Porto Alegre, domingo, 22 de dezembro de 2024
   

Deputado Raul Carrion - PCdoB-RS

Século XXI, Barbárie ou solidariedade: alternativas ao neoliberalismo

APRESENTAÇÃO

Este livro, que reúne 23 textos escritos por estudiosos do Brasil, da América Latina, da Ásia e da Europa, teve origem no II Seminário Internacional “Século XXI: Barbárie ou Solidariedade”, ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em julho de 1998.

Dando continuidade ao primeiro seminário internacional, realizado em 1997 - que versou sobre a temática da globalização, do neoliberalismo e das privatizações -, o segundo seminário internacional esteve centrado na discussão das grandes linhas de um projeto alternativo ao neoliberalismo e, em particular, de um projeto nacional e democrático para o Brasil. Para isso, partiu-se do estudo da realidade brasileira e da experiência daqueles países que hoje trilham caminhos diferentes do modelo neoliberal hegemónico. Foram examinadas novas formas de participação popular, capazes de sustentar um projeto alternativo, assim como os caminhos da resistência e da luta contra o cerco neoliberal na América Latina e no mundo. O exame da atual crise económica e social do capitalismo globalizado - com suas sequelas de recessão, desemprego, precarização social, falência dos países economicamente mais débeis, etc. - também foi outro importante aspecto do debate.

O segundo seminário internacional, assim como o primeiro, foi montado e sustentado, financeira e materialmente, por um conjunto de quarenta e três entidades e instituições representando um amplo espectro social, de trabalhadores urbanos e rurais, trabalhadores sem-terra, cooperativados agrícolas, estudantes, professores, intelectuais, advogados, pequenos empresários, juizes e agentes políticos em geral. Para toma-lo possível, todos os que participaram na sua organização e realização - inclusive os conferencistas - o fizeram gratuitamente.

Nem o fato da Universidade Federal do Rio Grande do Sul encontrar-se em período de aulas - devido à recente conclusão da greve nacional dos professores das universidades federais -, nem o processo eleitoral em curso impediram que mais de seiscentos inscritos lotassem os nove debates realizados durante os cinco dias do seminário. A oportunidade da temática abordada, a qualidade das exposições e das discussões garantiram não só uma frequência inédita, como uma grande repercussão do seminário nos meios de comunicação de massas.

De forma plural, através da palavra de conferencistas do Brasil, Argentina, Chile, Cuba, França e Índia, expressaram-se diferentes visões e distintas correntes de opinião que contestam o pensamento único neoliberal e que questionam o caminho único da globalização subordinada ao capital financeiro internacional. Também os de baixo - que normalmente não têm voz nem vez - fizeram ouvir as suas propostas, lado a lado com os representantes da academia e do mundo político. Todos, sem falsos ufanismos, conscientes das dificuldades do momento e da necessidade de se construir uma alternativa à barbárie presente, tendo, como eixo norteador, a solidariedade entre os trabalhadores.

O seminário constatou o fracasso do modelo neoliberal, seja do ponto de vista económico, seja do ponto de vista social: nos lugares em que foi aplicado, mostrou-se incapaz de proporcionar um crescimento económico contínuo e auto-sustentado, de gerar empregos, de diminuir a pobreza e de propiciar a democratização da sociedade. Ao contrário, foi causador de estagnação económica, de desemprego massivo, de exclusão social, de desindustrialização, de destruição do meio ambiente, de restrição à democracia. Criou milhões de excluídos absolutos, inservíveis como produtores e como consumidores, que devem ser “eliminados” por serem desnecessários. Ampliou o descompasso entre a acumulação no processo produtivo e a valorização “virtual” do capital na esfera financeira, aumentando enormemente a instabilidade da economia mundial.

Vai ficando cada vez mais claro que o neoliberalismo não é um caminho de verdadeiro desenvolvimento para os nossos países, mas um modelo que serve unicamente aos interesses do grande capital financeiro internacional. A atual crise do capitalismo - que mais do que financeira e asiática é económica e mundial - veio a desmascarar a falácia da regulação da economia, pelo “livre mercado” e das “excelências” da globalização neoliberal, e mostrou a extrema vulnerabilidade dos países que aceitaram a imposição desse modelo catastrófico de completa desregulamentação económica e social, de apologia da "competitividade" e de abertura total das fronteiras nacionais ao grande capital internacional.

