Raul K. M. Carrion
Os “Planos Diretores” de
desenvolvimento urbano – tornados
obrigatórios pelo artigo 182 da
nossa Constituição Federal nas
cidades com mais de 20 mil
habitantes - são comuns em grandes
centros urbanos desde pelo menos o
início deste século. Surgiram para
ordenar o parcelamento do solo
urbano, estipular regras para a
edificação urbana e disciplinar o
transporte coletivo e individual.
Não foram nenhum invento
“socialista” ou de regimes
“centralizadores”. Ao contrário,
surgiram da preocupação dos governos
dos países capitalistas mais
avançados com o desenvolvimento
desordenado e caótico das grandes
cidades, resultado da ação do “livre
mercado”. Através de um mínimo de
planejamento urbano, esses governos
procuraram estabelecer regras que
viabilizassem a vida urbana,
colocando os interesses gerais da
burguesia acima dos interesses
particulares de tal ou qual setor da
burguesia ou de tal ou qual
capitalista.
É natural que, em tempos de
neoliberalismo e de “fundamentalismo
de mercado”, esses Planos Diretores
passassem a ser atacados como
limitadores do “desenvolvimento” e
da “liberdade” de movimento dos
grandes grupos econômicos, e
passassem a ser alterados no sentido
de se transformarem em instrumentos
de incentivo ao capital privado. É
nesse contexto que em 1995, por
iniciativa da Secretaria do
Planejamento, começaram as
discussões visando alterar o 1º
Plano Diretor de Porto Alegre,
promulgado em 1979. Essa discussão –
feita sob uma forma eminentemente
técnica e um tanto hermética – tem
mascarado uma acirrada disputa entre
os interesses das amplas massas
trabalhadoras e os interesses dos
grandes grupos econômicos da cidade.
Lamentavelmente, o projeto
apresentado pela Administração
Popular capitula em muitos aspectos
à pressão neoliberal dos empresários
da construção civil e dos
especuladores urbanos
(apresentados como “agentes
criadores”, preocupados com o
bem-estar da população),
que atacam o caráter normativo e
“planejador” do atual Plano Diretor,
acusando-o de “elitista” e
“cerceador” do livre-mercado.
Apresentamos, a seguir, nossas
principais críticas à última versão,
encaminhada pela Administração
Popular à Câmara Municipal, do seu
projeto de reformulação do atual
Plano Diretor:
1. O 2º PDDUA abre mão, em
diversos campos, do caráter
regulamentador do “planejamento”,
substituindo-o pelo caráter fluído e
casuístico do “gerenciamento”, à
cargo do administrador de plantão.
Essa concepção de gerenciamento se
expressa pela eliminação, na lei, de
um grande número de dispositivos
normativos, remetendo, o que deveria
ser atribuição da lei, ao arbítrio
do administrador. Isso torna o Plano
Diretor muito mais permeável às
pressões dos interesses
imobiliários. Além disso, o
“planejamento gerencial” admite o
descumprimento das próprias normas
legais através dos chamados
“Projetos Especiais”
e das “Operações Concertadas”. E o
art. 38 do novo Plano Diretor, cria
Comissões Técnicas “integradas
por diversos órgãos da
Administração, tendo por atribuição
o exame e deliberação de matérias
relativas aos [...] Projetos
Especiais”, excluindo do seu
exame o Conselho do Plano Diretor
(agora denominado Conselho
Municipal de Desenvolvimento Urbano
e Ambiental - CMDUA), única
instância efetiva de participação
popular. E justifica esse
esvaziamento do seu poder de decisão
de uma forma ridícula: “liberar o
Conselho Municipal de
Desenvolvimento Urbano Ambiental
(CMDUA) para outras tarefas”!
2. Em contradição com o discurso
“participativo” e
“anti-burocrático”, inúmeras
atribuições do CMDUA lhe foram
retiradas e repassadas aos órgãos
administrativos (“burocráticos”) da
Prefeitura. Para se ter uma idéia
do grau de liberdade desse
“gerenciamento”, a instalação de
equipamentos de grande impacto -
como crematórios, cemitérios,
shopping-centers, horto-mercados,
garagens de ônibus, estações de
rádio, emissoras de televisão,
penitenciárias, casas noturnas com
mais de 200m2 -
passará a depender unicamente de uma
decisão administrativa, sem
necessidade sequer de uma consulta
ao Conselho.
