1 -
INTRODUÇÃO
O objetivo geral desta
pesquisa é reconstituir o processo
de formação do Partido Comunista do
Brasil (PCB/PCdoB), no Rio Grande do
Sul, desde os primórdios do
movimento operário até os seus
primeiros anos de vida, partindo-se
da seguinte questão: que razões, que
circunstâncias, que particularidades
levaram a constituição deste Partido
que - apesar de tão perseguido, de
nada oferecer em benefício “pessoal”
a seus membros, formado por pessoas
simples do povo, sem recursos
financeiros, com uma trajetória de
vários erros - persiste até os dias
de hoje, em que pese as incontáveis
tentativas de liquidá-lo, seja
através da repressão, seja através
da dissolução interna?
A escolha deste tema se
justifica por diversas razões. Em
primeiro lugar, trata-se de um
assunto praticamente ignorado por
nossa historiografia acadêmica..
Afora as obras que tratam da
história do Partido Comunista do
Brasil a nível nacional - com
algumas resumidas referências à sua
trajetória no nosso Estado - e
eventuais menções ao mesmo em
estudos sobre as lutas sociais ou
sobre os partidos no Rio Grande do
Sul, inexistem obras que tratem de
forma global a história do Partido
Comunista do Brasil no Rio Grande do
Sul. Esse “silêncio oficial” sobre a
história do mais antigo dos atuais
partidos do país - mesmo em
alentados volumes sobre a “História
do Rio Grande do Sul”, sobre a
“Política Riograndense”, ou sobre a
“História dos Partidos do Rio Grande
do Sul” - só é rompido por algumas
modestas monografias, que tratam de
aspectos pontuais da sua trajetória,
por alguns poucos trabalhos
biográficos e por memórias de
antigos comunistas. Evidentemente
que esse vazio historiográfico não é
gratuito, e deve-se tentar
explicá-lo. Como afirmou o poeta
Ferreira Gullar, referindo-se ao
Partido Comunista do Brasil,
quem
contar a história do nosso povo e
seus heróis tem que falar dele. Ou
estará mentindo.
Por
que, então, tal carência de estudos
sobre o mesmo? Uma primeira
explicação poderia ser encontrada na
dificuldade em obter documentação
primária sobre a sua história.
Realmente são poucas as fontes sobre
um partido que passou a maior parte
da sua vida proscrito e perseguido.
Mas isso não explica tudo. A essa
dificuldade real é preciso somar o
fato de tratar-se de um partido da
classe operária, cuja história é
menosprezada pelas elites
dominantes. Por outra parte, é
necessário considerar a ocorrência
em nosso país de longos períodos
ditatoriais - os oito anos do Estado
Novo e os vinte e um anos de Regime
Militar - ou semi-ditatoriais - como
os quatro anos do governo do
Marechal Dutra - além do
anticomunismo difundido por anos a
fio, o que acabou transformando esse
tema em algo “mal visto” e até
“perigoso”.
Mas a
importância deste trabalho não está
só no seu relativo ineditismo.
Consideramos ser impossível
compreender a história política e
social do nosso Estado, neste
século, sem analisar o protagonismo
de sua classe operária. E não se
pode estudar esse protagonismo sem
estudar a história do Partido
Comunista do Brasil.
Temos
consciência das dificuldades do tema
que acometemos, seja pela falta de
fontes, seja pela circunstância de
ser um trabalho pioneiro, por isso
mesmo lacunoso e insuficiente. Mas
procuraremos responder ao desafio da
melhor maneira possível, sem a
pretensão de esgotar o assunto,
abrindo picadas para os que virão
depois.
É
preciso alertar, ainda, que devido
ao seu caráter nacional, é
impossível escrever uma história
puramente regional do Partido
Comunista do Brasil. A própria
periodização da sua trajetória tem
que estar relacionada,
necessariamente, aos acontecimentos
nacionais. Diante da dificuldade da
tarefa, decidimos limitar a pesquisa
ao período que vai até 1930. Ou
seja, seus antecedentes históricos,
sua fundação propriamente dita e
seus primeiros anos de vida.
Mas o
estudo da história do Partido
Comunista do Brasil não pode
encerrar-se em si mesmo. Como nos
diz Gramsci:
O que será a história de um partido?
