
				
				
				
				“Farrapo”. Esse nome, criado pelo desprezo, foi nobilitado pela 
				glória; a inevitável glória da justiça do Tempo transformou o 
				epíteto injurioso em título de suprema honra. Eram desgraçados, 
				sim, eram pobres, eram maltrapilhos, aqueles guerreiros que, 
				para não morrer de fome, contentavam-se com um bocado de carne 
				crua; acampavam e dormiam ao relento, com a face voltada para as 
				estrelas; não tinham dinheiro, nem uniforme e não podiam renovar 
				as botas e os ponchos que o pó das estradas, as balas, as 
				cutiladas, as chuvas estraçalhavam e apodreciam; – mas prezavam 
				o seu nome de “Farrapos” e tinham o orgulho da sua pobreza; – e 
				eram mais ricos assim, possuindo apenas o seu cavalo, a sua 
				garrucha, a sua lança e a sua bravura. Cenobitas da religião 
				cívica, anacoretas da guerra, vivendo no imenso e fúlgido 
				ascetério do “pampa” esses primeiros criadores da nossa 
				liberdade política não olhavam para si: olhavam para a estepe 
				infinita que os cercava, para o infinito céu que os cobria, – e 
				nesses dois infinitos viam dilatar-se, irradiar e vencer no ar 
				livre o seu grande ideal de justiça e de fraternidade. 
				(Olavo Bilac)
				
				
				
				Eu vi corpos de tropas mais numerosos, batalhas mais disputadas; 
				mas nunca vi, em nenhuma parte homens mais valentes, 
				nem cavalheiros mais brilhantes que os da bela cavalaria 
				rio-grandenses, em cuja fileiras aprendi a desprezar o perigo e 
				combater dignamente pela causa sagrada das nações. Quantas vezes 
				eu fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi 
				realizar por essa viril e destemida gente, que sustentou por 
				mais de nove anos contra um poderosos Império a mais encarniçada 
				e gloriosa luta [...]. Oh! quantas vezes tenho desejado nestes 
				campos italianos um só esquadrão de vossos centauros, avezados a 
				carregar uma massa de infantaria com o mesmo desembaraço como se 
				fosse uma ponta de gado! 
				(Giuseppe Garibaldi) 
				
				1. 
				Introdução
				
				Às 
				vezes, equivocadamente – por entendermos que o desenvolvimento 
				das sociedades humanas é regido por leis objetivas –, 
				consideramos que os processos históricos seguem um curso 
				inexorável e pré-determinado. Nada mais estranho ao marxismo, 
				que acentua o papel ativo dos homens na história e a existência 
				do próprio acaso no devir social.
				
				
				Assim, a prevalência do Estado monárquico, centralizador e 
				escravocrata no Brasil da primeira metade do século XIX, longe 
				de ser algo inevitável, se deu em uma acirrada disputa com 
				outros projetos sociais alternativos — mais abertos e 
				democráticos — que defendiam a república, a federação, o fim da 
				escravidão.
				
				
				Expressões maiores dessa disputa entre distintos caminhos para o 
				Brasil foram a Conjuração Baiana (1798); a Revolução Republicana 
				de Pernambuco (1817); a Confederação do Equador, em 
				Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí e Pará (1824); 
				a Cabanada, nos sertões de Pernambuco (1831-1836); 
				a Cabanagem, no Pará (1835-1837); 
				a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul (1835-1845); 
				a Sabinada, na Bahia (1837-1838); a Balaiada, 
				no Maranhão e Piauí (1838-1841); 
				as rebeliões liberais de São Paulo e Minas Gerais (1842); e a 
				Revolução Praieira, 
				em Pernambuco (1848-1849).
				
				A 
				maioria dessas rebeliões foi sufocada rapidamente. Só a 
				Revolução Farroupilha — na então província de São Pedro do Rio 
				Grande do Sul — conseguiu resistir por mais de nove anos ao 
				todo-poderoso Império Brasileiro, inclusive constituindo um 
				Estado republicano independente.
				
