Biografia   Atuação Parlamentar   Publicações Textos Vídeos

   Porto Alegre, sexta-feira, 22 de novembro de 2024

   
“Pragmatismo”, veneno insidioso na luta de classes

Raul K. M. Carrion

Charles S. Peirce William James John Dewey

No final do século XIX – período de rápido desenvolvimento do capitalismo monopolista e de formação do sistema imperialista mundial – surgiu nos Estados Unidos (país sem qualquer tradição filosófica até hoje) a chamada “filosofia pragmática”, apresentada por seus próprios fundadores como “um novo nome para um velho modo de pensar” (William James).

Seus principais formuladores foram Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). Apesar da sua inconsistência e do seu caráter eclético – com nuances diferenciadas em Peirce, James e Dewey –, o pragmatismo rapidamente caiu nas “boas graças” da burguesia monopolista dos Estados Unidos, que necessitava de uma filosofia que justificasse o seu expansionismo e o seu domínio sobre o mundo, apaziguasse seus explorados internos e externos e propagasse o irracionalismo, desviando a atenção das massas dos grandes problemas sociais para as questões prosaicas do dia a dia.

A cavaleiro do prestígio adquirido pela “experimentação científica” e pretextando o justo combate ao pensamento “metafísico” com suas verdades “absolutas”, “imutáveis” e “universais”, o pragmatismo – com costumam fazer as distintas escolas filosóficas burguesas em tempos de “reação em toda linha” – assumiu, sem meias palavras, velhas e ultrapassadas filosofias idealistas ou materialistas vulgares, como o “empirismo”, o “nominalismo”, o utilitarismo e o “positivismo”, ao mesmo tempo que investiu com volúpia contra a “razão” e o racionalismo:

“O pragmatismo representa uma atitude perfeitamente familiar em filosofia, a atitude empírica, mas a representa, parece-me, tanto em uma forma mais radical quanto em uma forma menos contraditória (...) Afasta-se da abstração (...) Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e o poder. O que significa o reinado do temperamento empírico e o descrédito sem rebuços do temperamento racionalista. (...) O pragmatismo, (...) não sendo nada essencialmente novo, se harmoniza com muitas tendências filosóficas antigas. Concorda com o nominalismo (...), sempre apelando para os particulares; com o utilitarismo, dando ênfase aos aspectos práticos; com o positivismo, em seu desdém pelas soluções verbais, pelas questões inúteis e pelas abstrações metafísicas. Todas essas, vê-se, são tendências antiintelectuais. Contra o racionalismo, como uma pretensão e um método, o pragmatismo acha-se completamente armado e militante.” (JAMES, William. O significado da verdade. In: JAMES, DEWEY, VEBLEN. Os Pensadores – Vol. XL. São Paulo: Abril Cultural, 1974, pp. 12-13)

“A ‘Razão’, como faculdade apartada, (...) de verdades universais, começa agora a impressionar-nos como remota, desinteressante e talvez mesmo insignificante. A Razão (...) que confere à experiência o poder de generalizar e regularizar, nos impressiona como supérflua – criação desnecessária do homem voltado ao formalismo tradicional e à esmerada terminologia.” (DEWEY, John. A Filosofia em reconstrução. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, p. 108)

É sabido que a burguesia – outrora revolucionária e racionalista – transformou-se em sua fase imperialista em uma classe reacionária e obscurantista, temerosa da “razão”, avessa a uma análise científica dos grandes dilemas humanos e ao cotejo de seu comportamento retrógrado com os valores morais historicamente elaborados pela humanidade.

Para essa burguesia decrépita, a ciência precisa ficar restrita ao estudo da natureza e à sua aplicação à produção capitalista, devendo ser expulsa da filosofia e das ciências sociais, onde devem prevalecer as concepções religiosas, as “ciências ocultas”, as superstições, a magia e o misticismo. Não por acaso, o pragmatismo – que tanto propala combater as idéias “absolutas”, “metafísicas”, “não demonstráveis empiricamente” – não tem o menor escrúpulo em defender as idéias fideístas e teológicas como “úteis” e “vantajosas” para a sociedade capitalista e, portanto, “verdadeiras”:

“O pragmatismo, por mais devotado que seja aos fatos, não tem essa propensão materialista sob a qual o empirismo ordinário opera (...) não tem preconceitos a priori contra a teologia. Se as idéias teológicas provam que têm valor para a vida concreta, são verdadeiras (...) Que querem dizer os crentes no Absoluto quando propalam que sua crença lhes proporciona conforto? Querem dizer que (...) temos o direito (...) de deixar que o mundo vá à sua própria sorte, na certeza de que seus problemas se acham em melhores mãos [de Deus] do que as nossas e que não constituem assunto de nossa alçada. (...) Se as idéias teológicas podem fazer isso, se a noção de Deus, em particular, prova que pode fazer isso, como pode o pragmatismo, em sã consciência, negar a existência de Deus? O pragmatismo não pode ver sentido em tratar como ‘não verdadeira’ uma noção que foi tão bem sucedida pragmaticamente.” (JAMES, William. Pragmatismo. In: JAMES, DEWEY, VEBLEN, Idem, pp. 19-22)

E o “empirista” John Dewey – que bate no peito afirmando que não têm qualquer sentido idéias ou conceitos que não surjam da “experiência” e sejam por ela comprovados – não sente vergonha em afirmar:

“Estas considerações podem ser aplicadas à idéia de Deus ou, para evitar concepções errôneas, à idéia do divino. (...) Em uma época desorientada, é premente a necessidade de tal idéia. Pode ela unir e uniformizar os interesses e as energias agora dispersas, assim como dirigir a ação, produzir o calor da emoção e a luz da inteligência. Dar o nome de Deus a essa união, que age na ação e no pensamento, é uma questão de preferência individual. Mas a função dessa união ativa do ideal com o real se parece com as forças que estão de fato ligadas à concepção de Deus em todas as religiões de caráter espiritual; e uma idéia clara dessa função se nos afigura urgentemente e necessária no momento atual.” (DEWEY, John. A Common Faith. New Haven: Yale University Press, 1934. In: EDMAN, Irwin. John Dewey. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960, p. 316-317)

Ou seja, se as religiões nos servem de “consolo”, se nos ajudam a “alienar-nos” e “desresponsabilizar-nos” dos graves problemas humanos e sociais gerados pelo capitalismo – deixando para “Deus” a sua solução –, então estarão “empiricamente comprovadas”, por serem “úteis”, trazerem “resultados”, sendo (todas!), portanto, “verdadeiras”. A isso se resume a “comprovação experimental” dos pragmáticos, tão “ciosos” da ciência. Ridicularizando essa absoluta incoerência dos pragmáticos, Lenin diz:

“O ‘pragmatismo’ (...) é talvez o ‘último grito da moda’ da novíssima filosofia americana. (...) O pragmatismo ironiza tanto a metafísica do materialismo, como a metafísica do idealismo, exalta a experiência e somente a experiência, considera a prática como o único critério (...) e ... deduz com toda felicidade, de todo o anterior, um Deus para fins práticos, exclusivamente práticos, sem a menor metafísica, sem ultrapassar de nenhuma maneira os limites da experiência.” (LENIN, V.I. Materialismo y Empiriocriticismo. Montevideo: Ediciones Pueblos Unidos, 1959, pp. 382-383)


A "Teoria do Conhecimento" e o "Critério da Verdade" no Marxismo

Antes de examinarmos como a filosofia pragmática concebe o “conhecimento” e a “verdade”, convém rever de forma sucinta a concepção marxista acerca dessas mesmas questões, especialmente porque – pretextando combater a metafísica idealista, suas idéias a priori e seus conceitos universais e eternos –, o pragmatismo nega a existência da realidade objetiva, independente das nossas sensações, e a possibilidade de um conhecimento que – através da abstração, da elaboração de conceitos e teorias – ultrapasse a mera experiência sensorial e empírica.

Para o materialismo dialético, o Universo tem uma existência real, objetiva, que independe e é anterior ao aparecimento da consciência humana, a qual, comprovadamente, só veio a surgir muito recentemente. A consciência e o pensamento são produtos do cérebro humano, onde a matéria alcançou o seu mais elevado nível de desenvolvimento. Assim, a matéria é o “primário” (no sentido de originária) e a consciência (“espírito”) é o “secundário” (no sentido de surgir a partir do desenvolvimento da matéria). O Universo é eterno, mas não é imutável, estando em permanente movimento (mudança, transformação, deslocamento), tanto no âmbito “material” como no âmbito das “idéias”. Tudo o que existe se relaciona e interage. A causa essencial de todas as formas de movimento dever ser buscada nas contradições internas e na luta de contrários existente em cada “ser” e no “pensamento”.