Será a simples narrativa da vida
interna de uma organização política,
seu nascimento, os primeiros grupos
que a constituem, as polêmicas
ideológicas através das quais se
forma o seu programa e a sua
concepção do mundo e da vida? Neste
caso, se tratará da história de
grupos intelectuais limitados,
quando não da biografia política de
uma só individualidade. O quadro
terá que ser, portanto, mais vasto e
abrangente. Deverá se fazer a
história de uma determinada massa de
homens que seguiu a seus promotores,
lhes rodeou da sua confiança, da sua
lealdade, da sua disciplina, ou lhes
criticou “realisticamente”,
dispersando-se ou permanecendo
passiva frente a determinadas
iniciativas. Porém, essa massa está
composta unicamente pelos membros do
partido? Bastará seguir os
congressos, as votações, etc., isto
é, todo o conjunto de atividades e
modos de existência com que uma
massa de partido manifesta a sua
vontade? Evidentemente, será preciso
ter em conta o grupo social do qual
o partido em questão é expressão e
parte mais avançada; isto é, a
história de um partido terá que ser,
forçosamente, a história de um
determinado grupo social. Mas, este
grupo não está isolado; tem amigos,
simpatizantes, adversários,
inimigos. A história de um
determinado partido só resultará do
complexo quadro de todo o conjunto
social e estatal (freqüentemente,
com interferências internacionais);
por isso, pode-se dizer que escrever
a história de um partido significa,
nem mais, nem menos, escrever a
história geral de um país, desde um
ponto de vista monográfico, para por
em relevo um aspecto característico.
Por isso, o nosso estudo terá que
partir de uma análise - ainda que
sucinta - do processo de
industrialização e de formação da
classe operária no Brasil e no Rio
Grande do Sul, assim como das
principais lutas e correntes
operárias que aqui atuavam no começo
do século; base real para o
surgimento do Partido Comunista do
Brasil em 1922. Nesta análise
procuraremos identificar as
especificidades deste processo em
nosso Estado. Assim, estudaremos as
características da classe operária
gaúcha, principalmente no início da
década de vinte, quando foi fundado
o Partido Comunista do Brasil.
Examinaremos o peso relativo da
mão-de-obra imigrante no Rio Grande
do Sul (muito menor do que em São
Paulo na mesma época);
sua composição étnica; as
influências predominantemente
anarquistas ou socialistas; suas
relações com o movimento operário e
sindical dos países platinos; sua
concentração fabril; os ramos
industriais predominantes; etc.
Em um
segundo momento, estudaremos a
formação propriamente dita do
Partido Comunista do Brasil,
examinando os diversos fatores que
influenciaram o seu surgimento -
falência tática e estratégica do
anarco-sindicalismo, influência
crescente das idéias da revolução
russa, crescimento da classe
operária - procurando resgatar suas
particularidades no Rio Grande do
Sul. Assim, veremos o surgimento dos
primeiros grupos “comunistas” e dos
seus jornais, os contatos com a
Internacional Comunista via o
Uruguai e a Argentina e a fundação
propriamente dita do Partido
Comunista do Brasil. Examinaremos os
seus passos iniciais, sua busca de
inserção nas lutas sindicais, seu
trabalho de organização dos
trabalhadores, suas bandeiras
programáticas e suas reivindicações
mais imediatas. Da mesma forma,
analisaremos a sua participação
eleitoral - inicialmente via o
“Bloco Operário”, posteriormente
através do “Bloco Operário -
Camponês” (BOC) - e a sua
estruturação partidária.
É esse
processo que procuraremos acompanhar
nos seus desdobramentos no Rio
Grande do Sul, analisando o contexto
em que se deram, os seus personagens
principais, as concepções que se
chocaram e as suas conseqüências.
Nossa principal hipótese de trabalho
é que o surgimento do Partido
Comunista do Brasil, seja a nível
nacional, seja a nível do Rio Grande
do Sul, não foi algo artificial,
fruto da “vontade” de alguns
indivíduos ou “uma idéia trazida de
fora” - criação da Internacional
Comunista, do “dedo de Moscou” - mas
refletiu uma necessidade objetiva,
decorrente da evolução social do
país e do Estado, e do próprio
desenvolvimento da classe operária.