A vitoriosa greve dos trabalhadores franceses contra a reforma da Previdência no final de 1995; as derrotas eleitorais dos governos neoliberais da Inglaterra, da França, do México, da Argentina e da Alemanha; a profunda crise dos países asiáticos, especialmente dos que haviam baseado a sua industrialização em uma produção voltada para as exportações; a falência da Rússia neoliberal de Yeltsin; a persistente crise das bolsas de todo o mundo, são indícios claros da deterioração do neoliberalismo em nível planetário. Não por acaso, em seus próprios redutos, levantam-se inúmeras vozes exigindo a criação de mecanismos de controle e regulação da circulação de capitais, e o retomo do Estado a algumas das suas funções sociais e económicas.

No limiar do século 21, quando até mesmo no campo do conhecimento impõe-se o trabalho coletivo, a colaboração interdisciplinar e a troca de ideias, ressalta a irracionalidade e a desfuncionalidade do modelo neoliberal que faz a apologia do egoísmo, do individualismo, da competição de todos contra todos. Toma-se evidente o seu anacronismo histórico e a sua inviabilidade a médio prazo.

Tudo isso leva a que também, no plano da luta de ideias, o neoliberalismo - até então soberano - comece a perder terreno, ao mesmo tempo em que amadurecem as condições objetivas para o surgimento de uma alternativa que se lhe contraponha. Só que, do ponto de vista concreto, essa alternativa ainda precisa ser construída, programática e socialmente. A conseqüência é a frustração de muitas das “vitórias” sobre o neoliberalismo, as quais - ao não romperem com a lógica do seu modelo - acabam se contentando em “reformá-lo” na ilusão, quem sabe, de conseguirem criar um “neoliberalismo com face humana”.

É somente a partir da compreensão da necessidade dessa ruptura radical com a lógica do projeto neoliberal que podem ser definidos os grandes eixos de uma proposta alternativa para o nosso país. A primeira questão fundamental é a construção de uma nova hegemonia na sociedade e no Estado - retirando-o do domínio do capital financeiro - sem o que toda e qualquer mudança no atual modelo estará fadada ao fracasso. Nesse sentido, a efetiva democratização do País, o desenvolvimento de formas mais avançadas de participação popular e a implementação do controle social sobre os meios de comunicação de massas tomam-se essenciais. A segunda questão-chave é a retomada de um processo de desenvolvimento económico, que dê prioridade ao setor produtivo e ao nosso imenso mercado interno, rompendo com o fetichismo da “competitividade” e da produção voltada para o mercado externo. Este deverá cumprir um papel meramente complementar. Esse modelo alternativo exige a ampliação e o fortalecimento do mercado interno, seja pela realização da Reforma Agrária, seja pela melhoria das condições de vida e de renda do conjunto dos trabalhadores. Esse desenvolvimento económico deverá basear-se, prioritariamente, na poupança interna e só f secundariamente, na poupança externa. Da mesma forma, é necessária uma política tecnológica que parta das especificidades do País, que leve em conta nossos imensos recursos naturais, nosso enorme potencial energético renovável e “limpo”, nossa incomparável biodiversidade. Um novo modelo de sociedade que não encare educação, saúde, habitação, salários dignos para o nosso povo como meros “custos de produção”, mas como o próprio objetivo do processo produtivo.

No mundo globalizado dos dias de hoje, hegemonizado pelo capital financeiro internacional, são poucos os países que podem sustentar um projeto alternativo desses. O Brasil - por suas dimensões continentais, por sua considerável população, pelos níveis alcançados de diversificação industrial e de desenvolvimento tecnológico - preenche essas condições. Mas precisa fazer valer esse seu potencial, desenvolvendo uma forte articulação internacional com outros países em situação similar e com interesses estratégicos semelhantes. Impõe-se, assim, a busca de uma relação privilegiada - nos campos comercial, tecnológico, produtivo e diplomático - com países como a China, a Índia, a África do Sul e com a América Latina em geral.

