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   Porto Alegre, sexta-feira, 22 de novembro de 2024

   
Quatro falácias da terceirização

Raul K. M. Carrion

Portal Conjur: Impacto da terceirização irrestrita pode ser devastador

Encontra-se no Senado, para ser votado, o PLC 30/2015 – originário do PL 4330 do produtor de bolachas e ex-deputado Sandro Mabel – que foi recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, a “toque de caixa” e sob o látego de seu obscurantista então presidente, Eduardo Cunha.

                O referido projeto permite a terceirização do trabalho em todas as atividades laborais de quaisquer empresas, sejam elas atividades “fim” ou atividades “meio” – como, vigilância, alimentação e limpeza. Se aprovado, permitirá que uma empresa deixe de ter empregados próprios e possa alugar de diferentes empresas “prestadoras de serviços” os seus trabalhadores, os quais deixarão de ter qualquer vínculo com a referida empresa – “ilustres desconhecidos”, como afirmou uma delas em uma reclamatória trabalhista – e com a sua categoria original. Passarão a fazer parte de uma difusa e dispersa categoria de “trabalhadores em serviços”, espalhados nos mais variados setores produtivos, sem maior unidade de interesses e com mínima capacidade de mobilização em torno de demandas comuns.

                Em conseqüência, os trabalhadores terceirizados deixarão de ter direito às conquistas obtidas no decorrer do tempo pelas categorias mais fortes e organizadas – conquistas essas que acabavam se transformando, paulatinamente, em direitos do conjunto dos trabalhadores. Para os ingênuos, que acreditam que regras como “igual salário para igual trabalho” permitirão que os terceirizados possam exigir o mesmo salário e benefícios dos não terceirizados, basta lembrar que os “não terceirizados” estão fadados ao desaparecimento, uma vez aprovada essa aberração legal, perdendo-se quaisquer referências salariais ou de benefícios para os futuros terceirizados.

Não é preciso maior esforço para compreender o enorme retrocesso trabalhista, sindical e civilizacional que essa legislação acarretará, caso seja aprovada. Hoje, quando o trabalho terceirizado é permitido apenas nas “atividades meio”, já constatamos uma enorme quantidade de casos em que as empresas que alugam mão-de-obra – sem um nome a zelar no mercado – não cumprem a legislação trabalhista e previdenciária e “quebram” fraudulentamente, sem deixar bens para cobrir as suas dívidas com os trabalhadores, deixando-os no mais completo desamparo.

                Mas quais são os argumentos que os defensores da terceirização sem limites utilizam para justificar sua ofensiva retrógrada contra a obrigatoriedade da existência de um contrato entre o trabalhador e a empresa onde ele exerce a sua atividade laboral?

1º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA DA “MODERNIDADE”

O primeiro argumento é que é necessário modernizar as relações de trabalho no Brasil. Ou seja, o aluguel de trabalhadores por terceiros é apresentado como algo “moderno” e mais avançado que as atuais relações de trabalho, previstas em lei após séculos de luta dos trabalhadores de todo o mundo.

Mas, será que esses senhores ignoram que o “aluguel” de força de trabalho a terceiros era uma prática usual durante o escravismo brasileiro, já no século XVII? Ou, em sua ignorância obscurantista, nunca ouviram falar nos “escravos de ganho” e nos “escravos de aluguel”? Os “escravos de ganho” trabalhavam para terceiros, transportando cargas e pessoas, fabricando utensílios, cuidando de um estabelecimento comercial, e o dinheiro recebido pelo serviço prestado era entregue ao seu dono. No caso dos “escravos de aluguel”, os seus donos tanto podiam cobrar diretamente o trabalho realizado por eles, como podiam entregar os seus cativos a uma agência de aluguel, que cobrava uma comissão pela sua intermediação. No que difere essa “terceirização escravista da terceirização proposta?

Para não ficarmos apenas no sistema escravista, lembremos, ainda, que no Nordeste brasileiro – semi-feudal e semi-escravista – atuavam os gatos, que aliciavam trabalhadores, os colocavam em caminhões “paus de arara” e circulavam entre as fazendas, na época da safra, oferecendo a sua “carga humana” em troca de uma comissão.