				O 
				Brasil do início do século XIX
				
				O 
				Brasil vivia a ascensão do café como o seu principal produto de 
				exportação. Os grandes proprietários escravistas do Vale do 
				Paraíba do Sul formavam a classe dominante do país. Quando 
				ocorreu a Independência, eles impuseram uma monarquia unitária e 
				centralizada, com o objetivo de subjugar as massas escravizadas 
				— para impedir um novo Haiti — e de submeter as demais 
				províncias aos seus interesses.
				
				No 
				Rio Grande do Sul, desenvolvia-se uma economia periférica, 
				subsidiária da economia central, tendo por base a pecuária 
				extensiva, voltada essencialmente à produção de charque para 
				alimentar a escravaria do país. Ali, o peso do centralismo 
				monárquico fazia-se sentir de diferentes maneiras. O presidente 
				da província era nomeado pelo Rio de Janeiro e governava em 
				função dos interesses da aristocracia cafeeira, o que 
				marginalizava econômica e politicamente a oligarquia gaúcha. Os 
				interesses expansionistas do Império transformavam a província — 
				a “fronteira viva” do país — em um permanente campo de batalha 
				com os vizinhos platinos, com graves prejuízos para a sua 
				economia.
				
				A 
				derrota do Exército Imperial na Guerra Cisplatina (1825-1828) 
				agravou essa insatisfação, seja pela devastação causada pela 
				guerra, seja pela perda definitiva do Uruguai, o que significou 
				o fim do acesso dos sul-rio-grandenses às pastagens e aos 
				rebanhos uruguaios. A isso, somaram-se a taxação de 25% sobre o 
				charque produzido na província — enquanto o charque platino 
				pagava apenas 4% para ingressar no Brasil — e os tributos sobre 
				pastagens, esporas, estribos e rum, que o Império impôs aos 
				sul-rio-grandenses.
				
				
				Assim, avolumaram-se as contradições entre os “gaúchos” e o 
				Império, o que se expressava em um difuso sentimento de 
				“opressão da província de São Pedro pelo Rio de Janeiro”. 
				Criou-se, assim, terreno fértil para que proliferassem as ideias 
				republicanas — predominantes na região do Prata —, combinadas 
				com aspirações federalistas. É o conjunto desses fatores que 
				causará o levante de 1835.
				
				2. 
				A eclosão da Revolução Farroupilha
				
				Em 20 
				de setembro de 1835, sob a direção de Bento Gonçalves, teve 
				início a Revolução Farroupilha, com a tomada de Porto Alegre 
				pelos revoltosos e a fuga do então presidente da província, 
				Fernandes Braga, para a cidade de Rio Grande, onde estabeleceu o 
				seu governo.
				
				
				Inicialmente, os farroupilhas limitaram-se a reivindicar a 
				substituição de Braga e um maior respeito aos 
				sul-rio-grandenses. Rapidamente a revolta se estendeu a toda a 
				província. Em fins de outubro, a maioria das municipalidades 
				havia reconhecido o governo revolucionário: “Senhor da 
				província, menos de Rio Grande e São José do Norte, Bento 
				Gonçalves esperava que o regente Diogo Antônio Feijó 
				transformasse o Brasil numa federação” (FLORES, 2002, p. 
				350-351).
				
				Para 
				pacificar a província, o Império nomeou o rio-grandense Araújo 
				Ribeiro como presidente e prometeu anistiar os revoltosos, mas a 
				Assembleia Provincial, onde os republicanos eram cada vez mais 
				ativos, adiou a sua posse e exigiu maior autonomia para a 
				província e soluções para os problemas econômicos:
				
