Em 13 de setembro de 1996, ao arrepio da Constituição da
República Federativa do Brasil – que em seu artigo 151 dispõe
que “É vedado à União: (...) III- instituir isenções de
tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos
Municípios” –, foi promulgada a “Lei Kandir”
(Lei Complementar nº 87), determinando que o ICMS (imposto de
competência dos Estados e do Distrito Federal) “não incide
sobre: (...) II – operações e prestações que destinem ao
exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos
industrializados semi-elaborados, ou serviços.”
Sob o lema “o que importa é exportar”, foi rasgado
o Pacto Federativo e foram lesados os Estados e o Distrito
Federal, que deixaram de arrecadar o ICMS correspondente às
exportações feitas, na deplorável atitude de “fazer
cortesia com chapéu alheio”.
A
Lei Kandir foi aprovada sob a alegação de dar maior
competitividade aos produtos brasileiros no mercado
internacional, mas na verdade para contornar os prejuízos
causados pelo câmbio supervalorizado durante o Plano Real
– quando o governo fixou que 1 real valia 1 dólar. Em
conseqüência, às nossas exportações perderam competitividade e
as importações foram incentivadas, levando a uma enorme
dilapidação das nossas reservas internacionais.
Recente estudo do renomado economista Ricardo Varsano –
patrocinado pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)
– deixa claro que o Brasil não tem poder de mercado capaz de
alterar os preços internacionais. Assim – com imposto ou sem
imposto –, os preços internacionais serão os mesmos... Portanto,
o valor dos impostos subtraídos aos Estados e Municípios irão
para as mãos dos exportadores, aumentando as suas já elevadas
taxas de lucros!
Segundo a FEBRAFITE (Federação
Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais)
– tendo por base nos dados do CONFAZ (Conselho Nacional de
Política Fazendária) – só o Rio Grande do Sul teve perdas
não ressarcidas de 59 bilhões de reais, entre setembro de 1996 e
dezembro de 2017, em conseqüência da Lei Kandir,
quantia que se aproxima dos 68 bilhões de reais da dívida
ilegítima que o governo federal cobra do Rio Grande do Sul.
Desse total, quase 15 bilhões (25%) deveriam ter sido
repassados aos municípios gaúchos, mas não o foram.
Uma primeira conseqüência da falta desses quase 60 bilhões de
reais para o nosso Estado e para os nossos Municípios foi uma
deterioração dos serviços à população, em áreas como educação,
saúde, saneamento básico, moradia, assistência social,
segurança, infra-estrutura e investimentos públicos em geral.
Mas, o que é ainda mais grave, a isenção de impostos sobre a
exportação de produtos primários e semi-elaborados incentivou
a acelerada desindustrialização do país e do Estado,
tornando-os exportadores fundamentalmente de alimentos, minérios
e commodities. Assim, o Rio Grande do Sul, ao invés
de intensificar as suas exportações de produtos industrializados
em geral, preferencialmente de alta tecnologia – criando mais e
melhores empregos e gerando maiores valores agregados –, ampliou
suas exportações de soja e alimentos in natura, gado em
pé, couro cru e produtos primários ou semi-elaborados.
Ainda que não se possa debitar unicamente à Lei Kandir
essa desindustrialização acelerada – a qual também decorreu de
políticas macroeconômicas equivocadas, como abertura comercial
irresponsável, câmbio sobrevalorizado, altas taxas de juros – é
indiscutível o dano causado por ela. Assim, o peso da
indústria no PIB brasileiro – que nos anos 90 chegou a 30% –
caiu para 10% do PIB, nos dias de hoje.
Da mesma forma, a pauta das exportações tornou-se
majoritariamente de produtos de baixa tecnologia e baixo valor
agregado, gerando déficits crescentes na balança comercial
dos “produtos manufaturados”. No Rio Grande do Sul, as
exportações de bens manufaturados regrediram para apenas 15% e
os bens de alta tecnologia para irrisórios 1,3%.
