Em 7 de novembro de 2017, completam-se cem anos do início da
revolução socialista na Rússia e um século dos mais variados
processos de transição socialista, em diferentes países e
condições – como na URSS, China, Vietnã, Coréia, Laos, Cuba,
Mongólia e Leste Europeu. Além de diversos outros processos
revolucionários que se desenvolveram na Ásia, África e América e
se reivindicam socialistas.
Os fundadores do marxismo sempre manifestaram grande cautela em
indicar "modelos" para a futura sociedade comunista,
considerando que somente a experiência concreta da luta do
proletariado nos distintos países poderia fundamentar uma teoria
científica da revolução socialista (1). Marx e Engels deram
demonstração dessa compreensão ao estudarem com grande atenção a
experiência de apenas 72 dias da Comuna de Paris de 1871,
corrigindo e desenvolvendo a partir dela a sua teoria sobre o
socialismo, especialmente quanto à forma que deveria assumir o
Estado do proletariado (2). Da mesma forma, Lenin debruçou-se
atentamente sobre os diversos problemas teóricos e práticos da
experiência da transição socialista nas condições concretas da
primeira revolução proletária –, abordando temas como a aliança
operário-camponesa, a ditadura do proletariado, a existência de
distintas formas de propriedade e de produção nas primeiras
etapas do socialismo, etc.
Os importantes êxitos conquistados pela URSS nesse processo
levaram – apesar dos naturais erros e insuficiências da primeira
experiência do proletariado mundial – a uma absolutização dos
caminhos por ela desbravados e a sua transformação em um "modelo
universal” para a construção socialista nos mais diferentes
países. O dogmatismo e a escolástica substituíram em grande
parte o marxismo, dificultando a apreensão da realidade viva.
Importantes reflexões de eminentes pensadores marxistas ficaram
obscurecidas por “verdades absolutas oficiais". Apesar disso –
como os dogmas não têm o poder de aprisionar a vida – novas
experiências e caminhos vieram à luz em distintos processos
revolucionários, principalmente nos países coloniais e
semi-coloniais, como a China, Vietnã, Coréia, Laos e Cuba, entre
outros.
Seja em decorrência dos erros cometidos, seja em conseqüência do
agressivo cerco imperialista e da acirrada luta de classes em
nível internacional, a URSS e o Leste Europeu experimentaram
primeiro a estagnação e a seguir a reversão de seus processos de
transição socialista, culminando com o desmoronamento das
chamadas "democracias populares" na Europa Oriental e o
esfacelamento da URSS, com a subseqüente restauração capitalista
nesses países. Em contrapartida, a persistência na busca de
caminhos próprios e inovadores para a revolução socialista na
China, Vietnã, Cuba, Coréia e Laos, tem conseguido manter a
perspectiva socialista e impedido a reversão de seus processos
de transição.
Todos esses processos revolucionários acumularam uma enorme e
variada experiência que tem sido pouco estudada e carece de uma
maior sistematização e teorização. Importantes ensinamentos já
podem ser extraídos dessa difícil e contraditória caminhada –
que não há um "modelo único" ou uma "receita universal” para a
transição socialista; que a análise concreta da realidade
concreta é decisiva para a vitória; que a transição socialista é
mais longa do que se pensava; que a consciência social joga um
papel fundamental nesse processo; que a construção socialista
passa necessariamente por distintas etapas(3); que ela não é
irreversível.
Mas a justa compreensão de que não devemos nos fixar em
“modelos” ou “receitas” para o socialismo não pode nos fazer
ignorar a importância e a necessidade de desenvolver uma “teoria
da transição socialista” – renovada e não dogmática –, que leve
em conta as especificidades de cada país. Da mesma maneira que a
diversidade de formas assumidas pelo capitalismo nos distintos
países não foi impedimento para que Marx desenvolvesse sua
teoria sobre o Capital e o Capitalismo.
Alguém poderia objetar que, para sermos fiéis a Marx, não
deveríamos "especular" sobre o processo de transição do
capitalismo ao comunismo. Passados cem anos (ou quase) das mais
variadas experiências nesse sentido – com os seus erros e os
seus acertos – parece-nos completamente descabida essa objeção.
