Porto Alegre, sexta-feira, 22 de novembro de 2024
   

Deputado Raul Carrion - PCdoB-RS

2008
A Reforma urbana e a questão da terra
Raul K. M. Carrion* e Elena Graeff**

Ao longo de todo o século XX, milhões de brasileiros foram expulsos do campo pelo latifúndio improdutivo e jogados na periferia das grandes cidades. Aí passaram a viver sem as mínimas condições de habitação, saneamento, saúde e educação e sem perspectivas de um trabalho digno. A população urbana do Brasil – que nos anos quarenta representava apenas 26% da população total – passou em 2000 a representar 82,5%.

Atualmente, 155 milhões de brasileiros moram nas cidades, convivendo com uma carência habitacional de em torno de 21 milhões de moradias, sendo 8 milhões de déficit quantitativo (falta absoluta de moradias) e 13 milhões de déficit qualitativo (habitações sub-normais, irregularidade fundiária e urbana). Esse processo de “favelização” tem crescido muito mais rapidamente do que o aumento da população urbana. Assim, nos anos 80, o crescimento da população favelada foi o triplo do crescimento da população urbana e na década de 90 foi o dobro. Nas 9 maiores regiões metropolitanas, a periferia cresceu 30% nos anos 90, contra apenas 5% em suas áreas centrais. Hoje, nas grandes cidades brasileiras, a população das favelas representa de 20 % a 30% da população total.

Se relacionarmos a carência absoluta de 8 milhões de moradias com a renda das famílias, constatamos que 90,3% ganham até 3 salários mínimos e 96,3% até 5 salários mínimos. Dessas famílias, 95,2% estão nas regiões metropolitanas. Ao mesmo tempo, temos 6 milhões de imóveis vazios, o que nos indica que esse enorme déficit habitacional decorre da falta de poder aquisitivo da maioria da população, fruto da perversa concentração de renda existente em nosso país.

De 1940 a 1980, apesar do PIB ter crescido ao ritmo de mais de 7% ao ano, manteve-se a concentração de riqueza herdada de nossa formação escravista, baseada na grande propriedade da terra. As “décadas perdidas” de 80 e 90 aumentaram ainda mais a exclusão social e essa absurda concentração de renda. Hoje, os 10% mais ricos são donos de mais de 75% de toda a riqueza nacional, enquanto os 90% mais pobres dispõem apenas de 25% . Da mesma forma, caiu a participação dos trabalhadores na renda nacional de 55,5% (em 1959) para 39,1% (em 2005). Em um Brasil, que possui 60 milhões de famílias, 45% da renda e da riqueza nacionais são usufruídas por apenas 5 mil famílias. Dessas, 80% estão em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte.

Assim como o latifúndio impera no campo – onde menos de 2% dos proprietários são donos de mais de 50% das terras cultiváveis – nas cidades um punhado de especuladores monopoliza as terras urbanas edificáveis. São “vazios urbanos” (1/3 das áreas edificáveis das cidades brasileiras), mantidos sem uso, à espera de valorização pelos investimentos públicos (água, luz, esgotos, pavimentação, áreas de lazer, equipamentos públicos em geral) pagos pelo conjunto da população. Investimentos que – junto com as inversões privadas em habitação, comércio e serviços – fazem com que um hectare de solo urbano chegue a valer até dez milhões de reais nas áreas nobres de nossas grandes cidades, contra cerca de quatro mil reais por hectare em áreas rurais agriculturáveis.
A super-valorização do solo urbano

Essa situação criou em nosso país um mercado imobiliário altamente monopolizado, onde as “mais-valias” decorrentes dos investimentos públicos e de inversões do conjunto da sociedade têm sido apropriadas por um punhado de especuladores urbanos. O resultado é o enorme encarecimento da terra urbana, onerando a indústria da construção civil (para quem a terra é um insumo), dificultando ao poder público a aquisição de áreas para a produção de habitações de interesse social e tornando inacessível aos trabalhadores a aquisição de lotes para a construção de suas moradias.

Em decorrência dessa enorme monopolização, o valor médio do solo urbano triplicou em apenas duas décadas. Na capital paulista, por exemplo, o preço dos terrenos – que nos anos 70 representava 10% a 15% do custo da habitação – no final dos anos 90 passou a representar 30 % a 40% desse custo. No Brasil, entre 1959 e 1990 o preço dos lotes urbanos aumentou 8 vezes mais do que o salário mínimo. Por isso, a disputa pela terra tornou-se o centro dos conflitos sociais urbanos, paradoxalmente em um país continental, que dispõe de mais de 4,5 hectares por habitante.

O mercado imobiliário privado só consegue produzir habitação para famílias com renda superior a dez salários mínimos (18% da população total), onde o déficit é de apenas 0,8%, não tendo condições sequer de atender a maioria da “classe média”. Não tem, pois, a menor possibilidade de suprir a demanda de moradias das famílias com renda de até cinco salários mínimos.