Os economistas Reisoli Bender Fº e Daniel Arruda Coronel, da
UFSM – em seu trabalho Desindustrialização na economia
gaúcha: evidências a partir de indicadores de orientação externa
– constatam que “ao longo do período, ocorreu um aumento
das exportações de produtos básicos em detrimento das
exportações de produtos semimanufaturados e mais intensamente de
produtos manufaturados (...) há um processo de
desindustrialização em curso no Rio Grande do Sul.”
Qualquer “aprendiz” de economia sabe que são exatamente as
indústrias que criam os melhores empregos, desenvolvem
tecnologias de ponta e sustentam a soberania nacional..
Desindustrializando-nos, regrediremos a uma situação de
semi-colônia, exportadora de produtos primários e commodities.
Ao aprovar a Lei Kandir, o governo federal assumiu o
compromisso de repassar aos Estados e Municípios compensações
pelas perdas causadas pela isenção do ICMS sobre exportações,
tendo a própria Lei previsto a inclusão na Lei Orçamentária, até
2002, de recursos para esse fim, mas sem garantir o integral
ressarcimento dessas perdas tributárias.
A
partir de 2002, a Lei Kandir foi alterada e o governo
colocou, até 2006, o limite de R$ 3,9 bilhões. Após 2006, o
valor das compensações nunca mais foi regulamentado,
dependendo de negociações, ano a ano. Segundo o ex-Procurador
Geral do Estado de Minas Gerais, Onofre Batista, houve 22
tentativas de regulamentar a compensação no Congresso, mas todas
foram barradas pela Presidência da República.
Em 2018 o governo federal repassou apenas R$ 1,9 bilhões aos
Estados e Municípios e a Lei Orçamentária de 2019 não prevê
qualquer ressarcimento, sob a alegação da vigência do “Teto
de Gastos” – disposição constitucional que limita o aumento das
despesas da União à inflação dos últimos 12 meses.
Em função disso, os Estados ingressaram, já em 2016, com uma
Ação Direta de Omissão contra o Congresso Nacional, por não
haver regulamentado esse ressarcimento das perdas causadas pela
Lei Kandir. O STF deu ganho de causa aos Estados e
determinou ao Congresso Nacional regulamentar os repasses da
União aos Estados e Municípios, até agosto de 2018, sob pena
dessa tarefa ser repassada ao TCU.
Em maio de 2018, a Comissão Especial sobre o tema aprovou um
anteprojeto, prevendo a compensação anual de R$ 39 bilhões,
mas este nunca foi à votação em plenário. Com isso a questão foi
remetida ao TCU. No dia 11 de fevereiro de 2019, o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, esteve no TCU para debater o tema a
afirmou que o colocaria em votação até fins de março, mas ele
até hoje não foi votado.
Da mesma forma, a PEC 37/07 – que revoga a não
incidência de ICMS na exportação de produtos
não-industrializados e semi-elaborados chegou a ser aprovada
na CCJ do Senado, em novembro de 2017, mas acabou arquivada
ao final da legislatura, em fins de 2018.
Por tudo isso, impõe-se uma grande mobilização dos Estados e
Municípios para:
1)
Aprovar PEC alterando o artigo 155 da Constituição
Federal, de forma a prever a incidência do ICMS sobre a
exportação de produtos primários e semi-elaborados e isentar do
ICMS os produtos industrializados. Com isso, incentivaremos
a industrialização da nossa produção, ampliando o emprego e
agregando valor às exportações, além de melhorar a arrecadação
de Estados e Municípios, o que reverterá na melhoria dos
serviços à população.
2)
Aprovar Lei Complementar definindo os critérios, os
prazos e as condições para a apuração do montante do
ressarcimento da União aos Estados e Municípios, para compensar
as perdas decorrentes da Lei Kandir depois 13 de setembro
de 1996. Esse valor deverá ser calculado diminuindo-se das
exportações totais o valor das exportações de produtos
industrializados, aplicando-se a ele o percentual de 13% do ICMS
desonerado.
É
desnecessário dizer que com isso estaremos dando um passo
decisivo para restaurar o Pacto Federativo, reduzir a
crise fiscal de Estados e Municípios, saldar a sua hoje
impagável dívida pública e recuperar a capacidade de
investimento dos entes federados.
Historiador Raul Carrion
Janeiro de 2020