Da mesma forma, algo tão importante
como a criação de Áreas Especiais de
Interesse Social (AEIS) de tipo I
e II
não precisarão passar por qualquer
avaliação do CMDUA. Para completar,
no Conselho, os “8 representantes
de entidades não-governamentais,
constituídas por entidades de
classe, entidades empresarias, e
entidades de representação e
assessoramento do movimento sindical
e comunitário” deixam de ser
definidos em lei (como no atual
Plano Diretor) e passam a ser “designados
pelo Prefeito”,
perdendo totalmente a sua autonomia.
E o seu funcionamento “bem como a
forma de escolha de seus
representantes, será
disciplinado por Decreto do Poder
Executivo”
3. No seu conteúdo,
o novo Plano Diretor abdica de
enfrentar a questão chave dos vazios
urbanos – que abarcam em torno de
40% das áreas urbanas de Porto
Alegre e se encontram oligopolizadas
por um punhado de especuladores.
Procurando eludir o problema, a
Administração Popular propõe o
adensamento ainda maior de regiões
já amplamente ocupadas – e muitas
vezes saturadas (como o eixo da
Assis Brasil, da Anita Garibaldi e
outros) – e a ampliação da área
urbana liberada para a produção
predial (apesar da atual área urbana
já ser capaz de abrigar uma
população de até 2.500.000 pessoas).
Nesse sentido, não parece ser
“mera coincidência” a total ausência
no projeto do 2º PDDUA de qualquer
referência aos novos instrumentos
conquistados na Constituição Federal
de 1988 (art. 182) e na Lei Orgânica
do Porto Alegre (art. 204) – como o
IPTU Progressivo, o Parcelamento
Compulsório, a Edificação
Compulsória e a Desapropriação com
pagamento mediante títulos da dívida
pública.
1. O
Capítulo II (“Dos Dispositivos de
Controle das Edificações”) do Título
I (“Das Normas Gerais do Regime
Urbanístico”), da Parte III (“Do
Plano Regulador”), com seus inúmeros
Anexos, é um dos mais técnicos e
difíceis de abordar por não
especialistas. Ao mesmo tempo, é
nele – na disputa em relação aos
Índices Construtivos e ao
Solo Criado,
ao Regime Volumétrico, aos
incentivos para as garagens -
que se movimentam os mais fortes
interesses do setor imobiliário.
Pela amplitude e complexidade das
questões envolvidas, optamos por
fazer neste item somente três
observações gerais:
a) Os
Índices de Aproveitamento propostos
concedem aos construtores uma
elevação generalizada e gratuita
(burlando a Lei do Solo Criado)
dos Índices Construtivos para
moradia sob a alegação da
uniformização dos índices
construtivos através da realização
de uma “média” entre os Índices
Construtivos para comércios e
serviços e os Índices Construtivos
para moradia. Só não é explicado que
os índices, atualmente mais
elevados, para comércios e serviços
decorreram de uma política de
incentivo à policentralidade da
cidade, buscando o deslocamento para
os bairros de uma parte do comércio
e dos serviços. Hoje, que essa meta
já foi atingida no fundamental e se
observa uma saturação da demanda de
construções para atividades
comerciais e de serviços, caberia a
retirada desses incentivos, e não a
sua transferência - “de mão beijada”
- para a construção de moradias.
Assim, para tomarmos exemplos
concretos, no bairro Petrópolis os
atuais índices de 2,4 para
comércio e serviços, e 1,0
para moradia, são transformados em
um índice único de 1,9 (um
aumento de 90% para a construção de
moradias!). Já na Venâncio
Aires, onde os atuais índices são de
2,9 para comércio e serviços
e de 1,2 para residências, se
“unifica” através dos índices 1,9
(aumento de 60%) no lado ímpar e
2,4 (aumento de 100%) no lado
par. A aprovação dessas mudanças
significará a doação de benefícios
despropositados aos proprietários de
terra da cidade, subtraindo recursos
para investimentos públicos e para
moradia popular, anulando na prática
a Lei do Solo Criado. É
interessante recordar as graves
denúncias feitas em relação às
administrações anteriores por
concessões bem menores aos grandes
construtores imobiliários.
b) A
pedido do SINDUSCON e de outras
entidades empresariais – e com o
pretexto de incentivar o mercado
construtivo da cidade – o regime
volumétrico proposto é extremamente
liberal, permitindo, em diversas
regiões, a construção junto às
divisas de paredões com até 18
metros de altura12 ,
com evidente prejuízo para a
qualidade de vida da cidade.
Existe o consenso entre os
arquitetos e engenheiros não
diretamente envolvidos com a grande
indústria da construção civil (a
maior ganhadora com essas
modificações) de que o atual projeto
levará a um retrocesso que remete
aos anos 1950, induzindo à
construção de prédios no estilo
“caixote” – aqueles que vão até a
beirada do terreno e se levantam em
uma perpendicular. A ocupação do
terreno, atualmente limitada, em
geral, a dois terços da área total,
é estendida a até 100% do terreno,
permitindo construções nas divisas.