Pois não podemos confundir a negação de "modelos" e "receitas"
para a revolução com a negação da teoria e da sua sistematização
e generalização a partir da prática; pois “sem teoria
revolucionária não há movimento revolucionário”.
Outros poderiam argumentar que essa teoria renovada já existe e
já está elaborada. Perguntamos: onde? Nos manuais soviéticos,
que teorizavam sobre a sociedade socialista enquanto “um modo de
produção intermediário” entre o capitalismo e o comunismo? Com
suas "leis próprias”? Em uma visão estática que (no nosso
entender) converteu um "processo" (4) em um "estado" ou "etapa"?
Que generalizou uma experiência calcada em uma realidade
específica? Penso que não.
Ou, quem sabe, essa teoria da transição socialista, de caráter
geral, encontra-se nas importantes e instigantes contribuições
teóricas dos camaradas chineses, vietnamitas, cubanos, etc.,
quando buscam sistematizar suas experiências concretas? Sem
negar que aqui encontramos contribuições inestimáveis para essa
teoria do socialismo para o século XXI, entendemos que ainda são
desenvolvimentos teóricos voltados para suas realidades
concretas, onde convivem questões gerais e questões
particulares, específicas de cada processo.
Da mesma forma, a nossa afirmação sobre a necessidade do
desenvolvimento de uma teoria socialista para o século XXI – em
resposta à crise do socialismo que já perdura há 25 anos – não
nega que diversos intelectuais marxistas tenham dado importantes
contribuições a esse debate, ao longo desses quase cem anos, as
quais precisam ser resgatadas.
Não temos a pretensão de “inventar a roda”. Mas apontamos a
necessidade de um trabalho coletivo do nosso partido, em
conjunto com os partidos irmãos, no sentido de realizar um
balanço histórico e teórico desses cem anos de revoluções
socialistas, inclusive ajustando contas com os nossos erros e
insuficiências (5), única maneira de conseguirmos apresentar aos
trabalhadores de todo o mundo uma alternativa socialista viável
ao capitalismo em profunda crise.
Essa necessidade avulta ainda mais na medida em que se aproxima
o centenário da primeira experiência socialista realizada pela
humanidade. Data simbólica que, sem dúvida, levará o
imperialismo e os seus acólitos a uma furiosa campanha contra o
socialismo e os processos revolucionários em todo o mundo. Para
enfrentá-la, é preciso avançar nesse balanço histórico e
teórico. Para isso, penso que deveríamos constituir desde já um
núcleo de camaradas dedicados a essa tarefa, que coordene
através do nosso Comitê Central e da ação da Fundação Maurício
Grabois, da Secretaria de Relações Internacionais e da Escola do
Partido o trabalho dos camaradas que nos distintos Estados se
dispõem e têm condições de contribuir nessa tarefa.
Para ter resultados a médio-prazo, esse processo de pesquisa
bibliográfica, investigação in loco das principais
experiências, intercâmbio de opiniões com partidos irmãos e com
a intelectualidade em geral, necessita ser planejado, incluindo
especialização e distribuição de tarefas. A criação de grupos de
estudo de temas ou processos revolucionários concretos, a
realização de seminários internos e com os partidos irmãos –
abertos à intelectualidade progressista e à academia – são
algumas das alternativas possíveis.
Também está sendo discutida a organização no Brasil, em 2016 e
em 2017, de seminários sobre o socialismo, a serem realizados em
uma ou mais regiões (simultâneos ou não) e envolvendo
palestrantes locais, nacionais e internacionais. Tenho a
convicção que eventos dessa importância e magnitude têm plenas
condições de estabelecer parcerias com universidades, governos e
as mais variadas entidades-instituições, inclusive captando
recursos institucionais para a sua realização. É preciso,
também, planejar a publicação de um conjunto de livros – a serem
lançados no início de 2017 –, abordando os temas tratados nesses
seminários e voltados à luta de idéias em torno do socialismo.
Todas essas iniciativas teriam desdobramento em novembro de
2017, por ocasião das comemorações dos cem anos da Revolução
Russa.