Com certeza, o aluguel de trabalhadores em troca de um pagamento a quem os alicia nada tem de moderno ou de avançado. Ao contrário, remete para um passado escravistas ou servil, representando apenas a precarização das relações de trabalho. “Modernidade” é carteira do trabalho assinada, direitos trabalhistas e sindicais reconhecidos e cobertura previdenciária assegurada.

2º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA DA “ESPECIALIZAÇÃO” DAS EMPRESAS

                O segundo grande argumento dos ”pregadores” da terceirização sem limites é de que a produção moderna se especializou de tal maneira que cada empresa precisa trabalhar apenas naquilo em que tem competência, delegando as demais atividades a outras empresas, que o farão melhor e a um menor custo.

                Esse argumento ainda seria “discutível” no caso de terceirização de “atividades meio” - como alimentação, vigilância e limpeza. Nesse caso, tais tarefas podem não fazer parte da competência ou do objetivo precípuo da referida empresa. Mesmo nesse caso, ainda cabem questionamentos: a limpeza em um hospital – sujeito à disseminação de “infecções hospitalares” – é uma “atividade fim” ou uma “atividade meio”?...

Porém, no caso da terceirização das “atividades fim”, o argumento da especialização não se sustenta, pois trata-se da terceirização de atividades para as quais a empresa foi criada e supõe-se que seja competente. E devemos rebater de plano a argumentação falaciosa de que as modernas montadoras terceirizam – através de empresas sistemistas – a produção de peças para os seus veículos. Pois, nesse caso, a empresa sistemista fornece “produtos” à montadora – uma mera relação de compra e venda de bens –, o que nada tem a ver com o aluguel de trabalhadores terceirizados.

Mas, ainda cabem muitos outros questionamentos à falácia da “necessidade de especialização”.

Se a “terceirização” de mão-de-obra é uma necessidade técnica da produção moderna, é de supor-se que a empresa que aluga mão-de-obra para terceiros proporcione trabalhadores melhor preparados tecnicamente. Ora, um trabalhador mais especializado, necessariamente precisa receber um melhor salário. Como explicar, então, que, na média, um trabalhador terceirizado receba um salário 30% menor do que o de um trabalhador contratado diretamente? E que ainda tenha uma jornada de trabalho de 3 horas a mais por semana em relação ao trabalhador não terceirizado?

Por outro lado, um trabalhador especializado é um patrimônio da empresa que o tem e se esperaria que ela procurasse retê-lo. Como explicar, então, a alta rotatividade dos trabalhadores terceirizados – 64% contra 33% dos trabalhadores contratados diretamente? Isto é, como explicar que enquanto o trabalhador direto permanece em média 5,8 anos no emprego, o terceirizado permanece apenas 2,7 anos? Alta rotatividade que além de causar sérios prejuízos à vida profissional do trabalhador, repercute sobre as contas do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), na medida em que pressiona para cima os gastos com o seguro desemprego.

Por fim, se os trabalhadores das empresas terceirizadas fossem, de fato, tecnicamente melhor preparados em sua área de atuação – como alegam –, deveriam ser menos suscetíveis aos acidentes do trabalho. Como explicar, então, que de cada 10 vítimas em acidentes de trabalho, 8 são terceirizadas, mesmo sendo apenas 25% do total dos trabalhadores brasileiros? E que a mesma proporção se verifique entre os mortos em acidentes de trabalho no Brasil. Ou seja, como explicar com o argumento da “especialização técnica” que 25% dos trabalhadores brasileiros – os terceirizados – sejam responsáveis por 80% dos acidentes e por 80% das mortes em acidentes de trabalho? Proporcionalmente, 12 vezes mais?

Fica evidente que a terceirização nada tem a ver com a “especialização” e com a “eficiência” exigidas pela produção moderna.

3º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA PARA A “COMPETITIVIDADE” DAS EMPRESAS

O terceiro argumento dos defensores da terceirização em todas as atividades das empresas é a sua inevitabilidade no capitalismo dos dias de hoje e a necessidade do Brasil adotá-la, para que as empresas nacionais possam competir em pé de igualdade com as demais empresas do mundo.

