Porto Alegre, quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

   
Heróis, heroínas e mártires de uma longa e árdua jornada

Raul K. M. Carrion | Historiador
17 de outubro de 2025


No seu 16º Congresso, o Partido Comunista do Brasil comemorou 103 anos de luta em defesa da soberania nacional, da democracia, dos direitos dos trabalhadores e pelo socialismo.

     Em sua longa e árdua trajetória – durante a qual o PC do Brasil foi duramente perseguido por mais de 60 anos –, milhares de seus militantes foram presos, torturados, “desaparecidos” e assassinados, inclusive em períodos de “democracia liberal”.

     Foi, porém, durante a ditadura militar – imposta em 1964, com o apoio aberto do imperialismo estadunidense e a adesão da maioria das classes dominantes brasileiras –, que a repressão política se abateu com mais fúria sobre o nosso povo, causando dezenas de milhares de presos e de torturados e centenas de mortos e desaparecidos.

     O PCdoB – ombreando com as demais forças antiditatoriais – teve quase uma centena de vítimas na luta contra a tirania. A luta guerrilheira do Araguaia, dirigida pelos comunistas, destaca-se nesse enfrentamento ao regime militar. Apesar de vencida, foi fundamental na resistência ao regime dos generais e contribuiu para o seu fim.

     A crise do badalado “Milagre Brasileiro”, as lutas operárias, estudantis e populares que se seguiram a ela e as grandes jornadas pelas DIRETAS JÁ acabaram por derrotar a ditadura. Mas, devido à correlação de forças desfavorável, a oposição democrática não conseguiu fazer um acerto de contas cabal com os seus crimes.

     A anistia de 1979, em plena ditadura – foi sem dúvida uma conquista das forças de oposição –, mas acabou sendo transformada em perdão para os agentes da ditadura que cometeram crimes como sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáveres. Os arquivos da ditadura nunca foram abertos, parte do entulho autoritário permanece vigente e a questão dos desaparecidos políticos continua até hoje sem solução.

     A Constituição de 1988 e a Lei de Anistia de 2002 não recepcionaram o perdão aos agentes da ditadura que cometeram crimes de lesa-humanidade, mas até hoje o STF considera que a lei da anistia de 1979 perdoou os agentes da ditadura que cometeram os crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento, lhes garantindo a impunidade. Isso e a falta de memória coletiva sobre os crimes do regime militar geram acontecimentos como o 8 de janeiro de 2023 e alimentam o crescimento de uma ultradireita neofascista. Por isso, esta não é uma “luta do passado”, mas uma “luta do presente”!

     Parte dos avanços democráticos conquistados nos governos pós-ditadura foram revertidos com o golpe de 2016 contra Dilma e com a vitória do “bolsonarismo” em 2018 – com o apoio de significativas parcelas do grande capital, da mídia, do judiciário e das forças armadas. Derrotadas quatro vezes, as classes dominantes brasileiras decidiram impedir, por qualquer meio, a continuidade de governos populares e de esquerda e abriram as portas para a ultradireita bolsonarista.

     No governo Bolsonaro, a Comissão Nacional da Anistia foi desmontada e, faltando apenas 15 dias para a posse de Lula, foi extinta a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, tendo Bolsonaro afirmado, em forma de deboche, que “quem procura osso é cachorro”.

     Quatro anos depois, com grande amplitude e através de uma “Frente Ampla” – defendida desde o primeiro momento pelo PCdoB –, conseguimos derrotar Bolsonaro e os seus aliados. A tentativa de golpe em 8 de janeiro mostrou o caráter neofascista do bolsonarismo e o quanto a impunidade dos crimes da ditadura continua alimentando o golpismo nos dias de hoje.

     Em resposta a essa ofensiva antidemocrática da ultradireita, têm crescido em todo o país as denúncias dos crimes da ditadura; a luta pela punição dos agentes do Estado responsáveis por crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos; e pela criação de Centros de Memória, alguns já concretizados – como o “Memorial da Democracia”, em Recife/PE, e o “Memorial da Resistência”, em SP – ou por criar – como a “Casa da Morte”, em Petrópolis/RJ, a “Casa Azul”, em Marabá/PA, o “Dopinha”, em Porto Alegre/RS, o antigo DOPS, em Belo Horizonte/MG, e tantos outros. São espaços essenciais para dar a conhecer às novas gerações os 21 anos de resistência democrática e a bárbara repressão que se abateu sobre os que enfrentaram a ditadura militar.

