APRESENTAÇÃO
Este livro, que reúne 23
textos escritos por estudiosos do
Brasil, da América Latina, da Ásia e da
Europa, teve origem no II Seminário
Internacional “Século XXI: Barbárie ou
Solidariedade”, ocorrido na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, em julho
de 1998.
Dando continuidade ao
primeiro seminário internacional,
realizado em 1997 - que versou sobre a
temática da globalização, do
neoliberalismo e das privatizações -, o
segundo seminário internacional esteve
centrado na discussão das grandes linhas
de um projeto alternativo ao
neoliberalismo e, em particular, de um
projeto nacional e democrático para o
Brasil. Para isso, partiu-se do estudo
da realidade brasileira e da experiência
daqueles países que hoje trilham
caminhos diferentes do modelo neoliberal
hegemónico. Foram examinadas novas
formas de participação popular, capazes
de sustentar um projeto alternativo,
assim como os caminhos da resistência e
da luta contra o cerco neoliberal na
América Latina e no mundo. O exame da
atual crise económica e social do
capitalismo globalizado - com suas
sequelas de recessão, desemprego,
precarização social, falência dos países
economicamente mais débeis, etc. -
também foi outro importante aspecto do
debate.
O segundo seminário
internacional, assim como o primeiro,
foi montado e sustentado, financeira e
materialmente, por um conjunto de
quarenta e três entidades e instituições
representando um amplo espectro social,
de trabalhadores urbanos e rurais,
trabalhadores sem-terra, cooperativados
agrícolas, estudantes, professores,
intelectuais, advogados, pequenos
empresários, juizes e agentes políticos
em geral. Para toma-lo possível, todos
os que participaram na sua organização e
realização - inclusive os conferencistas
- o fizeram gratuitamente.
Nem o fato da
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul encontrar-se em período de aulas -
devido à recente conclusão da greve
nacional dos professores das
universidades federais -, nem o processo
eleitoral em curso impediram que mais de
seiscentos inscritos lotassem os nove
debates realizados durante os cinco dias
do seminário. A oportunidade da temática
abordada, a qualidade das exposições e
das discussões garantiram não só uma
frequência inédita, como uma grande
repercussão do seminário nos meios de
comunicação de massas.
De forma plural, através
da palavra de conferencistas do Brasil,
Argentina, Chile, Cuba, França e Índia,
expressaram-se diferentes visões e
distintas correntes de opinião que
contestam o pensamento único
neoliberal e que questionam o caminho
único da globalização subordinada ao
capital financeiro internacional. Também
os de baixo - que normalmente não
têm voz nem vez - fizeram ouvir as suas
propostas, lado a lado com os
representantes da academia e do
mundo político. Todos, sem falsos
ufanismos, conscientes das dificuldades
do momento e da necessidade de se
construir uma alternativa à barbárie
presente, tendo, como eixo norteador, a
solidariedade entre os trabalhadores.
O seminário constatou o
fracasso do modelo neoliberal, seja do
ponto de vista económico, seja do ponto
de vista social: nos lugares em que foi
aplicado, mostrou-se incapaz de
proporcionar um crescimento económico
contínuo e auto-sustentado, de gerar
empregos, de diminuir a pobreza e de
propiciar a democratização da sociedade.
Ao contrário, foi causador de estagnação
económica, de desemprego massivo, de
exclusão social, de desindustrialização,
de destruição do meio ambiente, de
restrição à democracia. Criou milhões de
excluídos absolutos, inservíveis como
produtores e como consumidores, que
devem ser “eliminados” por serem
desnecessários. Ampliou o descompasso
entre a acumulação no processo produtivo
e a valorização “virtual” do capital na
esfera financeira, aumentando
enormemente a instabilidade da economia
mundial.
Vai ficando cada vez
mais claro que o neoliberalismo não é um
caminho de verdadeiro desenvolvimento
para os nossos países, mas um modelo que
serve unicamente aos interesses do
grande capital financeiro internacional.
A atual crise do capitalismo - que mais
do que financeira e asiática é
económica e mundial - veio a desmascarar
a falácia da regulação da economia, pelo
“livre mercado” e das “excelências” da
globalização neoliberal, e mostrou a
extrema vulnerabilidade dos países que
aceitaram a imposição desse modelo
catastrófico de completa
desregulamentação económica e social, de
apologia da "competitividade" e de
abertura total das fronteiras nacionais
ao grande capital internacional.