Correspondeu, na visão de Marx, à
transformação da classe operária de
classe em sí para classe
para si.
Da
mesma forma, entendemos que a
continuidade do Partido Comunista do
Brasil - caso único entre tantos
outros “partidos operários” criados
na época, no Brasil - apesar dos
percalços, perseguições e equívocos
cometidos, expressa a existência
objetiva de espaço para um projeto
político de transformação radical e
revolucionária da sociedade
capitalista brasileira, distinto dos
projetos reformistas da burguesia e
da pequena-burguesia urbana ou
rural.
A base teórica do nosso
trabalho é o materialismo-histórico,
sintetizado por Marx, em 1859, no
Prefácio à “Contribuição à Crítica
da Economia Política”:
(…) na produção social da sua vida,
os homens contraem determinadas
relações necessárias e independentes
da sua vontade, relações de produção
que correspondem a uma determinada
fase de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. O
conjunto dessas relações de produção
forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual
se levanta a superestrutura jurídica
e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência
social. O modo de produção da vida
material condiciona o processo da
vida social, política e espiritual
em geral. Não é a consciência do
homem que determina o seu ser, mas
pelo contrário, o seu ser social é
que determina a sua consciência. Ao
chegar a uma determinada fase de
desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade se
chocam com as relações de produção
existentes, ou, o que não é senão a
sua expressão jurídica, com as
relações de propriedade dentro das
quais se desenvolveram até ali. De
formas de desenvolvimento das forças
produtivas, estas relações se
convertem em obstáculos a elas. E se
abre, assim, uma época de revolução
social. Ao mudar a base econômica,
revoluciona-se, mais ou menos
rapidamente, toda a imensa
superestrutura erigida sobre ela.
Quando se estudam essas revoluções,
é preciso distinguir sempre entre as
mudanças materiais ocorridas nas
condições econômicas de produção, e
que podem ser apreciadas com a
exatidão própria das ciências
naturais, e as formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas ou
filosóficas, numa palavra, as formas
ideológicas em que os homens
adquirem consciência desse conflito
e lutam para resolvê-lo. E do mesmo
modo que não podemos julgar um
indivíduo pelo que ele pensa de si
mesmo, não podemos tampouco julgar
estas épocas de revolução pela sua
consciência, mas, pelo contrário, é
necessário explicar esta consciência
pelas contradições da vida material,
pelo conflito existente entre as
forças produtivas sociais e as
relações de produção.
Respondendo aos
“críticos” de Marx - que o acusavam
de reducionismo “economicista” -
Engels nos deixou diversas cartas,
escritas no final do século passado,
explicitando a concepção
materialista e dialética de ambos e
não deixando quaisquer dúvidas
quanto a uma visão simplista ou
mecanicista da história que
desconheça o papel das esferas
políticas e ideológicas no
desenvolvimento das sociedades
humanas:
Segundo a concepção materialista da
história, o fator que, em última
instância, determina a história
é a produção e a reprodução da vida
real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma
vez sequer, algo mais do que isso.
Se alguém o modifica, afirmando que
o fato econômico é o único
fato determinante, converte aquela
tese numa frase vazia, abstrata e
absurda. A situação econômica é a
base, mas os diferentes fatores da
superestrutura que se levanta sobre
ela - as formas políticas da luta de
classes e seus resultados, as
constituições que, uma vez vencida
uma batalha, a classe triunfante
redige, etc, as formas jurídicas, e
inclusive os reflexos de todas essas
lutas reais no cérebro dos que nelas
participam, as teorias políticas,
jurídicas, filosóficas, as idéias
religiosas e o desenvolvimento
ulterior que as leva a converter-se
em um sistema de dogmas - também
exercem sua influência sobre o curso
das lutas históricas e, em muitos
casos, determinam sua forma,
como fator predominante. Trata-se de
um jogo recíproco de ações e reações
entre todos esses fatores, no qual,
através de uma infinita multidão de
acasos (isto é, de coisas e
acontecimentos cuja conexão interna
é tão remota ou tão difícil de
demonstrar que podemos considerá-la
inexistente ou subestimá-la), acaba
sempre por impor-se, como
necessidade, o movimento econômico.