Aumenta-se a altura dos prédios sem
o afastamento proporcional, hoje
existente. É criada a figura da
“Base”, que pode ocupar até 100% do
terreno e alcançar 9 metros de
altura, sem gastar Índice
Construtivo algum. (é mais Solo
Criado dado!) Conseqüências:
impermeabilização do solo da cidade;
menor ventilação dos prédios e da
cidade; menor insolação dos prédios
e da cidade; tudo isso
expressando-se em pior condição de
vida para a população.
c)
Com o argumento de favorecer a
circulação de veículos na cidade,
são concedidos incentivos
escandalosos à construção de
estacionamentos privados, inclusive
comerciais13 ,
tanto no Centro, como nos bairros.
Assim, se alguém quiser construir um
estacionamento comercial de 20
andares no Centro da cidade, não
gastará um único metro quadrado em
Solo Criado e ainda poderá
transferir os índices do respectivo
terreno para outra área.
Pergunta-se: por que não existem
tais “benesses” para a produção de
moradias populares? Para as
construções feitas pelas
cooperativas habitacionais de
trabalhadores? Para a construção de
escolas e hospitais? Essa
política de incentivo indiscriminado
à construção de garagens, além de
ser socialmente injusta – pois
retira recursos do Solo Criado –
leva a um incentivo indireto ao
transporte individual em detrimento
do transporte coletivo. A sua
conseqüência imediata será tornar o
trânsito da cidade ainda mais
difícil.
2. Do
ponto de vista do sistema de
transporte, ao invés de priorizar
o transporte coletivo em relação
ao transporte individual
(principalmente em veículos
automotores), o novo Plano Diretor –
dentro da lógica individualista,
irracional e anárquica do
capitalismo - induz à utilização
massiva de automóveis para o
deslocamento na cidade,
inclusive para o Centro (onde, pelas
características geográficas de Porto
Alegre, afunila todo o sistema
viário da cidade), através de
generosos subsídios para a
construção de garagens, inclusive
comerciais (como já foi visto no
item anterior). Seja para evitar a
degradação ambiental, seja para
evitar o caos no trânsito, tão
característico dos grandes centros
urbanos, o 2º PDDUA – ao contrário
do que o faz – deveria
desestimular o deslocamento em
veículos particulares para o Centro.
Pois o fundamental não é retirar os
automóveis dos “acostamentos” das
grandes avenidas e ruas centrais,
mas retirá-los das próprias avenidas
e ruas. Ao mesmo tempo, procurando
romper com a lógica do modelo de
transportes baseado no automóvel,
devem ser incentivadas formas
alternativas e multimodais de
transporte (trem urbano, barco,
bicicleta, etc.), necessariamente
integradas.
CONCLUSÕES
Situados os principais
problemas do 2ºPDDUA, fica claro que
os mesmos não são meramente
“técnicos”, nem são assunto
unicamente para arquitetos e
engenheiros. Ao contrário, são
questões que dizem respeito
diretamente a todos nós, que
mascaram uma acirrada disputa
pela renda da terra e pela
apropriação dos benefícios dos
investimentos e obras públicas na
cidade, pagas com o dinheiro de
todos. E que, historicamente, vêm
sendo apropriados pelos grandes
proprietários de terras e pelos
grandes construtores.
Infelizmente o 2ºPDDUA não só não
reverte esse quadro – como seria
de esperar de um Governo aliado às
forças populares – como o
aprofunda ainda mais. Esperamos
que ainda haja tempo para reverter
esse quadro desfavorável e que esta
discussão contribua para esclarecer
os equívocos do 2º PDDUA, ajudando
na mobilização de forças para
alterá-lo.
“impõe-se
mais do que nunca a articulação
entre o setor privado e o público,
fazendo com que o primeiro aporte
suas energias e criatividade
sócio-econômica para a qualidade do
conjunto” [Secretaria do
Planejamento Municipal, PMPA. 2º
PDDUA: Lei Comentada.1998, p. 5]
“Programa
de Gerenciamento do Plano Regulador
[...] para viabilizar um processo de
planejamento mais dinâmico, mais
participativo e menos normativo”
(...) “um programa de gerenciamento
da aplicação das regras [...] que
tornem o planejamento menos
burocratizado.” [Idem, p. 23]
“mudança
do conceito de planejamento de
normativo [...] para estratégico
[...] Nesse sentido, a gestão toma
uma importância muito grande” [Idem,
p. 6]
“Em
Áreas Especiais e Projetos
Especiais, o regime urbanístico
poderá ser definido mediante
aplicação de Regimes Especiais”
[Idem, p. 68] “na forma de Projeto
Especial, o SMGP poderá definir
ajustes ou normas especiais, em
função de situações específicas”
[Idem, p. 77]
Idem,
p. 47.
