Encontra-se
no Senado, para ser votado, o PLC 30/2015 – originário do PL
4330 do produtor de bolachas e ex-deputado Sandro Mabel – que
foi recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, a “toque de
caixa” e sob o látego de seu obscurantista então presidente,
Eduardo Cunha.
O referido projeto permite a
terceirização do trabalho em todas as atividades laborais de
quaisquer empresas, sejam elas atividades “fim” ou atividades
“meio” – como, vigilância, alimentação e limpeza. Se aprovado,
permitirá que uma empresa deixe de ter empregados próprios e
possa alugar de diferentes empresas “prestadoras de
serviços” os seus trabalhadores, os quais deixarão de ter
qualquer vínculo com a referida empresa – “ilustres
desconhecidos”, como afirmou uma delas em uma reclamatória
trabalhista – e com a sua categoria original. Passarão a fazer
parte de uma difusa e dispersa categoria de “trabalhadores em
serviços”, espalhados nos mais variados setores produtivos, sem
maior unidade de interesses e com mínima capacidade de
mobilização em torno de demandas comuns.
Em conseqüência, os trabalhadores
terceirizados deixarão de ter direito às conquistas obtidas no
decorrer do tempo pelas categorias mais fortes e organizadas –
conquistas essas que acabavam se transformando, paulatinamente,
em direitos do conjunto dos trabalhadores. Para os ingênuos, que
acreditam que regras como “igual salário para igual trabalho”
permitirão que os terceirizados possam exigir o mesmo salário e
benefícios dos não terceirizados, basta lembrar que os “não
terceirizados” estão fadados ao desaparecimento, uma vez
aprovada essa aberração legal, perdendo-se quaisquer referências
salariais ou de benefícios para os futuros terceirizados.
Não é preciso maior esforço para compreender o
enorme retrocesso trabalhista, sindical e civilizacional que
essa legislação acarretará, caso seja aprovada. Hoje, quando o
trabalho terceirizado é permitido apenas nas “atividades meio”,
já constatamos uma enorme quantidade de casos em que as empresas
que alugam mão-de-obra – sem um nome a zelar no mercado –
não cumprem a legislação trabalhista e previdenciária e
“quebram” fraudulentamente, sem deixar bens para cobrir as suas
dívidas com os trabalhadores, deixando-os no mais completo
desamparo.
Mas quais são os argumentos que
os defensores da terceirização sem limites utilizam para
justificar sua ofensiva retrógrada contra a obrigatoriedade da
existência de um contrato entre o trabalhador e a empresa onde
ele exerce a sua atividade laboral?
1º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA DA “MODERNIDADE”
O primeiro argumento é que é necessário
modernizar as relações de trabalho no Brasil. Ou seja, o
aluguel de trabalhadores por terceiros é apresentado como
algo “moderno” e mais avançado que as atuais relações de
trabalho, previstas em lei após séculos de luta dos
trabalhadores de todo o mundo.
Mas, será que esses senhores ignoram que o
“aluguel” de força de trabalho a terceiros era uma prática usual
durante o escravismo brasileiro, já no século XVII? Ou, em sua
ignorância obscurantista, nunca ouviram falar nos “escravos de
ganho” e nos “escravos de aluguel”? Os “escravos de ganho”
trabalhavam para terceiros, transportando cargas e pessoas,
fabricando utensílios, cuidando de um estabelecimento comercial,
e o dinheiro recebido pelo serviço prestado era entregue ao seu
dono. No caso dos “escravos de aluguel”, os seus donos tanto
podiam cobrar diretamente o trabalho realizado por eles, como
podiam entregar os seus cativos a uma agência de aluguel, que
cobrava uma comissão pela sua intermediação. No que difere essa
“terceirização escravista da terceirização proposta?
Para não ficarmos apenas no sistema escravista,
lembremos, ainda, que no Nordeste brasileiro – semi-feudal e
semi-escravista – atuavam os gatos, que aliciavam
trabalhadores, os colocavam em caminhões “paus de arara” e
circulavam entre as fazendas, na época da safra, oferecendo a
sua “carga humana” em troca de uma comissão.