A partir dessa concepção materialista-dialética do Universo, como os marxistas explicam o processo de conhecimento humano? Para o marxismo, a realidade material, ao atuar sobre os nossos sentidos, gera as sensações, que dependem do cérebro, dos nervos, da retina, etc., isto é, da matéria organizada de uma determinada maneira. Ao combinar o conjunto de suas sensações (visão, tato, audição, olfato, paladar), a consciência humana constrói a sua “percepção” da realidade. Nesse estágio do conhecimento – alicerçado nas sensações, ponto de partida indispensável para qualquer conhecimento real –, o intelecto humano permanece no âmbito do conhecimento “sensível”, “empírico” (ao nível da “experiência”), onde a realidade é percebida em suas manifestações e relações “externas”, “aparentes”, “secundárias”, “acidentais”, captadas pelos nossos sentidos, que não conseguem separar o “essencial” do “fenomênico” nem descobrir as leis do seu movimento e as suas “relações internas”.

Será somente pela abstração – propriedade da mente que possibilita a elaboração de representações, conceitos, categorias e procedimentos lógicos, tendo por base a generalização e sistematização de múltiplas experiências – que o intelecto humano ultrapassará o conhecimento puramente sensível, fenomênico, e alcançará o conhecimento racional e teórico, capaz de descobrir as leis e as conexões internas que existem na realidade. Assim, para o marxismo, o conhecimento é um “reflexo ativo” (ainda que aproximado) da realidade no cérebro humano. Portanto, o conhecimento só será “verdadeiro” se representar adequadamente o real. E o critério da verdade é a sua comprovação através da prática:

“O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da teoria e sim um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade e a força, o caráter terreno de seu pensamento. O debate sobre a realidade ou irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico.” (MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas, vol. 3. Rio de Janeiro: Edit. Vitória, 1963, p. 208)

Portanto, a resposta aos agnósticos – que negam ao pensamento humano a capacidade de conhecer a “coisa em si”, visto que, segundo eles, só temos acesso às “sensações” que a realidade nos fornece – será dada através da prática:

“Se podemos demonstrar a exatidão de nossa maneira de conceber um processo natural reproduzindo-o nós mesmos, criando-o a partir de suas condições próprias; e se, além disso, o colocamos a serviço de nossos próprios objetivos, então acabamos com a “coisa em si”, inacessível, de Kant. As substâncias químicas produzidas no mundo vegetal e animal continuaram sendo “coisas em si”, inacessíveis, até que a química orgânica começou a produzi-las, uma após a outra; com isso, a “coisa em si” converteu-se em coisa para nós”. (ENGELS, F. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, K. e ENGELS, F. Obras..., Idem, p. 180)

O “conhecimento" e a "verdade" na visão pragamática

Examinemos, agora, como o pragmatismo responde à “questão fundamental de toda filosofia (...) da relação entre o pensamento e o ser (...) entre o espírito e a natureza (...) que relação mantém nossos pensamentos sobre o mundo que nos rodeia com esse mesmo mundo? Nosso pensamento é, de fato, capaz de conhecer o mundo real? Podemos com nossas representações e conceitos sobre o mundo real formar uma imagem exata da realidade?” (ENGELS, F. Ludwig Feuerbach..., Idem, pp. 179-180)

Para Charles Peirce – fundador do pragmatismo – é impossível afirmar que o conhecimento é um reflexo da realidade objetiva na consciência do homem, pois o único que podemos conhecer através da “experimentação” – afirma, repetindo as surradas teses do agnosticismo empirista – são as nossas “sensações”. Assim, o pensamento deve limitar-se em buscar a superação da “dúvida” (que nos imobiliza) e elaborar uma “crença estável”, uma “opinião firme”, capaz de dirigir a nossa ação. Por essa razão, o pragmatismo se auto-proclama a “filosofia da ação”. A questão de se essa crença corresponde ou não à realidade é rechaçada pelos pragmáticos como algo impossível de se saber e, portanto, sem qualquer sentido.

A crença será “verdadeira” se a ação nela alicerçada obtiver êxito. Em outras palavras, o significado e a veracidade de qualquer idéia são determinados pela sua utilidade e benefício para o indivíduo que a adota. O que importa é a convicção com que cada um assume a sua crença, condição essencial para que atue com eficácia e alcance o êxito: “Podemos imaginar que procuramos não só uma opinião, mas uma opinião verdadeira. Mas (...) tão logo obtemos a fé firme, ficamos plenamente satisfeitos, seja essa fé verdadeira ou falsa.” (PEIRCE, Ch. Collected papers, vol. 5, p. 232. Cambridge-Massachusetts, 1958-1960. In: BOLGOMOLOV, A.S. A filosofia americana no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 26)

Quanto à questão se o nosso pensamento pode refletir ou não, com alguma fidelidade, as concatenações reais do Universo e suas leis, Peirce responde: “Procurai verificar qualquer lei da natureza e descobrireis que quanto mais precisas forem as vossas observações, tanto mais definidamente elas mostrarão as desordenadas infrações da lei (...) Examinai com suficiente profundidade as suas causas e sereis forçados a admitir que elas são sempre geradas por uma determinação arbitrária ou pelo acaso.” (PEIRCE, Ch. Collected Papers, vol. 6, p. 37. Idem, p. 26)

Aqui, Pierce antecipa a idéia – que seus discípulos desenvolverão ainda mais– de que a realidade é caótica, não sendo regida por nenhuma lei e que todos conceitos e teorias elaboradas pelos homens não passam “construções do intelecto” com o objetivo de “ordenar” os conhecimentos proporcionados pela experiência humana.

William James – que popularizou o pragmatismo – reforça a visão de que o único que podemos conhecer são as sensações fornecidas pelos nossos sentidos, através da “experiência”, e que nossas “idéias” e “teorias” nada mais são do que criações da mente humana para colocar “ordem” no caos existente no Universo, cuja realidade e cujas leis (se é que existem) são inacessíveis a nós. A partir dessa visão “idealista-subjetiva”, James acusa como “metafísica” toda e qualquer pretensão do “pensamento abstrato” em elevar-se acima da mera experiência e do conhecimento empírico e reduziu o “conhecimento” e a “verdade” a funções puramente instrumentais e utilitárias, pois para ser “verdadeiro” basta ser útil (para quem?) e obter “resultados”:

“[a] realidade (...) é o fluxo de nossas sensações (...) Não são nem verdadeiras nem falsas; simplesmente são. (...) Atrás dos puros fatos fenomenais (...) não há nada. (...) Nossos substantivos e adjetivos [“conceitos” e “predicados]” são todos heranças humanizadas e nas teorias, pelas quais os estruturamos, a ordem interna e o arranjo íntimo é totalmente ditado por considerações humanas. (...) o que dele é verdadeiro parece do princípio ao fim ser amplamente matéria de nossa própria criação. (...) Os homens engendram verdades para ele. (...) qualquer hipótese é legítima aos olhos pragmatistas, pois qualquer tem o seu uso. (...) não podemos rejeitar qualquer hipótese se daí decorrem conseqüências úteis à vida. (...) nenhuma hipótese é mais verdadeira do que qualquer outra, no sentido de ser uma cópia mais literal da realidade. São apenas maneiras de falar, comparáveis somente do ponto de vista de seu uso. (...) todas as nossas teorias são instrumental, são modos mentais de adaptação à realidade.” (JAMES, William. Pragmatismo. São Paulo: Edit Martin Claret, 2006, pp. 109-145)

“nenhuma teoria é absolutamente uma transcrição da realidade (...) qualquer delas pode (...) ser útil. (...) são apenas uma linguagem humana, uma taquigrafia conceitual (...) nas quais escrevemos nossos informes sobre a natureza (...) O pragmatista fala a respeito de verdades no plural, sobre sua utilidade e caráter de satisfação, a respeito do êxito com que “trabalham” (...) uma idéia é verdadeira na medida em que acreditar nela é proveitoso para nossas vidas. (...) Verdadeiro é o nome do que quer que prove ser bom no sentido da crença (...) o que é melhor para nós é verdadeiro”. (...) é ‘útil porque é verdadeira’ ou que ‘é verdadeira porque é útil’. Ambas as frases significam a mesma coisa. (...) Schiller diz que o ‘verdadeiro’ é o que ‘funciona’. (...) Dewey diz que a verdade é o que dá satisfação. (...) A verdade é feita (...) no curso dos acontecimentos.” (JAMES, William. Pragmatismo. In: JAMES, DEWEY, VEBLEN, Idem, pp. 14-30)


De maneira resumida, o pragmatismo afirma que não temos como conhecer a “realidade”, pois só podemos conhecer nossas “sensações”. A realidade – se é que existe – é caótica, não sendo regida por nenhuma lei. As idéias, os conceitos e as teorias que elaboramos, são meras “criações” humanas, que buscam dar alguma coerência às nossas sensações. Portanto não existe “verdade” no sentido da adequação do pensamento ao “real”. A verdade se resume a qualquer “crença” útil para quem a adota, que lhe traga “vantagens” e “resultados”.
É difícil encontrar um elogio mais enfático à impotência da razão e ao irracionalismo!