Como a temática é muito ampla, é preciso delimitar algumas temas
centrais para o debate. Sem pretender esgotar o assunto, penso
que se impõe, em primeiro lugar, uma avaliação histórica e
teórica dos principais processos de transformação socialista,
pois só poderá ser fecunda uma teoria que tenha por base
experiências revolucionárias concretas.
Em segundo lugar, é necessário identificar as principais
questões teóricas que vêm sendo enfrentadas nos diferentes
processos de transição socialista. Como a multiplicidade de
caminhos para construir a hegemonia revolucionária e efetivar a
ruptura necessária para a transição socialista; o socialismo
como um processo contínuo de transição revolucionária entre o
capitalismo e o comunismo (e não como um “modo de produção
intermediário”); a questão do Estado e da Democracia no
socialismo; as relações entre o Estado, o Partido e as massas
trabalhadoras; a persistência da luta de classes no socialismo;
o papel da consciência social e da revolucionarização das
estruturas ideológicas na construção socialista.
No campo econômico, o papel do planejamento e do mercado durante
a transição socialista; a existência de diferentes formas de
propriedade e de produção; os mecanismos de distribuição da
riqueza e da produção; a combinação dos incentivos materiais e
morais; a dialética entre as relações de produção e as forças
produtivas durante as distintas fases da transição; o papel da
ciência, da tecnologia e da inovação nas transformações
socialistas; o socialismo e suas formas de integração
internacional nas condições de um mundo hegemonicamente
capitalista-imperialista.
Enfim, estamos diante do desafio de um grande
luta teórica acerca do passado, presente e futuro do Socialismo,
decisiva para que ele volte a ser uma alternativa real de
transformação social libertadora para as amplas massas
trabalhadoras de todo o mundo. O tempo urge. Mãos a obra.
Raul K.
M. Carrion
(1) “Em Marx não há nem rastro de utopismo, pois não inventa
nem extrai de sua fantasia uma ‘nova’ sociedade. Não, Marx
estuda como um processo histórico natural como nasce a
nova sociedade da velha, estuda as formas de transição da
segunda à primeira. Toma a experiência real do movimento
proletário de massas e se esforça em tirar dela ensinamentos
práticos.” (LENIN, V. I. O Estado e a Revolução.
In: LENIN. Obras Escogidas, vol. 2. Moscou: Ediciones
em Lenguas Extranjeras, 1960, pp. 340-341.)
(2) “A Comuna devia ser (...) executiva e legislativa o mesmo
tempo. (...) todos que desempenhavam cargos públicos deviam
receber salários de operários. (...) Assim como os demais
funcionários públicos, os magistrados e juízes deviam ser
funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis. (...) a
Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto
da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a
forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação
econômica do trabalho.” (MARX, Karl. Manifesto do
Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores
sobre a guerra civil na França em 1871. In: MARX e ENGELS.
Obras Escolhidas, vol. 2. Rio de Janeiro: Editorial
Vitória, 1961, pp. 83-85.)
(3) “Demos somente os primeiros passos para nos livrarmos do
capitalismo e começar a transição para o socialismo. Não
sabemos, não podemos saber quantas etapas de transição para o
socialismo haverá ainda.” (LENIN, V. I. Obras Completas,
vol. XXVII. In: BERTELLI, Antônio Roberto, (org.) A Nova
Política Econômica (NEP). São Paulo: Global, 1987, p. 33.)
(4) “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista
medeia o período da transformação revolucionária da primeira na
segunda. A este período corresponde também um período político
de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura
revolucionária do proletariado.” (MARX, Karl. Crítica
ao Programa de Gotha. In: MARX e ENGELS, idem, p. 223.)
(5) “O proletariado não teme reconhecer que a revolução realizou
algumas coisas de maneira esplêndida e outras não. Todos os
partidos revolucionários que sucumbiram no passado foram
vencidos porque se superestimaram e não souberam avaliar onde
estava sua força, nem falar de suas fraquezas.”
(LENIN, V. I. Obras Completas, vol. XXIII. In: BERTELLI,
idem, p. 53.)