Com certeza, o aluguel de trabalhadores em
troca de um pagamento a quem os alicia nada tem de moderno ou de
avançado. Ao contrário, remete para um passado escravistas ou
servil, representando apenas a precarização das relações de
trabalho. “Modernidade” é carteira do trabalho assinada,
direitos trabalhistas e sindicais reconhecidos e cobertura
previdenciária assegurada.
2º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA DA “ESPECIALIZAÇÃO”
DAS EMPRESAS
O segundo grande argumento dos
”pregadores” da terceirização sem limites é de que a produção
moderna se especializou de tal maneira que cada empresa precisa
trabalhar apenas naquilo em que tem competência, delegando as
demais atividades a outras empresas, que o farão melhor e a um
menor custo.
Esse argumento ainda seria
“discutível” no caso de terceirização de “atividades meio” -
como alimentação, vigilância e limpeza. Nesse caso, tais tarefas
podem não fazer parte da competência ou do objetivo precípuo da
referida empresa. Mesmo nesse caso, ainda cabem questionamentos:
a limpeza em um hospital – sujeito à disseminação de “infecções
hospitalares” – é uma “atividade fim” ou uma “atividade
meio”?...
Porém, no caso da terceirização das “atividades
fim”, o argumento da especialização não se sustenta, pois
trata-se da terceirização de atividades para as quais a empresa
foi criada e supõe-se que seja competente. E devemos rebater de
plano a argumentação falaciosa de que as modernas montadoras
terceirizam – através de empresas sistemistas – a produção de
peças para os seus veículos. Pois, nesse caso, a empresa
sistemista fornece “produtos” à montadora – uma mera relação de
compra e venda de bens –, o que nada tem a ver com o aluguel
de trabalhadores terceirizados.
Mas, ainda cabem muitos outros questionamentos à
falácia da “necessidade de especialização”.
Se a “terceirização” de mão-de-obra é uma
necessidade técnica da produção moderna, é de supor-se que a
empresa que aluga mão-de-obra para terceiros proporcione
trabalhadores melhor preparados tecnicamente. Ora, um
trabalhador mais especializado, necessariamente precisa receber
um melhor salário. Como explicar, então, que, na média, um
trabalhador terceirizado receba um salário 30% menor do que o de
um trabalhador contratado diretamente? E que ainda tenha uma
jornada de trabalho de 3 horas a mais por semana em relação ao
trabalhador não terceirizado?
Por outro lado, um trabalhador especializado é um
patrimônio da empresa que o tem e se esperaria que ela
procurasse retê-lo. Como explicar, então, a alta rotatividade
dos trabalhadores terceirizados – 64% contra 33% dos
trabalhadores contratados diretamente? Isto é, como explicar que
enquanto o trabalhador direto permanece em média 5,8 anos no
emprego, o terceirizado permanece apenas 2,7 anos? Alta
rotatividade que além de causar sérios prejuízos à vida
profissional do trabalhador, repercute sobre as contas do FAT
(Fundo de Amparo ao Trabalhador), na medida em que pressiona
para cima os gastos com o seguro desemprego.
Por fim, se os trabalhadores das empresas
terceirizadas fossem, de fato, tecnicamente melhor preparados em
sua área de atuação – como alegam –, deveriam ser menos
suscetíveis aos acidentes do trabalho. Como explicar, então, que
de cada 10 vítimas em acidentes de trabalho, 8 são
terceirizadas, mesmo sendo apenas 25% do total dos trabalhadores
brasileiros? E que a mesma proporção se verifique entre os
mortos em acidentes de trabalho no Brasil. Ou seja, como
explicar com o argumento da “especialização técnica” que 25% dos
trabalhadores brasileiros – os terceirizados – sejam
responsáveis por 80% dos acidentes e por 80% das mortes em
acidentes de trabalho? Proporcionalmente, 12 vezes mais?
Fica evidente que a terceirização nada tem a ver
com a “especialização” e com a “eficiência” exigidas pela
produção moderna.
3º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA PARA A
“COMPETITIVIDADE” DAS EMPRESAS
O terceiro argumento dos defensores da
terceirização em todas as atividades das empresas é a sua
inevitabilidade no capitalismo dos dias de hoje e a necessidade
do Brasil adotá-la, para que as empresas nacionais possam
competir em pé de igualdade com as demais empresas do mundo.