Em outra carta, desta
vez a Schmidt, Engels, desenvolve de
forma clara, a visão que ambos
tinham da relação dialética entre a
base econômica e as superestruturas
políticas e ideológicas:
É um jogo de ações e reações de duas
forças desiguais: de um lado o
movimento econômico e, de outro
lado, o novo Poder Político que
aspira ao máximo de independência
possível e que, uma vez instaurado,
dispõe também de movimento próprio.
O movimento econômico impõe-se,
sempre, de maneira geral; mas
encontra-se sujeito às repercussões
do movimento político criado por ele
mesmo e dotado de relativa
independência: o movimento do Poder
estatal, de uma parte, e, de outra
parte, o movimento da oposição,
criada simultaneamente com ele. (…)
na luta entre o governo e a oposição
reflete-se a luta entre as classes
(…); mas também aqui esse reflexo
toma uma forma invertida, faz-se
indiretamente, já não como uma luta
de classes e sim como uma luta em
torno de princípios políticos. (…)
Se o Poder político é economicamente
impotente, por que, então, lutamos
pela ditadura política do
proletariado? A autoridade (isso é,
o Poder do Estado) é também uma
potência econômica!
Partindo da concepção
materialista e dialética da
história, trataremos de precisar,
agora, os conceitos de Estado,
Partido e Classe Operária,
que utilizaremos nesse trabalho.
Ao
contrário da visão liberal burguesa
- para quem o Estado surge da
necessidade do “bem comum”,
independente da existência das
classes, como representante legítimo
dos interesses do conjunto da
sociedade - partimos do entendimento
que o Estado só surge com a divisão
da sociedade em classes e expressa
interesses de classe:
O Estado não é, pois, de modo algum,
um poder que se impôs à sociedade de
fora para dentro; tampouco é “a
realidade da idéia moral”, nem a
“imagem e a realidade da razão”,
como afirma Hegel. É antes um
produto da sociedade, quando esta
chega a um determinado grau de
desenvolvimento; é a confissão de
que essa sociedade se enredou numa
irremediável contradição com ela
própria e está dividida por
antagonismos irreconciliáveis que
não consegue conjurar. Mas para que
esses antagonismos, essas classes
com interesses econômicos colidentes
não se devorem e não consumam a
sociedade numa luta estéril, faz-se
necessário um poder colocado
aparentemente por cima da sociedade,
chamado a amortecer o choque e a
mantê-lo dentro dos limites da
“ordem”. Esse poder, nascido da
sociedade, mas posto acima dela se
distanciando cada vez mais, é o
Estado.
Da mesma forma, o
materialismo-histórico entende que
os partidos políticos não são meros
agrupamentos de indivíduos, “com um
programa político comum”, mas -
tenham ou não consciência disso -
representam interesses de classe
(podendo, em alguns casos, expressar
os interesses de mais de uma classe
ou, mesmo, de setores de uma
classe).
Analisando a questão do
“partido da classe operária”, Marx e
Engels - apesar de não terem
desenvolvido uma teoria exaustiva
sobre o assunto - deixaram
importantes formulações. A primeira
delas, diz respeito à distinção
entre “classe em si” (situação
objetiva, na produção) e “classe
para si” (situação subjetiva):
A
grande indústria concentra, em um
mesmo lugar, uma massa de pessoas
que não se conhecem entre si. A
concorrência divide seus interesses.
Mas a defesa do salário, esse
interesse comum a todas elas perante
seu patrão, os une em uma mesma
idéia comum de resistência: a
coalizão. (…) à medida que, por
sua vez, os capitalistas se associam
movidos pela idéia da repressão, as
coalizões, inicialmente isoladas,
formam grupos, e a defesa pelos
operários de suas associações,
diante do capital sempre unido,
acaba sendo para eles mais
necessária que a defesa do salário.
(…) Ao chegar a esse ponto, a
coalizão toma caráter político. As
condições econômicas transformaram
primeiro a massa da população do
país em trabalhadores. O domínio do
capital criou para essa massa uma
situação comum, interesses comuns.
Assim, pois, essa massa já é uma
classe relativamente ao capital, mas
ainda não é uma classe para si.
Na luta, da qual não assinalamos
mais que algumas fases, essa massa
se une, constituindo-se uma
classe em si.
Os interesses que defende
convertem-se em interesses de
classe. Mas a luta de classe contra
classe é uma luta política.