“Tenhamos crenças firmes, úteis e vantajosas"

Não há dúvidas que o pragmatismo – com sua negação da existência da “verdade objetiva” e com sua redução da “verdade” a meras “crenças estáveis” que sejam “úteis” e “tragam vantagens” – prestou e continua prestando uma enorme ajuda ao imperialismo, em particular estadunidense.

Certamente a “firme crença” no “destino manifesto” dos Estados Unidos justificou sua tomada, pela força, de quase metade do território do México, em 1848, trazendo enormes vantagens para o país. Da mesma forma, a “forte convicção” (apesar das evidências em contrário) de que os espanhóis eram os responsáveis pelo afundamento do encouraçado “Maine”, no porto de Havana, em 1898, serviu de pretexto para a declaração de guerra à Espanha e para a imediata e exitosa ocupação do Havaí, Filipinas, Porto Rico e Cuba, até então colônias espanholas. E a ocupação de Guantánamo até os dias de hoje é justificada pela “firme convicção” de que o mar das Caraíbas faz parte do “espaço vital” norte-americano e que Cuba é uma “ameaça” à segurança dos Estados Unidos... Por certo, também, a inabalável convicção de boa parte dos estadunidenses acerca da inferioridade dos negros e da necessidade da segregação racial para manter os privilégios da maioria branca proporcionou bases “verdadeiras” às barbáries cometidas pela Klu Klux Klan e obteve êxito durante longos anos.

Poderíamos continuar exemplificando ad nauseam até onde pode levar a pregação pragmática de que a verdade se reduz apenas à sua “utilidade” e “proveito”.
Caberia perguntar – Serve a quem? É útil para quem?

Postura que leva o pragmatismo a considerar as abstrações, os conceitos, as teorias como criações “metafísicas” da mente, que não tem correspondência com o real. A partir dessa visão “idealista subjetiva”, o pragmatismo assume um “anti-racionalismo militante” e afirma que a única forma de aferir a “veracidade” de uma “crença” (ao que se reduz o conhecimento) são os resultados práticos obtidos com a sua aplicação. Ou seja, se ela levar ao sucesso, for “útil”, trouxer “proveito” e “vantagens”, será verdadeira! Só o que é eficaz é verdadeiro. Portanto, se um indivíduo ficar desempregado, não tiver êxito em suas atividades ou fracassar em seu empreendimento, não deve buscar a causa disso na lógica excludente e concorrencial do capitalismo, e sim isso em suas “crenças errôneas”. Isto é, a culpa será sua...

Nesta segunda parte de nosso estudo sobre o pragmatismo, examinaremos suas concepções morais, jurídicas, sociais e políticas.

A "moral" pragmática

Como não podia deixar de ser, a concepção pragmática de “moral” segue a mesma visão “empírica” de sua concepção de conhecimento e de “verdade”. Para os pragmáticos não existem normas ou valores morais – “invenção dos metafísicos”, segundo eles –, e só o método experimental permitirá solucionar os problemas que venham a surgir, tendo como única referência a compreensão de que o “bom” ou o “certo” é aquilo que é “proveitoso” para o indivíduo e lhe assegura o êxito:

“No terreno da moral esse método conduz inevitavelmente ao relativismo ético. O instrumentalismo, por sua própria essência, rechaça todo gênero de normas morais obrigatórias para todos (...); os princípios morais são para ele simples instrumentos, da mesma forma que todos os conceitos em geral. Desde o ponto de vista do instrumentalismo, a moralidade de um ato deve ser avaliada somente segundo o êxito com que resolva cada ‘situação problemática’ moral por separado, isto é, em essência, de maneira totalmente subjetiva. (...) Em sua aplicação às relações políticas, o princípio do instrumentalismo pode ser facilmente utilizado para justificar o aventureirismo mais desenfreado, a arbitrariedade e qualquer ação violenta na hora de resolver os problemas políticos.” (YOVCHUK, M.T., OIZERMAN, T.I. e SHCHIPANOV, I.Ia. Compendio de Historia de La Filosofia, vol. 2. Montevideo: Ediciones Pueblos Unidos, 1969, pp. 747-748)

John Dewey expressou sem meias palavras essa concepção pragmática e utilitária da “moral”: “Os fins e bens morais existem somente quando se tiver de fazer alguma coisa (...) a moral não é catálogo de atos, nem um conjunto de regras a serem aplicadas (...) cada situação moral é situação isolada, inigualável, com o seu mérito ou bem insubstituível. (...) A felicidade é encontrada unicamente no êxito. (...) O crescimento, o desenvolvimento em si mesmo é o único ‘fim’ moral.” (DEWEY, John. A filosofia em Reconstrução São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, pp. 164-179).

Analisando esse “relativismo moral” do pragmatismo, o filósofo marxista mexicano Adolfo Sanchez Vazques constata:

“No terreno da ética dizer que algo é “bom” equivale a dizer que conduz eficazmente à obtenção de um fim, que leva ao êxito. Por conseguinte, os valores, princípios e normas são esvaziados de um conteúdo objetivo e o valor do “bom” – considerado como aquilo que ajuda o indivíduo na sua atividade prática – varia de acordo com cada situação. Reduzindo o comportamento moral aos atos que levam ao êxito pessoal, o pragmatismo se transforma numa variante utilitarista marcada pelo egoísmo; por sua vez, rejeitando a existência de valores ou normas objetivas, se apresenta como mais uma versão do subjetivismo e do irracionalismo.” (VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 254)

E mesmo uma estudiosa simpática ao pragmatismo – como a cientista política brasileira Thamy Pogrebinschi – tem que reconhecer que, ao contrário do utilitarismo de John Stuart Mill, o pragmatismo é puramente “individualista”:

“Ressalte-se (...) que a idéia de ‘felicidade geral’ ou ‘o maior bem para o maior número’ [de Stuart Mill] não são em si apropriadas pelo pragmatismo. (...) a utilidade não é por ele definida em termos de felicidade e tampouco de felicidade do maior número. O que é útil para o pragmatismo é simplesmente aquilo que é melhor para cada pessoa. A utilidade é definida, portanto, em termos instrumentais. (...) são úteis na medida em que conduzem eficazmente à realização dos fins dos indivíduos.” (POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo - Teoria Social e Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, p. 67)

E John Shook, apologista do pragmatismo, confessa: “O pragmatismo é um individualismo, pois os fins são sempre fins de um determinado indivíduo. (...) Os valores não existem antes do nosso ato de valoração (...) Não nos perguntamos se nossas ações estão de acordo com ideais morais, quando obtemos um bem social (...) Os ideais morais são valorados por uma sociedade porque serviram no passado para resolver um conflito; eles podem ser (...) substituídos por outros ideais, caso venham a falhar na resolução de conflitos futuros.” (SHOOK, John. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002, pp. 149; 162-167)

Assim, a “moral pragmática” reduz todos os valores morais – amizade, solidariedade, lealdade, sinceridade, altruísmo, compaixão, espírito de justiça, coragem, entre outros – à mera “utilidade” para o indivíduo, examinada em cada caso concreto.