Em primeiro lugar, é uma falsidade afirmar que a
terceirização sem limites ocorre atualmente na maioria dos
países do mundo. Trata-se, na verdade, de algo em disputa, por
conta de uma grande ofensiva do capitalismo neoliberal contra os
direitos e as conquistas dos trabalhadores, obtidas após de
quase dois séculos de luta. Esse acirrado embate que acontece
entre o capital e o trabalho encontra-se em pleno andamento, com
vitórias e derrotas para ambos os lados. Só para citar dois
exemplos, a terceirização de mão-de-obra nas atividades fim não
é permitida nem na Alemanha, nem na França – dois países
capitalistas avançados –, desmentindo a falácia de que é algo
generalizado e inevitável. E ninguém poderá dizer que devido a
isso os produtos fabricados na Alemanha e na França tenham
perdido competitividade nos mercados mundiais.
Em segundo lugar, se for real a preocupação
desses senhores pela “igualdade de condições” na competição
internacional, por que não iniciar pela equiparação dos salários
dos trabalhadores brasileiros com os salários muito superiores
dos trabalhadores alemães, suecos, norte-americanos ou
japoneses? Ou, por que não reduzir a jornada de trabalho no
Brasil, igualando-a com a jornada de 35 horas semanais dos
trabalhadores franceses? Ou com as jornadas de menos de 40 horas
da Bélgica, Holanda, Áustria, Suécia, Noruega, Finlândia, Nova
Zelândia e tantos outros países capitalistas avançados? É óbvio
que os empresários brasileiros – e seus representantes no
Congresso Nacional – só se preocupam com a “igualdade de
condições” naquilo que os beneficia e prejudica os
trabalhadores.
4º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA PARA A “GERAÇÃO DE
EMPREGOS”
Esse último argumento beira à infantilidade e é
um verdadeiro deboche para com a inteligência alheia. É óbvio
que os empregos terceirizados não são criados pela empresa
dedicada ao aluguel de pessoas. Esses empregos são
demandados pelas empresas tomadoras dos seus serviços. A
terceirização em si não cria um único emprego, salvo a pequena
estrutura administrativa que existe para tornar lucrativo o
aluguel (“comércio”) de seres humanos. Se a terceirização
for extinta no dia de hoje, a única conseqüência em termos de
emprego será a formalização de todos os contratos com os
tomadores de serviços.
Pior ainda, a terceirização diminui o número de
postos de trabalho, pois – se considerarmos que no Brasil os
trabalhadores terceirizados trabalham, em média, três horas a
mais por semana do que os trabalhadores contratados diretamente
– isso significa a eliminação de mais de 850 mil postos de
trabalho.
CONCLUSÃO
Na verdade, a “terceirização” de mão-de-obra –
que avançou na medida em que o modelo neoliberal se tornou
hegemônico – é uma grande ofensiva do capital contra os direitos
e as conquistas dos trabalhadores. Procura debilitar a sua
representação sindical (em uma mesma empresa teremos diferentes
sindicatos), fragmentar os seus interesses (trabalhadores
atuando em diferentes ramos industriais farão parte da mesma
empresa de aluguel de mão-de-obra), reduzir salários (os
pisos profissionais deixarão de valer), ampliar a jornada de
trabalho (como já acontece hoje com os terceirizados) e aumentar
as taxas de lucro do capital.
Além disso, a terceirização tem como meta
externalizar custos e risco – desde doenças laborais, até o
êxito ou fracasso nos negócios –, transferir a regulação estatal
ou sindical à empresa intermediária (em geral desconhecida e sem
um nome a zelar), eximindo-se de qualquer irregularidade que
venha a ocorrer, e desresponsabilizar-se de investimentos na
qualificação da mão-de-obra e na melhoria de suas condições de
trabalho, que passarão a ser da responsabilidade da
sub-contratada.
Trata-se de mais uma forma de precarização do
trabalho e um grande retrocesso nos direitos e na remuneração
dos trabalhadores, ampliando a sua exploração e a sua opressão
pelo capital.
Historiador Raul K. M. Carrion*
Setembro de 2016