A vitoriosa greve dos
trabalhadores franceses contra a reforma
da Previdência no final de 1995; as
derrotas eleitorais dos governos
neoliberais da Inglaterra, da França, do
México, da Argentina e da Alemanha; a
profunda crise dos países asiáticos,
especialmente dos que haviam baseado a
sua industrialização em uma produção
voltada para as exportações; a falência
da Rússia neoliberal de Yeltsin; a
persistente crise das bolsas de todo o
mundo, são indícios claros da
deterioração do neoliberalismo em nível
planetário. Não por acaso, em seus
próprios redutos, levantam-se inúmeras
vozes exigindo a criação de mecanismos
de controle e regulação da circulação de
capitais, e o retomo do Estado a algumas
das suas funções sociais e económicas.
No limiar do século 21,
quando até mesmo no campo do
conhecimento impõe-se o trabalho
coletivo, a colaboração interdisciplinar
e a troca de ideias, ressalta a
irracionalidade e a desfuncionalidade do
modelo neoliberal que faz a apologia do
egoísmo, do individualismo, da
competição de todos contra todos.
Toma-se evidente o seu anacronismo
histórico e a sua inviabilidade a médio
prazo.
Tudo isso leva a que
também, no plano da luta de ideias, o
neoliberalismo - até então soberano -
comece a perder terreno, ao mesmo tempo
em que amadurecem as condições objetivas
para o surgimento de uma alternativa que
se lhe contraponha. Só que, do ponto de
vista concreto, essa alternativa ainda
precisa ser construída, programática e
socialmente. A conseqüência é a
frustração de muitas das “vitórias”
sobre o neoliberalismo, as quais - ao
não romperem com a lógica do seu modelo
- acabam se contentando em “reformá-lo”
na ilusão, quem sabe, de conseguirem
criar um “neoliberalismo com face
humana”.
É somente a partir da
compreensão da necessidade dessa ruptura
radical com a lógica do projeto
neoliberal que podem ser definidos os
grandes eixos de uma proposta
alternativa para o nosso país. A
primeira questão fundamental é a
construção de uma nova hegemonia na
sociedade e no Estado - retirando-o do
domínio do capital financeiro - sem o
que toda e qualquer mudança no atual
modelo estará fadada ao fracasso. Nesse
sentido, a efetiva democratização do
País, o desenvolvimento de formas mais
avançadas de participação popular e a
implementação do controle social sobre
os meios de comunicação de massas
tomam-se essenciais. A segunda
questão-chave é a retomada de um
processo de desenvolvimento económico,
que dê prioridade ao setor produtivo e
ao nosso imenso mercado interno,
rompendo com o fetichismo da
“competitividade” e da produção voltada
para o mercado externo. Este deverá
cumprir um papel meramente complementar.
Esse modelo alternativo exige a
ampliação e o fortalecimento do mercado
interno, seja pela realização da Reforma
Agrária, seja pela melhoria das
condições de vida e de renda do conjunto
dos trabalhadores. Esse desenvolvimento
económico deverá basear-se,
prioritariamente, na poupança interna e
só f secundariamente, na poupança
externa. Da mesma forma, é necessária
uma política tecnológica que parta das
especificidades do País, que leve em
conta nossos imensos recursos naturais,
nosso enorme potencial energético
renovável e “limpo”, nossa incomparável
biodiversidade. Um novo modelo de
sociedade que não encare educação,
saúde, habitação, salários dignos para o
nosso povo como meros “custos de
produção”, mas como o próprio objetivo
do processo produtivo.
No mundo globalizado dos
dias de hoje, hegemonizado pelo capital
financeiro internacional, são poucos os
países que podem sustentar um projeto
alternativo desses. O Brasil - por suas
dimensões continentais, por sua
considerável população, pelos níveis
alcançados de diversificação industrial
e de desenvolvimento tecnológico -
preenche essas condições. Mas precisa
fazer valer esse seu potencial,
desenvolvendo uma forte articulação
internacional com outros países em
situação similar e com interesses
estratégicos semelhantes. Impõe-se,
assim, a busca de uma relação
privilegiada - nos campos comercial,
tecnológico, produtivo e diplomático -
com países como a China, a Índia, a
África do Sul e com a América Latina em
geral.
Sem maiores pretensões,
este livro deseja dar uma contribuição,
mesmo que pequena, para o avanço dessa
discussão e para a construção de uma
alternativa social e programática ao
neoliberalismo em esgotamento.
Alternativa que amadurece nos corações e
nas mentes de milhões de homens e de
mulheres que não aceitam a barbárie
neoliberal e lutam para que o século 21
assista ao advento de um mundo de paz,
de progresso e de solidariedade, onde o
homem deixe de ser o lobo do homem.