O marxismo rejeita esse “amoralismo” pragmático. Os valores morais não são “eternos”, mas “históricos” e em uma sociedade de classes, assumem um pronunciado caráter de classe. Isso não significa, porém, que não existam valores universais, sedimentados ao longo do processo de evolução da humanidade:

“a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado possuem cada uma a sua moral particular (...) Essas três teorias morais representam (...) etapas distintas de um mesmo processo histórico e por isso têm um fundo histórico comum, o que faz com que forçosamente elas contenham toda uma série de elementos comuns. E não é só. Em fases idênticas ou aproximadamente equivalentes de desenvolvimento econômico, as teorias morais devem necessariamente coincidir, numa extensão maior ou menor. (...) também o mundo moral tem os seus princípios permanentes, que se colocam acima da história e das diferenças existentes entre os povos. (...) Que essa evolução se processa sempre, em largos traços, da mesma forma no campo da moral como nos demais ramos do conhecimento humano e sempre em um sentido de progresso, é o que nos parece indubitável.” (ENGELS, F. Anti-Düring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp.78-79)

Sem dúvida, o “amoralismo pragmático” serve como uma “benção” para a grande burguesia monopolista, que não tem quaisquer escrúpulos nem se detém diante do uso de qualquer expediente para acumular o capital e dominar povos:

“Na verdade, se o valor principal que a moral sustenta é o dinheiro e a riqueza, se a sua obtenção é considerada como resultado do pragmatismo da pessoa, como será possível pensar na moralidade dos meios para atingir este objetivo? (...) A moral burguesa é pela sua própria natureza hipócrita e dúplice. ‘O dinheiro não cheira’, esta é a divisa mais característica que põe a nu toda a sua falsidade interna.” (TITARÉNKO, A. I. Particularidades principais do desenvolvimento histórico da moral. In; DIVERSOS. Fundamentos da Ética Marxista-Leninista. Moscou: Ed. Progresso, 1982, p. 73)

“Para atingir um objetivo, desrespeita-se o caráter moral dos meios. Deste enfoque surge o princípio da conduta moral ótima que indica o critério de eficácia dos meios em detrimento do critério da sua moralidade. A mentira e a traição, o veneno e a espada – tudo é permissível e, mesmo, desejável quando se trata do caminho mais breve para o objetivo desejado.” (BAKCHTANÓVSKI, V. I. Problemas da opção moral. In: DIVERSOS. Idem, p. 138)

“As vantagens justificam os meios"

Todos conhecem a cantilena dos ideólogos burgueses de que os marxistas se orientariam pela tese de que “os fins justificam os meios”, no sentido de que os comunistas estariam dispostos a utilizar qualquer meio para atingir os seus fins – o socialismo e o comunismo. Essa é mais uma das tantas calúnias contra aqueles que lutam por um mundo mais livre e mais humano, liberto de toda forma de exploração e opressão – o que é incompatível com o uso do engano, a falsidade, a deslealdade, a baixeza e a vilania – que tão bem caracterizam o comportamento da burguesia em sua fase monopolista. O que a história tem demonstrado é que é o imperialismo quem – com o “suporte filosófico” do pragmatismo – nunca titubeou em utilizar os meios mais ignóbeis para alcançar os seus objetivos, obter “proveito” e “vantagens”, massacrar povos e destruir nações.
Ao adotar as fórmulas “tudo que é útil é verdadeiro”, “a idéia verdadeira é aquela que nos traz vantagens”, “o êxito é o único objetivo moral”, o pragmatismo concedeu respeitabilidade e cidadania a qualquer canalhice, desde que demonstre ser capaz de conduzir ao êxito. A cantilena dos escribas do imperialismo se voltou contra eles próprios, recauchutada sob a fórmula “as vantagens justificam os meios”!

Assim, se for preciso mentir – dizendo que o Iraque era detentor de “armas de destruição em massa” (mesmo sabendo que isso não tinha qualquer fundamento) –, invadir e destruir o país para apropriar-se de seus riquíssimos campos de petróleo, tudo isso é “moral”, é “certo”, pois obteve êxito e alcançou vantagens incalculáveis para o grande capital estadunidense, além de dividendos geopolíticos e militares para o imperialismo norte-americano!

O pragmatismo jurídico

A filosofia pragmática – com a sua pregação de que a “verdade” é o que é útil e não pode ser entendida como uma “representação objetiva” da realidade, devendo restringir-se a descrever cada experiência concreta, tendo como único critério de veracidade o seu proveito para o indivíduo – tornou-se a base ideológica das teorias mais reacionárias entre os juristas burgueses dos Estados Unidos, entre os quais os da escola “sociológica” e os chamados “realistas”.

Para os “sociologistas” – em perfeita consonância com o pensamento pragmático – não existem “princípios jurídicos” (invenção dos metafísicos...) e as normas e as leis tem um valor meramente formal, pois são incapazes de responder às necessidades das “experiências” práticas com suas singularidades. “O Direito é mais do que um conjunto de normas”, dizem. O que importa é o processo de aplicação dessas normas a cada caso concreto, atribuindo essa “experimentação aos juízes e aos tribunais:

“O abandono da democracia e o retorno à reação que caracteriza a época do imperialismo, manifesta-se particularmente no crescimento do papel dos tribunais e dos órgãos administrativos. Buscando fundamentar a arbitrariedade dos juízes e de quantos aplicam o Direito, os juristas reacionários norte-americanos sustentam que o essencial no Direito não é o elemento normativo [as leis], mas o processo da sua aplicação. (...) é precisamente a expressão do desejo da burguesia de desembaraçar-se de sua própria legalidade (...) a burguesia põe suas esperanças não tanto em suas leis, quanto em seus juízes, que devem ‘emendar’ as leis e adaptá-las no maior grau possível aos interesses dos círculos reacionários da burguesia imperialista (...) a ampliação do papel do tribunal e o estabelecimento da arbitrariedade dos juízes constitui uma das tarefas a que se propõe a burguesia.” (POKROVSKI e outros. História das Idéias Políticas. Ciudad de México: Grijalbo, 1966, pp. 595-597)

Os “realistas” vão ainda mais longe em sua “pragmatização” do Direito e na renúncia aberta à legalidade quando afirmam que a lei nada mais é que uma opinião do legislador, mas que essa opinião ainda não é um verdadeiro direito, senão simplesmente uma hipótese que deve ser avaliada pelos tribunais:

“O ‘realista’ Bingham (...) diz que não são as leis que governam, mas os homens. O direito não radica em regras, nem em princípios. Em sua aspiração de fundamentar a legitimidade da sentença dos juízes, afirma que estes não estão obrigados pelas leis, nem sequer pelos precedentes judiciais [a jurisprudência]. (...) A lei, com essa concepção, perde o valor de uma norma inamovível obrigatória para o juiz. (...) a lei é só um prenúncio do que na realidade faz o tribunal e nada mais. (...) John Dewey (...) afirma que a norma do direito deve ser valorada por suas conseqüências, por sua utilidade prática, como meio, como instrumento para alcançar determinados objetivos. (...) ‘Sem a aplicação diz Dewey – a lei é um pedaço de papel ou um som no ar, mas não há nada que se possa denominar lei.” (POKROVSKI, idem, pp. 597-599)

Não é preciso pensar muito para perceber as graves conseqüências que decorrem dessa “teoria pragmática do direito” da época do imperialismo (que significa a reação em toda linha), enquanto um instrumento para anular – na prática da aplicação do Direito – os limitados avanços duramente conquistados pelos trabalhadores e pelos povos de todo mundo no terreno dos direitos civis, políticos e sociais.

Infelizmente, muitas dessas idéias prevalecem inclusive em nossos tribunais, como recentemente vimos acontecer com a adoção pelo STF da “teoria do domínio do fato”, fazendo tabula rasa da “presunção de inocência”, existente em qualquer Estado de Direito que se preze.

O pragmatismo social e político

Ao expressar suas concepções de “Sociedade”, “Estado”, “Democracia”, o pragmatismo assume abertamente a apologia do capitalismo e da democracia liberal norte-americana, ainda que para isso tenha de lançar mão de afirmações teleológicas ou propor conceitos metafísicos – universais, imutáveis e a-históricos –, como “natureza humana”, “tendências inatas”, “propriedade privada”, “democracia”, jogando no lixo quaisquer exigências de “comprovação experimental” do que apregoam:

“James (...) tenta explicar o comportamento do homem e sua ‘experiência’ tomando por base a imutável ‘natureza do homem’ determinada, diz, pela ‘abundância inata de formas interiores, ou seja, pelo conjunto de instintos que condicionam o ‘interesse eletivo’ do psiquismo humano. Trata-se antes de mais nada do ‘instinto de propriedade’, que motiva o homem a apropriar-se, acumular, a fazer o mal a quem possui coisas das quais gostaríamos de nos apoderar; o ‘instinto de beligerância’, que torna fatais as guerras e morticínios; o ‘instinto de dissimulação’, etc.

