No
período mais recente, os marxistas têm chamado a atenção para a
importância que tem assumido a luta política institucional no
processo de acumulação de forças do campo de esquerda,
democrático e popular em toda a América Latina e no Brasil.
Isso nos
coloca a tarefa de melhor compreender essa frente de luta e a
preocupação de conduzi-la revolucionariamente, enfrentando o
pragmatismo eleitoral que cotidianamente assedia aqueles que se
dedicam a essa atividade, principalmente em tempos em que as
pesquisas de opinião e o marketing eleitoral (que captam
o senso comum e, portanto, a ideologia dominante) reinam quase
absolutos e orientam boa parte da ação política.
Nesse
sentido, nunca é demais voltar a velhas questões como a relação
entre luta revolucionária e luta reformista, lembrando que a
crítica ao “reformismo” não significa a negação da luta
reivindicativa e por reformas, que pode ser importante para
acumular forças, atrair amplas massas para a ação e permitir –
através de sua experiência prática – que elas tomem consciência
da necessidade das transformações estruturais. Mas, para isso é
imprescindível que nas lutas reivindicativas e pelas “reformas”
indiquemos permanentemente os seus limites e apontemos a
necessidade das transformações revolucionárias para solucionar
os problemas fundamentais do povo. Caso contrário, estaremos
caindo no mais rasteiro reformismo e ajudando a consolidar a
escravidão assalariada.
Da
correta compreensão dessa questão decorre também a adequada
postura do parlamentar de esquerda frente à disjuntiva de
centrar a sua atuação na “grande política” ou na “política
concreta”, “local”, “imediata” (seja ela municipal, estadual ou
nacional). Aqui, precisamos fugir da tentação de uma resposta
metafísica, do tipo “ou a grande política, ou a política
concreta”. Pois, se por um lado não podemos deixar de travar a
luta em torno dos grandes temas nacionais e internacionais, na
perspectiva das transformações futuras, que ainda não estão
colocadas na ordem do dia – sob pena do rebaixamento do nosso
mandato –, por outro lado temos de ter a capacidade de
proporcionar respostas concretas às questões do dia a dia das
amplas massas, que não podem esperar pelo futuro, para elas
ainda um tanto abstrato. Sem isso, nos tornaremos meros
“doutrinadores”, ao invés de lideranças reconhecidas do nosso
povo.
No mesmo
diapasão deve ser a nossa resposta à disjuntiva entre um mandato
com “marca definida”, centrado em uma ou mais “causas
concretas”, e um mandato “universalista”, “formador de opinião”.
Tampouco conseguimos ver uma contradição excludente entre essas
duas características indispensáveis a um mandato de esquerda.
Como pode um parlamentar de esquerda ser um mero “embandeirado”
de uma causa concreta – por mais relevante e benéfica
(eleitoralmente) que seja – como saúde, educação, esporte,
direitos das minorias, direitos dos trabalhadores etc. –, sem
cair no reformismo estreito caso ela não se articule com a luta
mais geral por um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento,
que supere o neoliberalismo e afirme um Brasil soberano,
democrático e mais justo? Propagando no dia a dia que esse
Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento é o caminho
brasileiro para o socialismo? Por outra parte, como criar bases
concretas – sociais e eleitorais – para o mandato se também não
o vincularmos a bandeiras palpáveis para as massas.
Os
grandes teóricos do socialismo científico já nos ensinaram que a
luta revolucionária precisa ser travada em três esferas
fundamentais: a luta teórica, a luta política e a luta econômica
(reivindicativa). Segundo afirmou Engels, em 1874, referindo-se
à luta do proletariado alemão,
“pela primeira vez desde
que existe o movimento operário, a luta se desenvolve em forma
metódica em suas três direções combinadas e relacionadas entre
si: teórica, política e econômico-prática (resistência aos
capitalistas). Nesse ataque concentrado, por assim dizer,
residem precisamente a força e a invencibilidade do movimento
alemão.”(1) Quase 30 anos depois, em 1902, Lenin
reafirmará a visão de Engels, destacando a importância da luta
teórica, tantas vezes subestimada pela esquerda:
“sem teoria revolucionária não pode haver também movimento
revolucionário. (...) Engels reconhece na grande luta da
socialdemocracia não duas formas (a política e a econômica) –
como se faz entre nós – mas três, colocando ao seu lado a luta
teórica.”(2) Questão igualmente acentuada por João
Amazonas, em 1991, em plena crise do socialismo:
“Das três
formas de luta de classes – econômica, política, teórica – a que
se referia Engels, precisamente a luta teórica ganha maior
dimensão nos dias de hoje.”(3)
Mantendo
certa analogia, os comunistas indicam, hoje, três frentes de
atuação: a frente de massas e das lutas sociais; a frente
político-institucional (abrangendo a atuação parlamentar); e a
frente da luta de idéias (lembro que nem toda “luta de idéias” é
“luta teórica”). Muitos que atuam na frente de massas fazem um
sinal de igualdade entre “lutas sociais” e “lutas econômicas
(reivindicativas)”, resvalando, assim, para o “economicismo”,
negligenciando a luta política e a luta teórica. Já no
parlamento, muitos reduzem a “luta político-institucional” à
atuação parlamentar e eleitoral, deixam em um segundo plano a
luta de idéias e negligenciam a relação de seu mandato com as
lutas sociais. (4) Por fim, entre aqueles que atuam na área
acadêmica e intelectual, muitas vezes prevalece o entendimento
de que só lhes cabe travar a luta de idéias, encastelados em
suas “torres de marfim”.