     O ano de 2024 também foi pródigo em atividades de “des-comemoração” dos 60 anos do golpe militar e de denúncia dos seus crimes e foi marcado pela retomada – por decisão do Presidente Luiz Inácio LULA da Silva – da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

     A emocionante película “AINDA ESTOU AQUI” – que denuncia a prisão, tortura, desaparecimento e assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva – recebeu em março de 2025 o “Oscar” de melhor película estrangeira, colocando a denúncia dos crimes da ditadura em um novo patamar e levando este debate para amplos setores da sociedade, inclusive internacionalmente. Expressão da sua grande repercussão é o fato que a referida película já obteve mais de 40 prêmios nacionais e internacionais.

     A anistia à ex-Presidenta Dilma Rousseff, em maio de 2025 – que lhe fora negada durante o governo bolsonarista –, foi outra importante vitória do povo brasileiro na sua luta por Memória, Verdade e Justiça. Da mesma forma, a recente condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, três generais, um almirante e um tenente-coronel a pesadas penas de prisão, pelo crime de golpe de Estado, tem um importante significado e aponta para um ajuste de contas – mesmo que tardio – com os golpistas do passado e do presente, superando fortes pressões do imperialismo estadunidense.

     Merece destaque, ainda, a recente visita ao Brasil do “Relator Especial da ONU para a Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não-Repetição”, Bernard Duhaime, que defendeu a revisão da Lei da Anistia de 1979 e declarou: “Enquanto os direitos à verdade, à justiça, à reparação e à memória não forem assegurados a todas as vítimas da ditadura, essa divisão irá persistir e a história pode se repetir.

     A tudo isso se soma a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), pela não entrega aos familiares dos restos mortais dos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, por não ter tornado públicos os arquivos da ditadura sobre a Guerrilha do Araguaia e por não punir os responsáveis por esses crimes de lesa-humanidade. São esperadas, para breve, novas condenações do Brasil na Corte Interamericana de DH, devido aos vários processos que lá tramitam. A CIDH também defende a revisão do atual entendimento do STF sobre a Lei de Anistia de 1979.

     Foi nesse contexto que o Ministro Flávio Dino obteve a aprovação pelo STF da repercussão geral do “Recurso Extraordinário com Agravo”, interposto pelo Ministério Público Federal, sobre a “possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº 6683/79”. Em breve, esse Recurso Extraordinário será pautado no STF.

     Fruto dessa nova realidade, os Embargos à ADPF153 (“Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental”) e a ADPF 320 – que dormitam há mais de dez anos no STF e que questionam a impunidade para os agentes do Estado que cometeram crimes de lesa-humanidade – poderão ser pautadas logo adiante e o seu julgamento poderá alterar a atual interpretação do STF (equivocada) sobre a anistia. Mas, para isso, é necessária uma forte pressão das entidades de Direitos Humanos e da sociedade brasileira.

     Em sintonia com esta realidade e com este momento, o PCdoB – a força política com o maior número de mortos e desaparecidos políticos durante o regime militar, fortalecido com a incorporação do PPL, herdeiro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – criou a sua “COMISSÃO NACIONAL DE MEMÓRIA E JUSTIÇA”, para melhor integrar as inúmeras atividades que a sua militância vem realizando neste terreno. e colocou como uma de suas tarefas prioritárias a elaboração de uma relação dos(as) militantes do PCdoB e do MR-8 mortos(as) e desaparecidos(as) na luta contra a ditadura – no que contou com a inestimável contribuição do Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois.

     Com enorme reverência, homenageamos os nossos mártires e heróis.

     Que a sua dedicação sem limites ao povo brasileiro, à liberdade, à justiça e à fraternidade nos inspire a seguir em frente, sem titubear, na luta por um Brasil soberano, democrático, mais justo e um dia socialista!

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Raul Carrion é Coordenador da Comissão Nacional de Memória e Justiça do PCdoB.