James expôs francamente o sentido dessa concepção em suas ‘Palestras com professores sobre psicologia’. ‘O instinto da propriedade é inerente à nossa natureza – diz ele – e se arraigou tão a fundo nela que, do ponto de vista psicológico, parece que tempos que suspeitar antecipadamente de todas as formas extremadas das utopias comunistas (...) Ao que parece, para a prosperidade espiritual do homem é absolutamente necessário que ele seja dono, com direito de propriedade exclusiva, não só da roupa que veste mas de algo mais que ele possa, em caso de necessidade, defender de todo mundo.” (BOGOMOLOV, A. S. A Filosofia Americana no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, pp. 48-49)

Seguindo a mesma toada, Dewey afirma que as guerras e as mazelas sociais decorrem dos “instintos humanos”:

“A semelhança da escravidão grega ou da servidão feudal, a guerra e o regime econômico vigente são formas sociais (patterns) entrelaçadas no material da atividade instintiva. A natureza inata do homem fornece a matéria prima, mas o costume fornece o mecanismo e os fins. A guerra seria inconcebível sem a ira, a disposição de luta, a concorrência, a vontade de exibir-se e outras tendências hostis. A atividade se assenta nelas e existirá em quaisquer condições de vida. Imaginar que elas serão erradicadas é o mesmo que supor que a sociedade pode viver sem alimentação ou sem a união do homem com a mulher. (...) semelhantes considerações dificilmente demonstram que a guerra deve ser erradicada em algum futuro distante” (DEWEY, John. Human Nature and Freedom. In: BOGOMOLOV..., idem, pp. 82-83)

Dewey, também, apresenta de forma apologética a “democracia liberal” norte-americana – “plutocracia” escancarada que concede ao povo unicamente o direito de escolher a cada quatro anos um republicano ou um democrata para governá-lo, em nome dos interesses da burguesia monopolista:

“a democracia tem um significado moral e ideal (...) atingir a liberdade constitui o objetivo da história política (...) o governo autônomo é um direito inerente aos homens livres (...) podemos mesmo identificar (...) o fato de toda a história do passado haver sido um movimento para a conquista da liberdade. (...) A democracia é uma forma de vida norteada pela fé realizadora nas possibilidades da natureza humana (...) independente de raça, cor [que o digam os negros norte-americanos], sexo, nascimento, família e riqueza material ou cultural. (...) é a fé na capacidade de todas as pessoas para dirigirem sua própria vida, livre de coerção e imposição alheias”. (DEWEY, John. The Philosopher of the Common Man. In: EDMAN, Irwin. John Dewey. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960, pp. 330-331) “Thomas Jefferson (...) foi o primeiro homem moderno a colocar em termos humanos os princípios da democracia (...) ‘as definições e os axiomas de um governo livre’, como Lincoln os classificou”. (DEWEY, John. Freedom and Culture. In: EDMAN, Irwin, idem, p. 294)

Mas, o próprio Dewey, em 1939 – endossando as opiniões colonialistas de Thomas Jefferson –, deixará evidentes suas reais concepções – imperialistas e anti-democráticas:

“Os fundadores da democracia política americana não eram tão ingenuamente dedicados à teoria pura que desconhecessem a necessidade de condições culturais para o bom êxito da tarefa das formas democráticas. (...) Poderíamos encher páginas e mais páginas com palavras de Thomas Jefferson insistindo (...) seus receios quanto ao bom êxito das instituições republicanas nos países sul-americanos que se haviam libertado do jugo espanhol. (...) Em certa ocasião chegou até a sugerir que a melhor coisa que poderia acontecer às nações sul-americanas seria continuarem sob o domínio nominal da Espanha, com a garantia da França, Rússia [czarista], Holanda e Estados Unidos, até que a experiência do governo autônomo as preparasse para a independência completa.” (DEWEY, John. Freedom ..., idem, pp. 285-287)

Certamente, foi tão “nobre preocupação” que fez os norte-americanos ignorarem o “direito inerente aos homens livres” de um “governo autônomo” e imporem aos cubanos, em 1901, pela força das armas, a “Emenda Platt”, estabelecendo um protetorado estadunidense sobre Cuba e mantendo ali, até hoje, contra a vontade do seu povo, a base naval de Guantánamo. A mesma “nobre preocupação” tem sido, certamente, a causa de dezenas de invasões, pelos Estados Unidos, de nações soberanas em todo o mundo, em nome da “sacrossanta democracia liberal”...

Nesse mesmo escrito, Dewey – referindo-se à obsessão norte-americana por amealhar dinheiro – o afirma que “se nossa cultura americana é grandemente pecuniária, não é porque a estrutura primitiva ou inata da natureza humana tenda, por si mesma, a obter lucro pecuniário. É antes porque a cultura complexa estimula, promove e consolida as tendências, inatas”. (DEWEY, John, idem, pp.265-266). Mais uma vez, Dewey recorre em suas explicações às metafísicas “tendências inatas”...

O marxismo de há muito pôs fim a especulações metafísicas acerca de “tendências inatas” e “natureza humana imutável”, mostrando que a essência do homem e a sua “natureza” são constituídas pelo conjunto das relações sociais em que ele atua: “a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais.” (MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. MARX, K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol. 3. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, p. 209). Ou seja, não são os “instintos” ou supostas “tendências inatas” do homem a causa da existência da exploração, da opressão, das agressões e das guerras, como apregoa o pragmatismo, e sim as relações sociais existentes, plenamente mutáveis!

Também em relação à violência do Estado contra os oprimidos, Dewey deixa perceber seu autoritarismo, reduzindo o problema à “eficiência” da repressão: “É o caráter sacrossanto, assim atribuído ao uso da força pelo Estado, que torna pungente a acusação de Tolstoi de que o Estado é o arquiinimigo, a pessoa que recorre à violência em grande escala. Não vejo outra saída exceto dizer que tudo depende da adaptação eficiente dos meios aos fins. A séria acusação ao Estado não é a de que ele usa a força – nada se consegue sem usar força – e sim que não a usa de modo sábio ou eficiente.” (DEWEY John. Force and coercion. SHOOK, John. Os pioneiros..., idem, pp. 187-188)

Mas, deixemos de lado a conversão “metafísica” dos pragmáticos – que nada esclarecem acerca dessa tal “natureza humana imutável” e enaltecem a “sacrossanta propriedade privada” (da qual a imensa maioria da humanidade está excluída), o “indivíduo abstrato” (que “levita” alheio às classes) e a “democracia liberal” (que nos EUA se reduz em escolher, a cada quatro anos, qual o segmento do grande capital que irá dirigir o Estado) – e vejamos o que Richard Rorty, o “guru” do pragmatismo contemporâneo (que se auto-proclama “de esquerda”) nos tem a dizer:

“Gostaria que tivéssemos alcançado uma época em que pudéssemos finalmente nos livrar da convicção (...) de que deve haver maneiras teóricas amplas de achar como por fim à injustiça, como oposto a maneiras experimentais e humildes. (...) penso que há de chegar a época de abandonar os termos ‘capitalismo’ e ‘socialismo’ do vocabulário político da esquerda. Seria uma boa idéia parar de falar sobre ‘a luta anticapitalista’ e substituí-la por alguma coisa banal e não teórica – algo como ‘a luta contra a miséria humana evitável’. (...) Sugiro que comecemos a falar de cobiça e egoísmo, em vez de ideologia burguesa; de ondas de fome e desemprego, em vez de mercadorização do trabalho; de diferenças de gastos por aluno em escolas e acesso diferencial à saúde, em vez da divisão da sociedade em classes. (...) Uma vez que ‘capitalismo’ não pode mais funcionar como o nome da fonte da miséria humana, ou ‘classe trabalhadora’ como o nome de um poder redentor, precisamos encontrar novos nomes para essas coisas (...) Não teremos outro nome para um poder redentor exceto ‘sorte’. (...) Fukuyama sugeriu, e eu concordo, que não há mais projeto romântico para a esquerda além do de tentar criar Welfare States democrático-burgueses e equalizar as oportunidades de vida entre os cidadãos desses Estados por meio da redistribuição de excedente através de economias de mercado. (...) aquilo que os marxistas chamava de ‘reformismo liberal burguês’ é o único caminho que resta à política de esquerda.” (RORTY, Richard. Pragmatismo e Política. São Paulo: Martins, 2005, pp. 25; 54-55, 63-64)

Discurso que procura induzir à completa capitulação frente ao capitalismo putrefato, ao abandono de qualquer teoria de transformação social e à adesão ao mais rasteiro “reformismo burguês”, na esperança de que algumas migalhas da mesa dos poderosos caiam para os “famélicos do mundo”!

Não satisfeito com sua apologia do capitalismo – “eterno e insuperável” –, Rorty esforça-se para convencer- nos das “excelências” da democracia e da sociedade estadunidenses: “vejo a América (...) abrindo uma possibilidade de panoramas democráticos ilimitáveis. Penso que nosso país (...) é um bom exemplo da melhor espécie de sociedade já inventada” (RORTY, idem, p. 31) Que o digam os pobres e os negros e norte-americanos, assim como todos os povos oprimidos pelo poder econômico e pela máquina de guerra dos Estados Unidos...