Em primeiro lugar, é uma falsidade afirmar que a terceirização sem limites ocorre atualmente na maioria dos países do mundo. Trata-se, na verdade, de algo em disputa, por conta de uma grande ofensiva do capitalismo neoliberal contra os direitos e as conquistas dos trabalhadores, obtidas após de quase dois séculos de luta. Esse acirrado embate que acontece entre o capital e o trabalho encontra-se em pleno andamento, com vitórias e derrotas para ambos os lados. Só para citar dois exemplos, a terceirização de mão-de-obra nas atividades fim não é permitida nem na Alemanha, nem na França – dois países capitalistas avançados –, desmentindo a falácia de que é algo generalizado e inevitável. E ninguém poderá dizer que devido a isso os produtos fabricados na Alemanha e na França tenham perdido competitividade nos mercados mundiais.

Em segundo lugar, se for real a preocupação desses senhores pela “igualdade de condições” na competição internacional, por que não iniciar pela equiparação dos salários dos trabalhadores brasileiros com os salários muito superiores dos trabalhadores alemães, suecos, norte-americanos ou japoneses? Ou, por que não reduzir a jornada de trabalho no Brasil, igualando-a com a jornada de 35 horas semanais dos trabalhadores franceses? Ou com as jornadas de menos de 40 horas da Bélgica, Holanda, Áustria, Suécia, Noruega, Finlândia, Nova Zelândia e tantos outros países capitalistas avançados? É óbvio que os empresários brasileiros – e seus representantes no Congresso Nacional – só se preocupam com a “igualdade de condições” naquilo que os beneficia e prejudica os trabalhadores.

4º ARGUMENTO: UMA EXIGÊNCIA PARA A “GERAÇÃO DE EMPREGOS”

Esse último argumento beira à infantilidade e é um verdadeiro deboche para com a inteligência alheia. É óbvio que os empregos terceirizados não são criados pela empresa dedicada ao aluguel de pessoas. Esses empregos são demandados pelas empresas tomadoras dos seus serviços. A terceirização em si não cria um único emprego, salvo a pequena estrutura administrativa que existe para tornar lucrativo o aluguel (“comércio”) de seres humanos. Se a terceirização for extinta no dia de hoje, a única conseqüência em termos de emprego será a formalização de todos os contratos com os tomadores de serviços.

Pior ainda, a terceirização diminui o número de postos de trabalho, pois – se considerarmos que no Brasil os trabalhadores terceirizados trabalham, em média, três horas a mais por semana do que os trabalhadores contratados diretamente – isso significa a eliminação de mais de 850 mil postos de trabalho.

CONCLUSÃO

Na verdade, a “terceirização” de mão-de-obra – que avançou na medida em que o modelo neoliberal se tornou hegemônico – é uma grande ofensiva do capital contra os direitos e as conquistas dos trabalhadores. Procura debilitar a sua representação sindical (em uma mesma empresa teremos diferentes sindicatos), fragmentar os seus interesses (trabalhadores atuando em diferentes ramos industriais farão parte da mesma empresa de aluguel de mão-de-obra), reduzir salários (os pisos profissionais deixarão de valer), ampliar a jornada de trabalho (como já acontece hoje com os terceirizados) e aumentar as taxas de lucro do capital.

Além disso, a terceirização tem como meta externalizar custos e risco – desde doenças laborais, até o êxito ou fracasso nos negócios –, transferir a regulação estatal ou sindical à empresa intermediária (em geral desconhecida e sem um nome a zelar), eximindo-se de qualquer irregularidade que venha a ocorrer, e desresponsabilizar-se de investimentos na qualificação da mão-de-obra e na melhoria de suas condições de trabalho, que passarão a ser da responsabilidade da sub-contratada.

Trata-se de mais uma forma de precarização do trabalho e um grande retrocesso nos direitos e na remuneração dos trabalhadores, ampliando a sua exploração e a sua opressão pelo capital.

Historiador Raul K. M. Carrion*

Setembro de 2016