Idem,
p 54 e Anexo 5.3 do 2º PDDUA.
“assentamentos
[...] de baixa renda em áreas
públicas ou privadas” [Idem, p. 60]
“loteamentos
públicos ou privados irregulares ou
clandestinos” [Idem, p. 60]
Idem,
p. 48.
Idem,
p. 49.
O
Solo Criado é um instrumento
de regulação urbana que atribui a
cada terreno um determinado
potencial construtivo (definido pelo
seu Índice Construtivo). Se o
seu proprietário, dentro dos limites
de altura permitidos pelo Plano
Diretor, quiser construir mais do
que o previsto, deverá pagar esse
Solo Criado em dinheiro. A
justificativa para essa cobrança é
que uma construção altamente
densificada (por exemplo, um
edifício de 20 andares) demandará
uma enorme ampliação dos serviços –
água, luz, esgotos, vias de
escoamento, escolas, hospitais, etc.
– que serão pagos com dinheiro
público; nada mais justo, portanto,
que os particulares que lucram com a
construção vertical paguem uma parte
desses gastos. Exemplificando: em
geral o Índice Construtivo permitido
é em torno de 1,0; ou seja, se eu
tenho um terreno de 100m2,
posso construir 100m2
(por
exemplo, 2 andares de 50 m2 cada
um); se eu quiser construir 10
andares de 50 m2 cada
um, totalizarei 500 m2,
devendo pagar 400 m2 de
Solo Criado. Os valores
arrecadados através desse mecanismo
irão para um Fundo de
Desenvolvimento Urbano, que os
aplicará em obras públicas e na
produção de moradias para a
população de baixa renda.
“impõe-se mais do que nunca
a articulação entre o setor
privado e o público, fazendo
com que o primeiro aporte
suas energias e criatividade
sócio-econômica para a
qualidade do conjunto”
[Secretaria do Planejamento
Municipal, PMPA. 2º
PDDUA: Lei Comentada.1998,
p. 5]
“Programa de Gerenciamento
do Plano Regulador [...]
para viabilizar um processo
de planejamento mais
dinâmico, mais participativo
e menos normativo” (...) “um
programa de gerenciamento da
aplicação das regras [...]
que tornem o planejamento
menos burocratizado.” [Idem,
p. 23]
“mudança do conceito de
planejamento de normativo
[...] para estratégico [...]
Nesse sentido, a gestão toma
uma importância muito
grande” [Idem, p. 6]
“Em Áreas Especiais e
Projetos Especiais, o regime
urbanístico poderá ser
definido mediante aplicação
de Regimes Especiais” [Idem,
p. 68] “na forma de Projeto
Especial, o SMGP poderá
definir ajustes ou normas
especiais, em função de
situações específicas”
[Idem, p. 77]
“assentamentos [...] de
baixa renda em áreas
públicas ou privadas” [Idem,
p. 60]
“loteamentos públicos ou
privados irregulares ou
clandestinos” [Idem, p. 60]
O Solo Criado é um
instrumento de regulação
urbana que atribui a cada
terreno um determinado
potencial construtivo
(definido pelo seu Índice
Construtivo). Se o seu
proprietário, dentro dos
limites de altura permitidos
pelo Plano Diretor, quiser
construir mais do que o
previsto, deverá pagar esse
Solo Criado em
dinheiro. A justificativa
para essa cobrança é que uma
construção altamente
densificada (por exemplo, um
edifício de 20 andares)
demandará uma enorme
ampliação dos serviços –
água, luz, esgotos, vias de
escoamento, escolas,
hospitais, etc. – que serão
pagos com dinheiro público;
nada mais justo, portanto,
que os particulares que
lucram com a construção
vertical paguem uma parte
desses gastos.
Exemplificando: em geral o
Índice Construtivo permitido
é em torno de 1,0; ou seja,
se eu tenho um terreno de
100m2,
posso construir 100m2
(por exemplo, 2
andares de 50 m2 cada
um); se eu quiser construir
10 andares de 50 m2 cada
um, totalizarei 500 m2,
devendo pagar 400 m2 de
Solo Criado. Os
valores arrecadados através
desse mecanismo irão para um
Fundo de Desenvolvimento
Urbano, que os aplicará em
obras públicas e na produção
de moradias para a população
de baixa renda.