RAULK.M.CARRION
Historiador Em nome das entidades
promotoras do II Seminário Internacional
Século XXI: Barbárie ou Solidariedade
Século XXI, Barbárie ou
solidariedade: alternativas ao
neoliberalismo. Organizado por: Paulo
Fagundes Vizentini e Raul Carrion. Porto
Alegre: Editora da Universidade / UFRGS,
1998. 301p.
Centro de Debates
Econômicos, Sociais e Políticos
do Rio Grande do Sul –
CEDESP/RS
Rua General Lima e
Silva, 818 – Cidade Baixa
CEP: 90050-100 – Porto
Alegre / RS – Brasil
Editora da Universidade
/ UFRGS
Av. João Pessoa,415
CEP: 90040-000 – Porto
Alegre / RS
Introdução
Finalmente, nos últimos anos, emergiram,
em diversos países, focos de resistência
consistentes ao neoliberalismo, com a
manutenção de certos projetos nacionais
com perfil alternativo a este sistema,
como na Ásia. Desde 1997, a este quadro
somou-se o rápido alastramento e
aprofundamento da crise financeira
global, que ameaça converter-se numa
nova depressão planetária, tal como a
dos anos 30. Encontrar alternativas ao
neoliberalismo para o novo século que se
avizinha, tornou-se uma necessidade
premente. Contudo, o que parece ser uma
conclusão lógica esbarra em inúmeras
dificuldades. Após vinte anos de
derrotas e retrocessos, a esquerda vê na
situação atual uma possibilidade de
recuperar espaços. Entretanto, aos
visíveis desgastes do projeto
neoliberal, não tem correspondido um
equivalente processo qualitativo de
fortalecimento das forças progressistas.
Além disso, estas não têm percebido
claramente a diversidade, e mesmo o
antagonismo, das forças que fazem
oposição ao neoliberalismo.
Esta problemática norteou os
participantes do seminário Século XXI:
barbárie ou solidariedade, que teve como
resultado diferentes perspectivas para a
formação de uma alternativa ao
neoliberalismo. Neste sentido, a
discussão reproduziu academicamente a
divisão de paradigmas que têm orientado
a ação política contemporânea dos
opositores do neoliberalismo:
a
ênfase na resistência ou na
construção de alternativas. A
primeira pressupõe, otimistamente, que a
evidência das crescentes resistências
acabará produzindo, per se, a
superação do neoliberalismo. A segunda,
mais cautelosa, privilegia a questão do
virtual esgotamento do modelo e as
perspectivas que se abrem para a
ofensiva política que poderá resultar,
ou não, das atuais resistências,
tomadas como ponto de partida. No
primeiro caso, há uma clara ênfase na
defesa de conquistas e/ou na restauração
do status quo ante, enquanto, no
segundo, existe certa consciência de
determinadas alterações estruturais
irreversíveis, a partir da qual a luta
política deve ser reorientada.
Neste contexto, cabe perguntar se a
restauração do mundo anterior à
“tempestade” é possível ou, mesmo,
desejável? Ou a tempestade neoliberal
estaria representando, ao lado das
fantasias de reconstituição de um
capitalismo em estado “puro”, as dores
do parto do nascimento de uma nova era,
que precisa ser compreendida, dominada e
moldada? Os menos aptos a responder tais
questões são aqueles que, como a nobreza
emigrada da Revolução Francesa, “tudo
viveram e sofreram, mas nada
aprenderam”. A velocidade e o caráter
insólito das transformações em curso no
mundo têm gerado perplexidades, que
produzem apatia, mimetismo ou a fixação
num passado que, se não era bom, ao
menos era compreensível. Assim, os
herdeiros do pensamento racionalista
precisam analisar as transformações em
curso tal como Maquiavel, ou seja, como
elas são, e não como gostaríamos que
fossem. Apenas desta forma poderá ser
construída uma alternativa progressista
ao neoliberalismo, senão outras
alternativas conservadoras poderão
emergir, como se afigura no discurso
obscurantista de certos adversários
deste projeto.
Contribuindo para tal fim, este livro
apresenta uma série de artigos sobre as
alternativas que se abrem ao
neoliberalismo no plano mundial e
nacional. Na primeira parte, são
abordados os aspectos internacionais do
problema, e sua primeira unidade analisa
a crise social e financeira do
capitalismo globalizado no plano
mundial, passando em seguida à discussão
do modelo de desenvolvimento asiático
como alternativa ao neoliberalismo,
atualmente sob pressão dos capitais
especulativos. O caso da Europa é
analisado sob o prisma da resistência
social e internacional, e o da América
Latina sob a perspectiva das distintas
formas de luta contra o modelo
neoliberal, que começam a emergir no
continente.