Sem maiores pretensões, este livro deseja dar uma contribuição, mesmo que pequena, para o avanço dessa discussão e para a construção de uma alternativa social e programática ao neoliberalismo em esgotamento. Alternativa que amadurece nos corações e nas mentes de milhões de homens e de mulheres que não aceitam a barbárie neoliberal e lutam para que o século 21 assista ao advento de um mundo de paz, de progresso e de solidariedade, onde o  homem deixe de ser o lobo do homem.

RAULK.M.CARRION Historiador Em nome das entidades promotoras do II Seminário Internacional Século XXI: Barbárie ou Solidariedade
 

Século XXI, Barbárie ou solidariedade: alternativas ao neoliberalismo. Organizado por: Paulo Fagundes Vizentini e Raul Carrion. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1998. 301p. 

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Introdução

Finalmente, nos últimos anos, emergiram, em diversos países, focos de resistência consistentes ao neoliberalismo, com a manutenção de certos projetos nacionais com perfil alternativo a este sistema, como na Ásia. Desde 1997, a este quadro somou-se o rápido alastramento e aprofundamento da crise financeira global, que ameaça converter-se numa nova depressão planetária, tal como a dos anos 30. Encontrar alternativas ao neoliberalismo para o novo século que se avizinha, tornou-se uma necessidade premente. Contudo, o que parece ser uma conclusão lógica esbarra em inúmeras dificuldades. Após vinte anos de derrotas e retrocessos, a esquerda vê na situação atual uma possibilidade de recuperar espaços. Entretanto, aos visíveis desgastes do projeto neoliberal, não tem correspondido um equivalente processo qualitativo de fortalecimento das forças progressistas. Além disso, estas não têm percebido claramente a diversidade, e mesmo o antagonismo, das forças que fazem oposição ao neoliberalismo.

Esta problemática norteou os participantes do seminário Século XXI: barbárie ou solidariedade, que teve como resultado diferentes perspectivas para a formação de uma alternativa ao neoliberalismo. Neste sentido, a discussão reproduziu academicamente a divisão de paradigmas que têm orientado a ação política contemporânea dos opositores do neoliberalismo:

a ênfase na resistência ou na construção de alternativas. A primeira pressupõe, otimistamente, que a evidência das crescentes resistências acabará produzindo, per se, a superação do neoliberalismo. A segunda, mais cautelosa, privilegia a questão do virtual esgotamento do modelo e as perspectivas que se abrem para a ofensiva política que poderá resultar, ou não, das atuais resistências, tomadas como ponto de partida. No primeiro caso, há uma clara ênfase na defesa de conquistas e/ou na restauração do status quo ante, enquanto, no segundo, existe certa consciência de determinadas alterações estruturais irreversíveis, a partir da qual a luta política deve ser reorientada.

Neste contexto, cabe perguntar se a restauração do mundo anterior à “tempestade” é possível ou, mesmo, desejável? Ou a tempestade neoliberal estaria representando, ao lado das fantasias de reconstituição de um capitalismo em estado “puro”, as dores do parto do nascimento de uma nova era, que precisa ser compreendida, dominada e moldada? Os menos aptos a responder tais questões são aqueles que, como a nobreza emigrada da Revolução Francesa, “tudo viveram e sofreram, mas nada aprenderam”. A velocidade e o caráter insólito das transformações em curso no mundo têm gerado perplexidades, que produzem apatia, mimetismo ou a fixação num passado que, se não era bom, ao menos era compreensível. Assim, os herdeiros do pensamento racionalista precisam analisar as transformações em curso tal como Maquiavel, ou seja, como elas são, e não como gostaríamos que fossem. Apenas desta forma poderá ser construída uma alternativa progressista ao neoliberalismo, senão outras alternativas conservadoras poderão emergir, como se afigura no discurso obscurantista de certos adversários deste projeto.

Contribuindo para tal fim, este livro apresenta uma série de artigos sobre as alternativas que se abrem ao neoliberalismo no plano mundial e nacional. Na primeira parte, são abordados os aspectos internacionais do problema, e sua primeira unidade analisa a crise social e financeira do capitalismo globalizado no plano mundial, passando em seguida à discussão do modelo de desenvolvimento asiático como alternativa ao neoliberalismo, atualmente sob pressão dos capitais especulativos. O caso da Europa é analisado sob o prisma da resistência social e internacional, e o da América Latina sob a perspectiva das distintas formas de luta contra o modelo neoliberal, que começam a emergir no continente.