Essa terrível e injusta realidade urbana reproduz a lógica da sociedade capitalista e do chamado “livre mercado”. Uma lógica excludente e concentradora de renda, que desmente o hipócrita discurso liberal ou neoliberal de que as forças do mercado são capazes de levar a uma sociedade equilibrada e justa. Ao contrário, o mercado capitalista nasce, ele mesmo, da desigualdade entre os que produzem e os que se apropriam, e reproduz de forma ampliada essa desigualdade.

A única alternativa que tem sobrado para as camadas empobrecidas da população é a ocupação de áreas ociosas – terras privadas, que não interessam ao mercado (de preservação ou de risco) ou terras públicas. Por tudo isso, é necessária a intervenção do Poder Público para regular o mercado fundiário e imobiliário, destinar recursos subsidiados para os segmentos mais empobrecidos da população e exigir o cumprimento da função social da propriedade do solo urbano.

Deve-se salientar, ainda, que os vultosos investimentos do PAC em infra-estrutura social (moradia e saneamento básico), gerando uma virtuosa “explosão” imobiliária, agravaram ainda mais o problema, ao encarecer enormemente o solo urbano, que passou a ser avidamente disputado pelas empresas construtoras, deixando cada vez menos áreas disponíveis para habitação popular.

A captação das “mais-valias” fundiárias e o enfrentamento dos “vazios urbanos”
Para enfrentar essa situação, impõe-se a utilização de mecanismos que recuperem as “mais-valias” fundiárias em benefício do conjunto da população e garantam espaços nas cidades para a Habitação de Interesse Social (HIS).

O reconhecimento pela Constituição de 1988 da função social do solo urbano deu uma base sólida para a conquista do “direito à cidade para todos”, meta central da Reforma Urbana. O Estatuto da Cidade (LF10.257/01), ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição, forneceu instrumentos para políticas públicas urbanas que democratizem as cidades brasileiras.

Para a recuperação das “mais-valias” fundiárias – que alguns autores preferem definir como “gestão social da valorização da terra”   – o Estatuto da Cidade (EC) dispõe em suas Diretrizes Gerais a “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização” (art. 2º, inciso IX) e a “recuperação dos investimentos do poder público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos” (art. 2º, inciso XI). E, ao tratar dos “instrumentos gerais”, cita a “contribuição de melhoria“ (art. 4º, inciso IV, alínea b). Ressalte-se, porém, que tanto essas Diretrizes Gerais quanto a “contribuição de melhoria” não são auto-aplicáveis, necessitando de legislação específica.

Para garantir espaços para os “pobres” morarem e combater os “vazios urbanos” especulativos, o EC, ao regulamentar o § 4º do art. 182 da Constituição, dispõe sobre a punição da “retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização” (art. 2º, inciso VI, alínea e), através do “parcelamento, edificação ou utilização compulsórios” (art.5º e 6º), “IPTU progressivo no tempo” (art.7º) e “desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública” (art.8º). Mas, a utilização desses instrumentos está condicionada à existência de Planos Diretores e à indicação em “lei municipal específica” (art. 5º) das áreas sujeitas à sua aplicação.

Assim como os Planos Diretores definem áreas para habitação, uso industrial, serviços ou mistas, precisam definir áreas para Habitação de Interesse Social, através da “instituição de zonas especiais de interesse social” (art. 4º, inciso V, alínea f) ou similares.
Igualmente, encontra-se no Congresso Nacional, pronto para ser votado, o PL3057/00 – Lei de Responsabilidade Territorial Urbana – que altera a Lei do Parcelamento do Solo Urbano (LF6766/79), sem que até agora tenha sido incluída a proposta de que em todo novo parcelamento do solo urbano seja destinado um percentual mínimo de 10 a 15% para a produção de HIS, como já ocorre em vários países.

É imprescindível uma grande mobilização para que conquistemos esse importante avanço no PL3057/00. Também é preciso garantir preferência no acesso aos recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) aos municípios que tenham em seus planos diretores previsão áreas de habitação de interesse social (Zoneamento de Interesse Social), que exijam um percentual de terras para HIS nos novos parcelamentos e utilizem os instrumentos de combate aos “vazios urbanos” previstos no § 4º do art. 182 da Constituição.

Infelizmente, apesar de todos os instrumentos previstos na nossa Constituição e no Estatuto da Cidade, pouco temos avançado. Os enormes e poderosos interesses dos donos de terras até agora têm prevalecido sobre as conquistas legais. Fica cada vez mais claro que essa é uma questão eminentemente política, cuja solução depende da mais ampla mobilização daqueles que são os maiores interessados – os milhões de excluídos do acesso às Cidades, lançados em suas periferias em condições sub-humanas. Sem dúvida, a questão central da Reforma Urbana continua sendo a TERRA!

* Raul Carrion é Deputado Estadual do PCdoB no RS e representante da UNALE no Comitê Técnico de Planejamento e Gestão do Solo Urbano do CONCIDADES.
** Elena Graeff é arquiteta e assessora da bancada do PCdoB na Câmara Municipal de Porto Alegre.

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