[negritado meu]
Portanto, para Marx há
que distinguir entre a existência de
uma classe “em sí” -
determinada pela posição que ela
ocupa na produção, independente da
autoconsciência que ela tenha disso
- e a sua transformação em uma
classe “para si” - quando dá
o salto da luta meramente econômica
para a luta política, tomando
consciência dos seus interesses de
classe. Mas, para isso, é preciso
que a classe operária forme o seu
Partido político:
Em sua luta contra o poder coletivo
das classes possuidoras, o
proletariado só pode atuar como
classe constituindo-se em um partido
político distinto, em oposição a
todos os velhos partidos
constituídos pelas classes
possuidoras. Essa constituição do
proletariado em partido político é
indispensável para assegurar o
triunfo da revolução social e de seu
objetivo supremo: a abolição das
classes. (…) Tendo em vista que os
senhores da terra e do capital
sempre utilizam seus privilégios
políticos para defender e perpetuar
seu monopólio econômico e para
escravizar o trabalho, a conquista
do poder político torna-se a tarefa
primordial do proletariado.
Sem idealizar a classe
operária, Marx tem consciência de
que no início serão inevitáveis os
erros e as deficiências do seu
partido, mas que o tempo e o melhor
conhecimento da realidade permitirão
corrigi-los:
O primeiro grande passo a ser dado
em todos os países que tenham
recentemente entrado em movimento é
a constituição dos operários em
partido político independente, não
importando como, mas bastando
somente que ele seja um partido
operário distinto. (…) Que o
primeiro programa desse partido seja
confuso e dos mais incompletos, isto
é um inconveniente inevitável mas,
no entanto, passageiro. As massas
devem ter tempo e oportunidade de se
desenvolver, e esta oportunidade
elas terão no momento em que
possuírem um movimento próprio, onde
serão impulsionadas pelos seus
próprios erros, tornando-se sábias
às suas próprias custas.
Nesse sentido, Marx e
Engels enfatizam que a classe
operária será a protagonista da sua
própria emancipação, criticando
aqueles que a subestimam e pretendem
tutelá-la:
Quando fundamos a Internacional
lançamos em termos claros seu grito
de guerra: “A emancipação da classe
operária será obra da própria classe
operária.” Não podemos evidentemente
caminhar com pessoas que declaram
aos quatro cantos que os operários
são muito pouco instruídos para
poder emancipar a si mesmos, e que
eles devem ser libertados pelas
cúpulas, pelos filantropos burgueses
e pequeno-burgueses.
Por fim, Marx e Engels
colocam a necessidade da classe
operária romper - através de seu
partido - com a luta meramente
reivindicativa, nos marcos do
capitalismo:
Os comunistas combatem pelos
interesses e objetivos imediatos da
classe operária; mas, ao mesmo
tempo, defendem e representam, no
movimento atual, o futuro do
movimento. (…) Nas diferentes fases
por que passa a luta entre
proletários e burgueses, representam
sempre, e em toda parte, os
interesses do movimento em seu
conjunto. (…) teoricamente têm sobre
o resto do proletariado a vantagem
de uma compreensão nítida das
condições, da marcha e dos fins
gerais do movimento proletário. O
objetivo imediato dos comunistas é
(…): constituição dos proletários em
classe, derrubada da supremacia
burguesa, conquista do poder
político pelo proletariado.
Caberá a Lenin
desenvolver mais amplamente a teoria
do partido operário, compreendido
como a fusão do movimento expontâneo
da classe operária com a teoria do
socialismo científico:
A social-democracia é a fusão do
movimento operário e do socialismo.
O seu papel não é o de servir
passivamente o movimento operário em
cada uma de suas fases, mas o de
representar os interesses do
conjunto do movimento, de lhe
apontar o seu alvo final, os seus
objetivos políticos, de salvaguardar
a sua independência política e
ideológica. Desligado da
social-democracia, o movimento
operário degenera e transforma-se
forçosamente num movimento burguês:
ao sustentar exclusivamente a luta
econômica, a classe operária perde a
sua independência política,
converte-se num apêndice dos outros
partidos (…).