Na segunda parte, discutem-se as alternativas para a consecução de um projeto social e nacional alternativo no Brasil. Analisam-se, inicialmente, os problemas ligados às dívidas interna e externa, bem como formas de inserção internacional do País. Na continuidade, é enfocada a política industrial e tecnológica necessária para a retomada do desenvolvimento nacional. Da mesma forma, o item seguinte aborda a política agrária e agrícola para a construção de uma estratégia alternativa ao modelo vigente. A outra unidade resgata a temática do papel do Estado e da participação popular como elementos indispensáveis para qualquer reação social e nacional, capaz de articular uma alternativa viável ao neoliberalismo. Finalmente, algumas personalidades políticas da oposição analisam elementos constitutivos de um projeto nacional e popular para o Brasil nesta virada de século.

Depois de quase duas décadas de vigência do neoliberalismo, e de sua apresentação como panaceia universal, finalmente admiti-se o advento da crise que era subjacente a este modelo, bem como o caráter estrutural da mesma. Em 1991, escrevi, juntamente com meu colega Luís Dario Ribeiro, que “a propalada Nova Ordem Internacional não representa o fim da História, e o que vem sendo mostrado como modelo acabado ou fenómeno tendencial é absolutamente transitório, já que das contradições internacionais e internas surgem constantemente novos elementos que põem em xeque essa situação. A crise atual representa o esgotamento do modelo de civilização originado na grande revolução capitalista do século XVIII-XIX. Sem dúvida, encontramo-nos próximos de grandes acontecimentos de largo alcance histórico, podendo-se comparar a conjuntura atual com a que antecedeu a Revolução Francesa. Desta dimensão macro-histórica dependerá o perfil da futura ordem internacional. Hoje, lutas políticas adquirem novas formas que não estão bem claras, e manifestam-se tendências ainda em gestação, com possibilidades progressistas ou regressivas, dependendo da clareza estratégica e da capacidade de arregimentar forças para responder a esta grande crise, empolgando a subjetividade histórica”.1

Neste contexto, a crise deflagrada, a partir das recentes quedas das bolsas de valores, sinaliza o início de um período de turbulência, em que é preciso pensar as alternativas ao neoliberalismo numa perspectiva mais ousada que a simples "resistência". Assim, o próprio título do seminário apresenta-se ambíguo: a solidariedade pode auxiliar na mobilização social, mas é insuficiente como estratégia política; por outro lado, sendo o Terceiro Mundo considerado pelo Primeiro como a terra dos "bárbaros", não seria um certo tipo de barbárie a alternativa ao neoliberalismo? Politicamente, do atual sistema não virá uma transferência de recursos para o Sul, cujas condições de vida continuam a degradar-se. Portanto, faz-se urgente pensar alternativas desde a periferia, na medida em que o neoliberalismo constitui, inclusive, um programa de ação destinado a transformar o mundo de forma que as atuais potências dominantes conservem sua hegemonia.

Hoje, quando inclusos defensores do neoliberalismo começam a reclamar intervenção do Estado (sempre bem-vinda em tempos de crise...), protecionismo, regulamentação do capital especulativo e controle dos mercados, é necessário evitar que tal discurso seja hegemonizado pelos próprios adversários de um projeto alternativo ao neoliberalismo, e que seja usado, como em outras oportunidades, como camuflagem ideológica. Assim, academicamente, é preciso buscar uma compreensão da crise atualmente em curso que ultrapasse a costumeira resposta ao discurso teórico oficioso. Politicamente, uma alternativa ao neoliberalismo implica menos resistir e reagir e mais desencadear algum tipo de iniciativa estratégica, pois o atual sistema e sua crise estão também criando oportunidades para a sua superação, porque o terremoto neoliberal desgastou as estruturas de dominação, particularmente na periferia. Os fatores objetivos para a superação do neoliberalismo estão dados, mas os subjetivos, indispensáveis para a construção de uma alternativa, ainda estão por ser desenvolvidos.

' VIZENTINI, Paulo (Org.). A grande crise: a nova (des)ordem internacional dos anos 80 aos 90. Petrópolis: Vozes, 1992, p.235. 

PAULO G. FAGUNDES VIZENTINI
 


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