Para concluirmos nossa análise, é preciso examinar a concepção pragmática de “Estado”, desenvolvida essencialmente por Dewey, que se opõe tanto à teoria “contratualista” – que considera que o Estado surge de um “contrato” entre indivíduos que abrem mão de sua liberdade absoluta para depositá-la nas mãos de um “ente”, situado acima da sociedade, com a tarefa de mediar seus interesses comuns –, quanto à concepção marxista, que afirma:

“O Estado (...) é antes um produto da sociedade quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida em antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder (...) é o Estado (...) da classe economicamente dominante, classe que por intermédio dele se converte em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida.” (ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. In: MARX, K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol 3..., idem, p. 135-137)

Ao contrário, para Dewey, a democracia é “um modo de vida” que se expressa em distintas “comunidades locais” – família, vizinhança, escola, trabalho, clube, igreja, associação, etc. A partir daí, “a democracia vai vir por si própria, pois democracia é o nome para uma vida de comunhão”. (DEWEY, John. The Public and its Problems. In: POGREBINSCHI, Thamy, idem, p. 144) “De acordo com Dewey, (...) a Grande Comunidade deve ser uma enorme articulação de pequenas comunidades locais. (...) à democracia enquanto um sistema de governo, Dewey chama de democracia política. (...) O que há de essencial neste modo como Dewey encara a democracia (...) é que a democracia deixa de ser vinculada unicamente à política. (...) Os cidadãos deweyanos não precisam de um governo que não seja o deles próprios, a ser exercido de forma direta e constante – seja em casa, na escola, no trabalho, nas inúmeras associações com seus múltiplos fins: a democracia se faz a si mesma em toda parte.” (POGREBINSCGHI, Thamy..., idem, pp. 144-145; 151; 156-158)

Essa abordagem – sedutora por seu apelo à “participação direta” dos indivíduos nos assuntos do seu dia a dia, de forma palpável –, que propala ser isso a “verdadeira democracia”, longe de ser uma abordagem inofensiva, busca desinteressar as pessoas da “política” e da luta pelo Poder do Estado, visto com algo distante e malévolo, contribuindo para manter o “status quo”. “Contentemo-nos com a participação democrática em nossas comunidades locais e deixemos a ‘grande política’, a luta pela hegemonia no Estado, nas mãos dos políticos profissionais” – essa poderia ser a “divisa sagrada” do pragmatismo político!

São “verdadeiras” na medida em que são eficazes e proporcionam vantagem ao indivíduo. Na segunda parte do nosso ensaio, estudamos o seu relativismo moral – o correto, o bom, o moral, é aquilo que traz proveito para o indivíduo. Em seguida, estudamos o pragmatismo jurídico, que nega a existência de princípios e normas jurídicas – historicamente construídas – e delega a juízes e tribunais de classe a decisão sobre o “justo”, segundo sua “utilidade para a sociedade” (isto é, a sua utilidade para a classe dominante). Por fim, analisamos o pragmatismo social e político, mera apologia da democracia liberal norte-americana e do capitalismo imperialista. Nessa terceira e última parte do nosso estudo do Pragmatismo, abordaremos as suas manifestações mais diretas na luta de classes.

A subestimação da teoria e o "praticismo rasteiro"

Na medida em que o Pragmatismo nega qualquer correspondência das idéias e das teorias com a realidade objetiva e faz da experiência a única forma de conhecimento, ignorando a capacidade do intelecto humano – a partir da generalização, da abstração e do raciocínio – de chegar à essência das coisas e às leis que regem os processos –, é óbvio que ele desvaloriza completamente a “teoria” e faz da “prática” um fetiche.

Mesmo compreendendo que a “prática” é o ponto de partida de todo o conhecimento e o único “critério de verdade” (comprovação) desse conhecimento –, o marxismo não cai no “empirismo”. Em seu ensaio filosófico Sobre a Prática, Mao Tse Tung expõe isso de forma pedagógica:

“No processo da prática, o homem não vê ao início mais que as aparências, os aspectos isolados e as conexões externas das coisas. (…) Esta etapa do conhecimento denomina-se etapa sensorial e é a etapa das sensações e impressões. Nessa etapa o homem não chega ainda a formar conceitos (...) nem a tirar conclusões lógicas. À medida que continua a prática social, as coisas que no curso da prática suscitam no homem sensações e impressões, se apresentam uma e outras vezes. Então, se produz no seu cérebro uma mudança repentina (um salto) no processo do conhecimento e surgem os conceitos. Os conceitos já não constituem reflexos das aparências das coisas, de seus aspectos isolados e de suas conexões externas, senão que captam as coisas na sua essência, em seu conjunto e em suas conexões internas. (…) Esta etapa, dos conceitos, juízos e raciocínios, é (...) a etapa do conhecimento racional. A sensação só resolve o problema das aparências; unicamente a teoria pode resolver o problema da essência. (…) Pensar que o conhecimento pode ficar na etapa inferior, sensorial (...) significa cair no empirismo (...) Os práticos vulgares (...) respeitam a experiência, mas desprezam a teoria e (...) carecem (...) de uma perspectiva de longo alcance, contentando-se com seus êxitos parciais e com fragmentos da verdade.” (MAO TSE TUNG. Cinco tesis filosóficas. Beijing: Ediciones en lenguas extranjeras, 1985, pp. 4-14)

Infelizmente, ao introjetar essas concepções pragmáticas, muitos lutadores sociais desprezam a “teoria” – vista como algo “abstrato” e supérfluo, para o que não dispõem de tempo – e caem no mais rasteiro “praticismo”, carentes de uma visão estratégica da luta. Incapazes de enxergar além dos aspectos fenomênicos, aparentes, secundários e fugazes da realidade, não alcançam penetrar na essência dos processos históricos nem captar as leis que os regem. Sua ação limita-se às demandas imediatas e pontuais. Seu ativismo “praticista” leva-os a uma ação fragmentada, estritamente sindical, juvenil, feminista, racial, comunitária, ecológica ou parlamentar, desligada de um projeto estratégico.

Não por acaso, Richard Rorty – “guru” do Pragmatismo atual – investe com tanto ódio contra a “Teoria”:

“Essa preferência por específicos compromissos concretos em prejuízo de amplas sínteses teóricas concordaria com a perspectiva pragmática de Dewey de que a teoria tem de ser encorajada somente quando é passível de facilitar a prática. (...) Teremos de conseguir passar por cima da esperança por algo que venha a ser o sucessor da teoria marxista, uma teoria geral da opressão que fornecerá um divisor de águas que nos levará a derrubar simultaneamente a injustiça econômica, racial e de gênero. Teremos de abandonar a idéia de ‘ideologia’(...) o fim do leninismo nos livrará, com sorte, da expectativa de qualquer coisa como socialismo científico, qualquer fonte similar de prognóstico teoricamente fundamentado. (...) teremos de arrancar de nosso vocabulário termos como ‘capitalismo’, ‘cultura burguesa’ (e até ‘socialismo’) (...) Não podemos mais usar o termo ‘capitalismo’ para indicar (...) a ‘fonte de toda injustiça contemporânea’ (...) como a Grande Coisa Má que explica a maior parte da miséria humana contemporânea. (...) o Welfare State capitalista é o melhor que podemos esperar.” (RORTY, Richard. Pragmatismo e política. São Paulo: Martins, 2005, pp. 99; 70; 66-67; 61-62; 48)

Evidentemente, a justa crítica à “subestimação da teoria” e ao “praticismo” não deve nos levar ao erro oposto do “teoricismo” e do “doutrinarismo”, desligados da vida e da luta, ou ao desprezo da “prática”, fonte de todo conhecimento (direto ou indireto) e critério de verdade. Pois, parafraseando Marx, não basta interpretar o mundo, é preciso transformá-lo.

“Imediatismo e possibilismo"- Renúncia ao futuro

O “imediatismo” manifesta-se na ação que busca obter vantagens imediatas, sem levar em conta as conseqüências futuras. O “pragmático” procura tirar proveito de cada oportunidade momentânea, sem preocupar-se com um projeto de longo prazo. Preocupa-se em apresentar resultados a curto-prazo – que atendam as demandas do “hoje”, da próxima eleição, da próxima campanha salarial ou luta reivindicativa – mesmo que à custa do futuro. Com horizontes limitados – por não priorizar um projeto estratégico – tende ao “seguidismo” e à linha do “menor esforço”.