A relação entre o
elemento espontâneo e o elemento
consciente no movimento operário é
uma questão chave da teoria
leninista do Partido:
A história de todos os países
testemunha que a classe operária,
exclusivamente com as suas próprias
forças, só é capaz de desenvolver
uma consciência trade-unionista,
quer dizer, a convicção de que é
necessário agrupar-se em sindicatos,
lutar contra os patrões, exigir do
governo estas ou aquelas leis
necessárias aos operários, etc. Por
seu lado, a doutrina do socialismo
nasceu de teorias filosóficas,
históricas e econômicas elaboradas
por representantes instruídos das
classes possidentes, por
intelectuais. Os próprios fundadores
do socialismo científico moderno,
Marx e Engels, pertenciam, pela sua
situação social, à intelectualidade
burguesa. (…) Fala-se de
espontaneidade. Mas o
desenvolvimento espontâneo do
movimento operário marcha
precisamente para a sua subordinação
à ideologia burguesa
(…).Mas por que razão - perguntará o
leitor - o movimento espontâneo, o
movimento pela linha da menor
resistência, conduz precisamente à
supremacia da ideologia burguesa?
Pela simples razão de que a
ideologia burguesa é muito mais
antiga pela sua origem do que a
ideologia socialista, de que está
mais completamente elaborada e
possui meios de difusão
incomparavelmente mais
numerosos.
A partir dessa
compreensão, Lenin conclui:
A consciência política de classe não
pode ser levada ao operário senão
do exterior, isto é, de fora da
luta econômica, de fora da esfera
das relações entre operários e
patrões. A única esfera em que se
pode obter estes conhecimentos é na
esfera das relações de todas
as classes e camadas com o Estado e
o governo, na esfera das relações de
todas as classes entre si.
(…) Isto mostra (…) que tudo o
que seja inclinar-se perante a
espontaneidade do movimento
operário, tudo o que seja diminuir o
papel do “elemento consciente”, o
papel da social-democracia,
significa - independente da vontade
de quem o faz - fortalecer a
influência da ideologia burguesa
sobre os operários.
Nós somos um partido de classe, e é
por isso que quase toda classe
(e em tempo de guerra, num período
de guerra civil, absolutamente toda
classe) deve agir sob a direção do
nosso partido, deve ter com o nosso
partido a ligação mais estreita
possível. Mas seria (…) “seguidismo”
pensar que sob o capitalismo quase
toda a classe, ou mesmo toda a
classe, estará um dia em condições
de se elevar ao ponto de alcançar o
grau de consciência e de atividade
do seu destacamento de vanguarda, do
seu partido social-democrata. Nunca
nenhum social-democrata de bom senso
duvidou de que sob o capitalismo,
mesmo a organização sindical (…) não
está a altura de englobar quase toda
ou toda a classe operária.
Assim, dentro da
concepção marxista-leninista do
Partido da classe operária, podemos
destacar os seguintes traços
básicos: 1) O Partido possui um
caráter de classe definido,
proletário, ainda que dele possam
participar indivíduos de qualquer
classe, que adotem na prática os
seus pontos de vista; 2) O Partido
tem por objetivo organizar e dirigir
a luta da classe operária para a
conquista do poder político e a
organização da sociedade socialista;
3) O Partido não se confunde com a
toda a classe operária, mas é uma
parte dela, a sua vanguarda
consciente; 4) O Partido é o
destacamento organizado da classe
operária, formado por uma rede de
organizações e não por uma mera soma
de “individualidades”.
Quanto ao conceito de
classe, partiremos a clássica
definição de Lenin:
As classes são grandes grupos de
homens que se diferenciam entre si
pelo lugar que ocupam em um sistema
de produção social historicamente
determinado, pelas relações em que
se encontram com respeito aos meios
de produção (relações que as leis
referendam e formulam em grande
parte), e pelo papel que desempenham
na organização social do trabalho,
e, por conseguinte, pelo modo e a
proporção em que percebem a parte da
riqueza social de que dispõem. As
classes são grupos humanos, um dos
quais pode apropriar-se do trabalho
do outro por ocupar postos
diferentes em um regime determinado
de economia social.
É evidente que esta
definição de classe social
corresponde ao conceito marxista de
classe em si, decorrente das
condições objetivas da sua
existência social.