Todos acabam fragmentando a unidade indissolúvel dessas
três dimensões da luta de classes. Referindo-se a visão
parlamentar estreita, Lenin afirma:
“O partido do proletariado revolucionário
necessita participar no parlamentarismo burguês para ilustrar as
massas; e isso se consegue mediante as eleições e a luta dos
partidos no parlamento. Mas limitar a luta de classes à luta
dentro do parlamento, ou considerar que esta última é a forma
superior ou decisiva da luta e que todas as demais estão
subordinadas a ela, significa passar-se de fato para o lado da
burguesia, contra o proletariado.” (5)
Analisando mais detidamente a ação nos
parlamentos – objeto central deste artigo – é fundamental ter
presente que um parlamentar dispõe de instrumentos
poderosíssimos tanto para atuar junto aos movimentos sociais,
quanto para travar a luta de idéias (6) – seja desde a tribuna
do Parlamento, nos manifestações e mobilizações
de massas, no acesso aos grandes meios de comunicação
(entrevistas,
artigos, etc.) ou através de publicações que pode realizar e
difundir amplamente.
Lamentavelmente, reféns da grande mídia e
pressionados pelo “cálculo eleitoral”, muitas vezes nos
esquivamos de travar a luta teórica e o confronto de idéias
diante das questões mais “polêmicas” e “difíceis”, temerosos de
“remar contra a maré”. (7) Orientados pelas pesquisas de opinião
e pelo “marketing eleitoral”, evitamos entrar em “bolas
divididas”, preferindo os temas consensuais ou que têm respaldo
no senso comum – que nada mais é do que a ideologia da classe
dominante: “Os
pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas,
os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder
material dominante numa dada sociedade é também a potência
dominante espiritual.”
(8)
Da mesma forma, um parlamentar pode jogar um
papel fundamental junto aos movimentos sociais – sem
substituí-los ou tutelá-los –, intermediando negociações,
dissuadindo a repressão governamental, construindo soluções,
etc. A experiência nos mostra que um parlamentar vinculado às
lutas dos trabalhadores, estudantes, moradores da periferia,
mulheres, negros, pode contribuir enormemente para a elevação da
consciência política e para a organização do povo. Em
contrapartida, essa estreita vinculação às lutas sociais
fortalece enormemente o seu mandato.
Concluo essas rápidas observações sobre a atuação
de um parlamentar de esquerda respondendo afirmativamente à
pergunta inicial. Sim, é perfeitamente possível exercer um
mandato parlamentar revolucionário no capitalismo, sem resvalar
para o reformismo ou para uma atuação predominantemente
“eleitoreira”, que só reforçam a ideologia dominante (9).
Mas isso não é uma tarefa simples, pois a luta
parlamentar é travada em terreno “minado”, onde o inimigo tende
a ser hegemônico (10). Para consegui-lo, é necessário ousar
“remar contra a maré”, travar amplamente a luta de idéias –
incluída a luta teórica – sem abrir mãos dos princípios e sem
furtar-se de debater as questões polêmicas e difíceis; fazer
permanentemente a propaganda do nosso objetivo estratégico
socialista; perseverar no internacionalismo proletário e na
solidariedade internacional aos povos em luta; ombrear com os
movimentos sociais em suas batalhas mais encarniçadas; saber
ligar o concreto do dia a dia ao universal da luta
revolucionária; ter a capacidade de conectar os combates do “hoje”
ao “vir a ser” do futuro! Tarefa para marxistas!