Os “imediatistas” subordinam sua ação à chamada “opinião pública” e ao “senso comum” – que nada mais são do que a ideologia da classe dominante – e navegam ao “sabor dos ventos”. Fogem – como o “diabo da cruz” – das “bolas divididas”, das polêmicas difíceis, das batalhas “encardidas”. Evitam “nadar contra a corrente”. Seu critério de “verdade”, da “justeza do atuar”, são o êxito e o proveito imediatos.

Ao contrário “os comunistas combatem pelos interesses imediatos da classe operária, mas ao mesmo tempo defendem e representam, no movimento atual, o futuro do movimento.” (MARX, K e ENGELS, F. Obras Escolhidas, Vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, s/data, p. 46). Pois, o “nosso esforço atual visa ao grande objetivo do futuro e se perdermos de vista este grande objetivo não mais seremos comunistas.” (MAO TSE TUNG. Obras Escolhidas, Vol. 1. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1961, p. 268)

Berstein – pai do “socialismo reformista” – fundamenta sem meias palavras o abandono do objetivo final socialista, em troca de “conquistas palpáveis e imediatas”:

“(...) escrevi a sentença que diz que o movimento significa tudo para mim e que aquilo que usualmente se chama ‘objetivo final do socialismo’ nada representa; e é nesse mesmo sentido que hoje a escrevo de novo. (...) Nunca tive um excessivo interesse no futuro, para além de princípios gerais (...). Os meus pensamentos e esforços estão preocupados com os deveres do presente e do futuro próximo e só me ocupo com as perspectivas mais longínquas na medida em que me possam fornecer uma linha de conduta para a ação adequada agora. (...) Para mim o que geralmente se chama fins últimos do socialismo é nada, mas o movimento é tudo (...) um fim último é aqui considerado como sendo dispensável para os objetivos práticos (...) demonstrei muito pouco interesse pelos fins últimos”. (BERSTEIN, Eduard. Socialismo Evolucionário. Rio de Janeiro: ZAHAR Editores, 1964, pp. 13; 158)

O “possibilismo” – conceito surgido no seio do movimento socialista francês do século XIX, defendido por Benoît Malon, Paul Brousse e outros – é uma variante ainda mais pérfida do “imediatismo”, que propõe que a luta deve dar-se apenas no terreno do “possível”, entendido como aquilo que está ao nosso alcance, em cada momento. No mesmo diapasão, refuga qualquer combate em que não haja certeza de vitória. Isso significa nunca desafiar o status quo vigente e abdicar de qualquer transformação revolucionária.

O “possibilismo” é o oposto da “audácia revolucionária” – que não se confunde com o “aventureirismo”, nem com o desprezo pelo exame da correlação de forças –, sem a qual nenhuma transformação revolucionária é possível. Como afirmou Marx, “a história universal seria na verdade muito fácil de fazer-se se a luta fosse empreendida apenas em condições nas quais as possibilidades fossem infalivelmente favoráveis”. (MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 293).

Sem dúvida, nenhuma revolução socialista – na Rússia, China, Vietnam, Coreia ou Cuba, entre outras – teria ocorrido sem uma enorme “audácia revolucionária”, devido às dificílimas circunstâncias em que se deram. Da mesma forma, as epopéias da Coluna Prestes e da Guerrilha do Araguaia nunca teriam sido empreendidas.

O “possibilismo”, além de ser o mais estreito reformismo, significa a renúncia à revolução.

“Taticismo- o descolamento da estratégia

Todos nós sabemos da importância da “tática” e da grande amplitude que nela se necessita para fazer avançar a luta revolucionária nas condições mais adversas.

Porém, para os marxistas, a tática é parte da estratégia, à qual se subordina e à qual deve servir. A tática não trata da luta na sua totalidade, de seus objetivos últimos em cada etapa do processo revolucionário, o que é a tarefa da “estratégia”. Sua atenção está voltada para os diferentes episódios e embates parciais que têm lugar no processo global de luta. Usando uma terminologia militar, se a estratégia tem por objetivo vencer a guerra, à tática cabe determinar os caminhos, os meios, as formas e os métodos da luta em cada combate concreto. Por isso, as ações e os resultados táticos precisam ser avaliados não em si mesmos, não do ponto de vista dos seus efeitos imediatos, e sim em relação aos objetivos e às possibilidades estratégicas.

Como nos ensina Renato Rabelo:

“Do ponto de vista comunista (...), a política é justa quando a tática não se desliga da estratégia, quando a tática está em harmonia com o objetivo maior, estratégico. O sentido estratégico, a razão de ser do Partido Comunista, é superar os marcos da sociedade capitalista. (...) nossa tática é o meio de alcançar esse objetivo. (...) a tática se subordina à estratégia.” (RABELO, Renato. Idéias e Rumos. São Paulo: Editora Anita, 2009, p. 263)

Em muitas situações, as vitórias táticas contribuem para a realização das tarefas e dos objetivos estratégicos. Em outras circunstâncias os êxitos táticos – por mais brilhantes que sejam –, na medida em que não correspondem às possibilidades estratégicas, comprometem o conjunto da luta. Por fim, em certas situações é necessário abrir mão do êxito tático e aceitar conscientemente os reveses e as derrotas táticas, com o objetivo de obter vitórias estratégicas (e inclusive táticas) no futuro. Um exemplo clássico é a firme postura bolchevique contra a participação na 1ª Guerra Mundial – em um momento em que o sentimento “patriótico” russo estava exacerbado –, o que causou um momentâneo isolamento dos comunistas (insucesso tático), logo revertido pela adesão das amplas massas à luta bolchevique para terminar com a guerra e realizar a Revolução de Outubro (êxito estratégico). Da mesma forma, a assinatura da Paz de Brest Litovsk pela Rússia Soviética – cedendo territórios à Alemanha e pagando-lhe pesadas indenizações (derrota tática) – foi essencial para afiançar o poder proletário, consolidar a revolução e recuperar posteriormente esses territórios (vitória estratégica).

Lenin, em seu brilhante estudo da Comuna de Paris, afirma:

“Marx sabia apreciar, também, que na história há momentos em que a luta desesperada das massas, inclusive em defesa de uma causa condenada ao fracasso, é indispensável com o objetivo de que essas massas sigam aprendendo e preparando-se para a luta seguinte.(...) ‘Os canalhas burgueses de Versalhes – escreve Marx – puseram os parisienses diante de uma alternativa: aceitar o desafio ou entregar-se sem luta. A desmoralização da classe operária, nesse último caso, teria sido uma desgraça muito maior que o perecimento de qualquer número de líderes’.” (LENIN. La Comuna de Paris. Moscou: Editorial Progreso, 1982, pp. 20-21)
Assim, a tática não deve subordinar-se aos interesses parciais ou momentâneos, nem pode basear-se unicamente em uma análise dos efeitos políticos imediatos. Precisa ser elaborada tendo em vista as tarefas e as possibilidades da estratégia, visando o futuro do movimento.

O “taticismo” é exatamente a autonomização da tática e o seu “descolamento” da estratégia, à qual deveria servir. Em conseqüência, rebaixa a luta ao nível dos interesses parciais, momentâneos ou corporativos, que passam a falar mais alto que o objetivo estratégico da transformação socialista.
Os “pragmáticos” – para quem o único critério de “verdade” é o êxito em cada ação concreta –, são incapazes de “renúncias táticas” para assegurar vitórias estratégicas no futuro. Da mesma forma, nunca nadam “contra a corrente”, pois isso pode significar derrotas táticas provisórias, Já “os marxistas sabem sofrer os ‘fracassos’, aparentes e passageiros, e proclamar – para o maior bem da prática – a verdade científica. (...) O pragmatismo, ao contrário, está sempre do lado para onde os ventos sopram; não busca, assim, senão o êxito imediato.” (POLITZER, Georges. Princípios Fundamentais de Filosofia. São Paulo: HEMUS, s/data, p. 161).

E Mao Tse Tung nos afirma:

“Nas lutas sociais, as forças que representam a classe avançada às vezes sofrem revezes; mas isso não se deve a que suas idéias sejam incorretas, senão a que, na correlação de forças em luta as forças avançadas não são momentaneamente tão poderosas como as reacionárias. Portanto, fracassam temporariamente, mas hão de triunfar, mais cedo ou mais tarde.” (MAO TSE TUNG. Textos escogidos. Ciudad de México: Partido del Trabajo, 2015, p. 529)

O pragmatismo político eleitoral

John Dewey – em um texto de 1939 – deixa claro qual é para o “pragmatismo” a grande questão em jogo: “a idéia de que a moralidade deve ser (...) o supremo regulador dos deveres sociais, já não é tão amplamente alimentada como dantes. (...) no momento o candidato favorito, ideológico e psicológico, ao controle da atividade humana é o amor ao poder.” (DEWEY, John. Aplicações da Liberdade Humana. In: EDMAN, Irwin. John Dewey. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960, pp. 262-264).