Na segunda parte,
discutem-se as alternativas para a
consecução de um projeto social e
nacional alternativo no Brasil.
Analisam-se, inicialmente, os problemas
ligados às dívidas interna e externa,
bem como formas de inserção
internacional do País. Na continuidade,
é enfocada a política industrial e
tecnológica necessária para a retomada
do desenvolvimento nacional. Da mesma
forma, o item seguinte aborda a política
agrária e agrícola para a construção de
uma estratégia alternativa ao modelo
vigente. A outra unidade resgata a
temática do papel do Estado e da
participação popular como elementos
indispensáveis para qualquer reação
social e nacional, capaz de articular
uma alternativa viável ao
neoliberalismo. Finalmente, algumas
personalidades políticas da oposição
analisam elementos constitutivos de um
projeto nacional e popular para o Brasil
nesta virada de século.
Depois de quase duas décadas de vigência
do neoliberalismo, e de sua apresentação
como panaceia universal, finalmente
admiti-se o advento da crise que era
subjacente a este modelo, bem como o
caráter estrutural da mesma. Em 1991,
escrevi, juntamente com meu colega Luís
Dario Ribeiro, que “a propalada Nova
Ordem Internacional não representa o fim
da História, e o que vem sendo mostrado
como modelo acabado ou fenómeno
tendencial é absolutamente transitório,
já que das contradições internacionais e
internas surgem constantemente novos
elementos que põem em xeque essa
situação. A crise atual representa o
esgotamento do modelo de civilização
originado na grande revolução
capitalista do século XVIII-XIX. Sem
dúvida, encontramo-nos próximos de
grandes acontecimentos de largo alcance
histórico, podendo-se comparar a
conjuntura atual com a que antecedeu a
Revolução Francesa. Desta dimensão
macro-histórica dependerá o perfil da
futura ordem internacional. Hoje, lutas
políticas adquirem novas formas que não
estão bem claras, e manifestam-se
tendências ainda em gestação, com
possibilidades progressistas ou
regressivas, dependendo da clareza
estratégica e da capacidade de
arregimentar forças para responder a
esta grande crise, empolgando a
subjetividade histórica”.1
Neste contexto, a crise deflagrada, a
partir das recentes quedas das bolsas de
valores, sinaliza o início de um período
de turbulência, em que é preciso pensar
as alternativas ao neoliberalismo numa
perspectiva mais ousada que a simples
"resistência". Assim, o próprio título
do seminário apresenta-se ambíguo: a
solidariedade pode auxiliar na
mobilização social, mas é insuficiente
como estratégia política; por outro
lado, sendo o Terceiro Mundo considerado
pelo Primeiro como a terra dos
"bárbaros", não seria um certo tipo de
barbárie a alternativa ao
neoliberalismo? Politicamente, do atual
sistema não virá uma transferência de
recursos para o Sul, cujas condições de
vida continuam a degradar-se. Portanto,
faz-se urgente pensar alternativas desde
a periferia, na medida em que o
neoliberalismo constitui, inclusive, um
programa de ação destinado a transformar
o mundo de forma que as atuais potências
dominantes conservem sua hegemonia.
Hoje, quando inclusos
defensores do neoliberalismo começam a
reclamar intervenção do Estado (sempre
bem-vinda em tempos de crise...),
protecionismo, regulamentação do capital
especulativo e controle dos mercados, é
necessário evitar que tal discurso seja
hegemonizado pelos próprios adversários
de um projeto alternativo ao
neoliberalismo, e que seja usado, como
em outras oportunidades, como camuflagem
ideológica. Assim, academicamente, é
preciso buscar uma compreensão da crise
atualmente em curso que ultrapasse a
costumeira resposta ao discurso teórico
oficioso. Politicamente, uma alternativa
ao neoliberalismo implica menos resistir
e reagir e mais desencadear algum tipo
de iniciativa estratégica, pois o atual
sistema e sua crise estão também criando
oportunidades para a sua superação,
porque o terremoto neoliberal desgastou
as estruturas de dominação,
particularmente na periferia. Os fatores
objetivos para a superação do
neoliberalismo estão dados, mas os
subjetivos, indispensáveis para a
construção de uma alternativa, ainda
estão por ser desenvolvidos.
' VIZENTINI, Paulo (Org.). A grande
crise: a nova (des)ordem internacional
dos anos 80 aos 90. Petrópolis:
Vozes, 1992, p.235.
PAULO G. FAGUNDES VIZENTINI