Encerro com palavras de Lenin:
“A crítica – a mais violenta, implacável e
intransigente – não deve dirigir-se contra o parlamentarismo ou
a ação parlamentar, mas sim contra os chefes que não sabem (e,
ainda mais, contra os que não querem) utilizar as eleições
parlamentares e a tribuna do Parlamento de maneira
revolucionária, de maneira comunista.”
(11)
NOTAS
(1) ENGELS, F. Prefácio a Guerra Camponesa na
Alemanha. In: MARX E ENGELS. Obras escolhidas, Vol. 2.
Rio de Janeiro, Ed. Vitória, 1961, p. 204.
(2) LENINE, V.I. Que Fazer? In: LENINE
V.I. Obras Escolhidas, Vol. 1. São Paulo: Ed. Alfa-Omega,
1982, pp. 96-97.
(3) AMAZONAS, João. Defender e Desenvolver a
Teoria Marxista: Exigência da Época Atual. In: REVISTA
PRINCÍPIOS nº 20, São Paulo, Ed. Anita Garibaldi, 1991, p.39.
(4)
“O que nos importa não é assegurar por meio de negociatas um
lugar na Duma [parlamento czarista]. Ao contrário, estes lugares
só são importantes na medida em que possam contribuir para
desenvolver a consciência das massas, elevar o seu nível
político, organizá-las (...) em nome da luta (...) para
conquistar a plena libertação do trabalho de toda a exploração e
opressão. Só nesta medida são importantes para nós os postos na
Duma e toda a campanha eleitoral.” (LENIN, V.I. Qual é a
atitude dos partidos burgueses e do
Partido Operário frente às eleições para a Duma?.
In: Os
Comunistas e as Eleições. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi,
1982, p. 20)
(5) LENIN, V.I. As eleições à Assembleia
Constituinte e a ditadura do proletariado. Obras Escolhidas,
Vol. 10. Moscou: Ed. Progresso, 1977, p. 324-328.
(6)
“(...) a
participação nas eleições parlamentares e na luta desde a
tribuna parlamentar é obrigatória para o partido do proletariado
revolucionário, precisamente para educar os setores atrasados da
sua classe, precisamente para despertar e educar a massa rural
(...)” (LENIN, V.I. A doença infantil do “esquerdismo” no
comunismo. In: LENIN, V.I. Obras Escolhidas, Tomo 3.
Moscou: Ed. Progresso, 1961, p. 404)
(7) “Não queremos uma plataforma ‘para as
eleições’, mas eleições para aplicar a plataforma
social-democrata revolucionária! Assim vê as coisas o partido da
classe operária. Já utilizamos as eleições e continuaremos
utilizando-as até o fim com esse objetivo; utilizaremos
inclusive a Duma czarista mais reacionária para preconizar a
plataforma, a tática e o programa revolucionário do Partido”.
(LENIN, V.I. Às vésperas das eleições à
IV Duma.
In: LENIN, V.I. O Trabalho do Partido entre as
massas. Moscou: Ed. Progresso, 1981, p. 76.)
(8)
MARX e ENGELS.
A Ideologia Alemã – Vol. 1. Lisboa – Ed. Presença; Brasil
- Martins Fontes: pp. 55-56.
(9)
“Os
comunistas (...) devem aprender a criar um parlamentarismo novo,
não costumeiro, não oportunista, sem arrivismo. (...) que falem
ao povo com uma linguagem simples (e não muito parlamentar), não
corram por nada deste mundo atrás de uma “vaguinha” no
parlamento, senão que despertem em toda parte o pensamento,
arrastem as massas, cobrem da burguesia por suas palavras,
utilizem o aparato criado por ela, as eleições convocadas por
ela (...).” (LENIN, V.I. A doença infantil..., idem,
p.439.)
(10) “Os
marxistas devem saber que as condições do sistema
representativo, não só na nossa Duma ultra-reacionária, mas
inclusive no parlamento burguês mais ideal, há de criar sempre
uma disparidade artificial entre a força efetiva das diferentes
classes e o seu reflexo no órgão representativo.” (LENIN,
V.I. Juízo sobre o momento atual. In: LENIN, V.I. O
Trabalho do Partido..., idem, p. 55.)
(11) LENIN, V. I. La enfermedad infantil del “izquierdismo”
en el comunismo. In: LENIN, V.I. El trabajo del Partido
entre las masas. Moscou: Editorial Progreso, 1981, p. 116.