Ou seja, a questão principal é a busca do Poder político em cada Estado e a conquista do Poder Mundial. Dentro da visão pragmática, a política, a luta pelo poder, são “justas”, “corretas”, “verdadeiras”, se forem capazes de levar à vitória, de alcançar o êxito. Esse objetivo deverá ser atingido a qualquer custo!

Na medida em que, nas ditas “democracias ocidentais”, a disputa pelo Poder se dá – em condições normais – através de processos eleitorais, a conquista do voto do eleitor será meta. Para alcançá-la, os diferentes partidos – com honrosas exceções – se curvarão ao “senso comum”, à chamada “opinião pública”, que nada mais é do que a ideologia dominante: “Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual.”
(MARX e ENGELS. A Ideologia Alemã – Vol. 1. Lisboa – Ed. Presença; Brasil - Martins Fontes: pp. 55-56). E João Amazonas complementa: “A burguesia não apenas detém o predomínio de sua ideologia, como domina os instrumentos de divulgação e defesa dessa ideologia.” (AMAZONAS, João. Os Desafios do Socialismo no Século XXI. São Paulo: Editora Anita, 1999, p. 68).

Assim, a chamada “opinião pública é, na verdade, construída e reforçada cotidianamente pelos meios de comunicação, dominados, quase que integralmente, pelo capital monopolista.

E o “pragmatismo eleitoral” se expressará, então, através de uma política orientada fundamentalmente pelas pesquisas de opinião – quantitativas e qualitativas – e pelos marketeiros, que se especializam em “adestrar” os candidatos para que digam aquilo que o eleitor “quer ouvir” ou se predispõe a acreditar.

Para os “pragmáticos”, as eleições nunca serão um espaço privilegiado para um grande confronto de idéias, onde as distintas classes ou camadas sociais apresentam suas propostas e disputam a preferência do eleitorado. Aqui, a performance (desempenho, principalmente visual) do candidato é mais importante que o conteúdo de suas idéias e propostas.

Referindo-se a isso, o sociólogo argentino Atílio Boron, em instigante texto, afirma:
“Uma descoberta decisiva (...) se produziu a partir do primeiro debate televisado, em 1960, entre John F. Kennedy e Richard Nixon. Este era o candidato oficialista, que até esse momento liderava as preferências. Porém, na eleição foi derrotado por uma estreita margem (aproximadamente 1%).

O que foi que descobriram os investigadores? Que quem escutou o debate pela radio afirmava que o vencedor havia sido Nixon, mas quem assistiu o debate pela TV, inclinou-se majoritariamente por JFK. A radio transmitia uma mensagem, a voz; a TV, a voz e a imagem, e esta resultou ser decisiva, porque Nixon saiu-se mal na televisão, aparecendo descuidado, com uma barba incipiente e suando, o que contrastava desfavoravelmente com o bom aspecto e juventude do seu adversário.

Refletindo sobre a ‘sociedade tele-dirigida, o politólogo italiano Giovanni Sartori escreveu (...): ‘Na televisão o fato de ver prevalece sobre o fato de falar. Em conseqüência, o telespectador é mais um animal vidente que um animal simbólico. Para ele as coisas representadas em imagens contam e pesam mais que as coisas ditas em palavras. E isso é uma mudança radical de direção, porque enquanto a capacidade simbólica distancia o homo sapiens do animal, o fato de ver o aproxima de suas capacidades ancestrais, ao gênero a que pertence à espécie do homo sapiens.’ Em outras palavras, a televisão nos faz retroceder na escala animal (...) produzindo um progressivo menosprezo de nossas faculdades de simbolização em favor das mais elementares de visualização.” (BORON, Atilio. Los medios y la batalla por la democracia en América Latina.
CIESPAL, Quito, 2015)

Assim, são desenvolvidas campanhas eleitorais cada vez mais parecidas e “pasteurizadas”, onde os temas tratados são aqueles impostos pelas pesquisas de opinião e de antemão conhecidos – como saúde, educação, segurança, corrupção –, onde os candidatos só diferem pela maior ou menor engenhosidade com que prometem resolver os problemas.

As questões estruturais e de fundo deixam de comparecer, submergidas nas aparências e nas conveniências. Os temas polêmicos e capazes de confrontar a ideologia dominante são deixados de lado e exorcisados, pois podem prejudicar a eleição. É dada preferência a candidaturas “redondas”, “sem arestas”, que abordem temas consensuais, distinguindo-se unicamente por alguma “proposta de efeito”. A forma prevalece sobre o conteúdo. O único que interessa é a conquista do maior número de postos eletivos, não importando se para isso as campanhas reforçam a ideologia burguesa dominante.

As inevitáveis e necessárias alianças eleitorais tornam ainda mais difícil evitar o “taticismo eleitoral”, e a perda de referências estratégicas e revolucionárias nos processos eleitorais.
Mesmo setores de esquerda se “rendem” à lógica “pragmática”. Passam-se os anos e – apesar de importantes avanços eleitorais do campo popular e democrático – constata-se “com espanto” o fortalecimento da ideologia e da hegemonia burguesa na sociedade. Fica evidente que o “pragmatismo político” não proporciona uma efetiva acumulação revolucionária de forças, contribuindo, ao contrário, para reforçar a hegemonia burguesa e afiançar a atual sociedade de classes.

Significa essa crítica ao “pragmatismo eleitoral” que negamos a necessidade de pesquisas de opinião, que nos informem acerca do estado de ânimo e das opiniões predominantes nas massas? Ou de nos apoiarmos em especialistas em política eleitoral, que dominem as modernas técnicas de comunicação e a psicologia das massas? Evidentemente que não.

Mas significa que o comando deve ser da “política” e não da “técnica”. Que o “conteúdo” tem de prevalecer sobre a “forma”. Que as propostas imediatas precisam estar articuladas com nossas bandeiras estratégicas. Que não podemos criar ilusões nas massas de que os seus problemas de fundo podem ser resolvidos sem profundas mudanças sociais. Que o socialismo é o nosso grande objetivo e como tal tem de ser propagandeado. Pois, “nunca, em nenhum momento, esse Partido se descuida de despertar nos operários uma consciência clara e nítida do violento antagonismo que existe entre a burguesia e o proletariado (...) Os comunistas não rebaixam a dissimular suas opiniões e seus fins.” (MARX, K e ENGELS, F. Obras Escolhidas, Vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, s/data, p. 46-47)

Conclusão

Não devemos subestimar a perniciosidade da filosofia pragmática, apesar de seu pequeno valor no “mercado de idéias” da Academia. Ela é a filosofia do “senso comum”, do homem que quer “ter vantagem em tudo”. Infiltra-se, insidiosa, em todos os poros da sociedade burguesa. Sequer os comunistas estamos imunes a ela.

Com propriedade, os diversos Congressos partidários têm alertado para os desvios “pragmáticos”, que se acentuam em tempos de defensiva estratégica:

“Nas condições de relativa defensiva do movimento operário e de intensa institucionalização da atividade política, crescem as tendências ao pragmatismo, que pode levar ao oportunismo, tanto pela direita quanto pela esquerda. Distanciando-se do debate teórico sobre os objetivos estratégicos (...) o militante começa a construir um projeto próprio, fruto de anseios pessoais, abandonando o projeto coletivo, às vezes aderindo a outros que lhe dão mais vantagens. (...) A rendição ao pragmatismo é o caminho para a liquidação da unidade do Partido e o rebaixamento do seu objetivo estratégico” (PCdoB. Documentos e Resoluções - 11º Congresso. São Paulo: Editora Anita, 2006, pp. 101; 29)

Tema que também foi tratado por nosso 12º Congresso, que chamou a atenção para os riscos do “pragmatismo, produto da luta política no nível atual, que leva a perder de vista objetivos fundamentais em prol do imediato, à pressão pela autonomização de grupos de interesse no interior do Partido, à perda de referenciais estratégicos na atuação no seio das instituições vigentes, à burocratização.” (PCdoB. Documentos e Resoluções - 12º Congresso. São Paulo: Editora Anita, 2010, p. 131)

Evidentemente, não temos a pretensão de haver esgotado o tema do “pragmatismo” nesse artigo. Esperamos, porém, ter despertado uma maior preocupação em relação a ele e em relação à necessidade da valorização do estudo teórico em todos os campos do conhecimento.