idem, pp. 276-277.
[xi]
ENGELS, F. A origem... Idem, p. 137
[xii]
MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã, vol. 1. Idem,
pp. 55-56.
[xiii]
MARX, K. Contribuição à Crítica... Idem,
p. 25.
[xiv]
MARX, K e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista.
URSS: Edições Progresso, 1987, p. 35.
[xv]
MARX, K. Carta a P. V. Annenkov... Idem, p. 245.
[xvi]
MARX, K. Contribuição à Crítica... Idem, p. 25.
[xvii]
MARX, K. Grundrisse - Lineamentos fundamentales para
la crítica de la economia política, vol. 1. México,
D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1985, p. 393.
[xviii]
MARX, K. Formações Econômicas pré-capitalistas.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 22.
[xix]
ENGELS, F. Karl Marx. Idem, p. 346.
[xx]
MARX, K e ENGELS, F. Manifesto... Idem, p. 13.
[xxi]
ENGELS, F. Carta a Bloch (21/22.09.1890). In:
MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas, vol.
3. Idem, p. 284.
[xxii]
ENGELS, F. Carta a Schmidt (27.10.1890). In:
idem, pp. 288-292.
[xxiii]
ENGELS, F. Carta a Starkenburg (25.01.1894).
In: idem, p. 299.
[xxiv]
ENGELS, F. Carta a Bloch, Idem, p. 284.
[xxv]
ENGELS, F. Carta a Starkenburg, Idem, p. 299-300.
[xxvi]
ENGELS, F. Carta a Bloch. Idem p. 285.
[xxvii]
MARX, K. e ENGELS, F. A Sagrada Família. São
Paulo: Editora Moraes, 1987, p. 93.
[xxviii]
MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã, vol. 2.
Lisboa: Editorial Presença, 1980, p. 301.
[xxix]
MARX, K. Carta a Kugelmann (17.04.1871). In:
MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas, vol.
3. Idem, p. 264.
[xxx]
ENGELS, F. Carta a Starkenburg, Idem, p. 299.
[xxxi]
ENGELS, F. Carta a Schmidt (05.08.1890). In:
Idem, p. 283.
[xxxii]
LENIN, V. I. Nosso Programa. In: LENIN, V. I.
Sobre os sindicatos. São Paulo: Editorial
Livramento, s/d, p. 35.
[xxxiii]
ENGELS, F. Ludwig Feuerbach... Idem, p. 173.
[xxxiv]
ENGELS, F. Anti-Dühring.
Idem,
p. 75.
[xxxv]
ENGELS, F. Anti-Dühring. Idem,
p. 23.