Embora muitos vejam nas
formulações “heterodoxas” de Edward
Thompson sobre as classes sociais -
em sua conhecida obra A formação
da classe operária inglesa -
um rompimento com o conceito
leninista de classe social (o que
autor não reivindica), parece-nos
que se trata, na verdade, da
tentativa de um maior
desenvolvimento do conceito de
classe para si - já formulado
por Marx em A miséria da
Filosofia, nos anos 1846-47,
universalmente aceito por todos os
marxistas - e de um enfoque
histórico-concreto das classes
(diferente, portanto, de um enfoque
conceitual-abstrato). Afirma
Thompson:
Por
classe, entendo um fenômeno
histórico,
que unifica uma série de
acontecimentos díspares e
aparentemente desconectados, tanto
na matéria-prima da experiência como
na consciência. Ressalto que é um
fenômeno histórico. (…)
algo que ocorre efetivamente (e cuja
ocorrência pode ser demonstrada) nas
relações humanas. Ademais, a
noção de classe traz consigo a noção
de relação histórica (…) A
relação precisa estar
encarnada em pessoas e contextos
reais. (…) não podemos ter duas
classes distintas, cada qual como um
ser independente, colocando-as em
seguida em relação recíproca
(…) A classe acontece quando alguns
homens, como resultado de
experiências comuns (herdadas ou
partilhadas), sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre
si, e contra outros homens cujos
interesses diferem (e geralmente se
opõem aos seus). A experiência de
classe é determinada, em grande
medida, pelas relações de produção
em que os homens nasceram - ou
entraram involuntariamente. A
consciência de classe é a forma como
essas experiências são tratadas em
termos culturais: encarnadas em
tradições, sistemas de valores,
idéias e formas institucionais. Se
a experiência de classe aparece
como determinada, o mesmo não ocorre
com a consciência de classe.
Podemos ver uma lógica nas
reações de grupos profissionais
semelhantes que vivem experiências
parecidas, mas não podemos predicar
nenhuma lei. A consciência
de classe surge da mesma forma em
tempos e lugares diferentes, mas
nunca exatamente da mesma forma.
(…) estou convencido que não podemos
entender a classe a menos que a
vejamos como uma formação social e
cultural, surgindo de processos que
só podem ser estudados quando eles
mesmos operam durante um
considerável período de tempo
histórico.
(negritado nosso)
Nesta citação de
Thompson destacamos: 1. O
caráter histórico da sua abordagem
(e, portanto, concreto); 2. A
sua compreensão de que as classes
são um fenômeno objetivo, que
expressam relações sociais
históricas (uma classe só pode ser
definida em relação a outra); 3.
Uma diferenciação entre os conceitos
de experiência de classe e
consciência de classe (análoga a
diferenciação de Marx em relação a
classe em si e classe para
si); 4. A determinação
(não mecânica, evidentemente) da
experiência de classe (classe
em si, poderíamos dizer) pelas
relações de produção; 5. A
relativa autonomia da consciência de
classe (sua transformação em
classe para si), “que surge da
mesma forma em tempos e lugares
diferentes, mas nunca exatamente da
mesma forma”. Isso posto, parece-nos
que a abordagem de Thompson é válida
e enriquece o conceito
marxista-leninista de classe do
ponto de vista histórico-concreto.
Assim, conceituamos a
“classe operária” como o conjunto
dos trabalhadores urbanos ou rurais,
desprovidos dos meios de produção,
que alugam a sua força de trabalho
ao capital, em troca de um salário,
e que produzem mercadorias e
mais-valia.
Portanto, o conceito de “classe
operária” é mais restrito que o
conceito fluído de “classes
trabalhadoras”, pois exclui os
trabalhadores proprietários dos seus
meios de produção (pequenos
proprietários rurais, pequenos
produtores autônomos, profissionais
liberais, artesãos), os assalariados
que não trabalham na cadeia
produtiva (atuando nas esferas da
circulação financeira ou comercial,
na administração, no controle, nos
serviços sociais, nos trabalhos
domésticos), e os assalariados de
remuneração extremamente elevada (em
geral nos níveis gerenciais ou de
trabalho intelectual especializado)
que, na verdade, não criam
mais-valia, mas a extraem sob a
forma de altas remunerações.
O Partido Comunista do
Brasil no Rio Grande do
Sul -1922-1929 |
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