				
				Achavam-se já os revolucionários subdivididos de fato e em três 
				grupos: o primeiro constituído dos que apenas visavam a 
				deposição de Fernandes Braga e que aceitavam como seu substituto 
				Araújo Ribeiro; o segundo, dos que, mesmo se opondo à posse 
				deste, não admitiam nem a república nem uma separação [...]; o 
				terceiro, de uma minoria ativista e extremada, que propugnava a 
				separação do governo da Regência numa república confederada 
				futura, com as demais províncias. [...] Bento Gonçalves ainda 
				procurava manter-se numa posição que lhe permitisse ficar entre 
				os do segundo e terceiro grupo [...; o] periódico Continente, 
				dos do citado terceiro grupo, abrira já suas baterias em prol da 
				república, declarando que [...] “quando o governo não preenche 
				suas obrigações e não promove a felicidade do povo, [... este] 
				tem o direito de o mudar, abolir, reformar como lhe convier e 
				organizar outro baseado em princípios que sejam mais conformes 
				às suas circunstâncias” [...,] o que de momento se impõe ao Rio 
				Grande do Sul, seguindo o modelo dos Estados Unidos 
				(WIEDERSPAHN, 1984, p. 93).
				
				
				Diante desses fatos, Araújo Ribeiro decidiu estabelecer o seu 
				governo em Rio Grande, cidade que, junto com São José do Norte, 
				estava nas mãos dos imperiais. Com o apoio de Bento Manuel, que 
				se passou para os imperiais, e reforços do Rio de Janeiro, os 
				legalistas passaram a dominar as águas interiores, com a ajuda 
				da esquadra do inglês John Grenfell, além de retomaram Porto 
				Alegre.
				
				3. 
				A proclamação da República Rio-Grandense
				
				
				Apesar de não haver unanimidade entre os farroupilhas quanto à 
				república e à separação do Império, a perda de Porto Alegre, a 
				prisão do governo revolucionário e revezes militares dos 
				farrapos precipitaram a proclamação da República Rio-Grandense, 
				para manter acesa a chama revolucionária:
				
				
				Compreendendo a gravidade da situação e sem notícias pessoais de 
				Bento Gonçalves, resolveram o major João Manuel de Lima e Silva 
				e Domingos José de Almeida assumir a iniciativa por conta 
				própria, enviando emissários para induzirem ao coronel Antônio 
				de Sousa Neto a proclamar imediatamente a república, tão logo se 
				apresentasse uma oportunidade adequada. Foram esses emissários 
				dois dos que haviam aceito a solução proposta nas reuniões de 
				Pelotas, os tenentes-coronéis Joaquim Pedro Soares e Manuel 
				Lucas de Oliveira, amigos e companheiros de fileiras de Sousa 
				Netto, a cujas argumentações este acabou anuindo. (WIEDERSPAHN, 
				1984, p. 113-114)
				
				
				Aproveitando a importante vitória farrapa na Batalha de Seival
				
				– 
				onde os imperiais foram desbaratados –, Antônio Sousa Neto 
				proclamou, em 11 de setembro de 1836, a república e a separação 
				do Império:
				
				“os 
				rio-grandenses estão dispostos, como nós, a não sofrer por mais 
				tempo a prepotência de um governo tirânico, arbitrário e cruel, 
				como o atual. Em todos os ângulos da província não soa outro eco 
				que o de independência, república, liberdade ou morte. 
				[...] Nós que compomos a 1ª Brigada do Exército Liberal devemos 
				ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência 
				desta província, a qual fica desligada das demais do Império e 
				forma um Estado livre e independente, com o título de República 
				Rio-Grandense [...]. Viva a República Rio-Grandense! Viva a 
				independência! Viva o Exército republicano rio-grandense!” 
				(SOUSA NETO apud FAGUNDES, 1989, p. 154)
				
				Em 20 
				de setembro, a Câmara de Jaguarão aprovou a “deliberação da 
				maioria da Província, respeito a ficar desligada da família 
				brasileira, e instituindo um governo republicano, e sendo 
				aprovada com unânime aplauso de toda a Câmara esta nova 
				instituição” (FAGUNDES, 1989, p. 155).
				
				Em 4 
				de outubro, Bento Gonçalves – cercado por Bento Manuel e pela 
				esquadra de Grenfell, na ilha do Fanfa – rendeu-se e foi mandado 
				preso para a Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, 
				descumprindo-se os termos da rendição. Após, ficou preso no 
				Forte do Mar, em Salvador.
				
				Em 
				novembro, a Câmara de Piratini referendou a proclamação da 
				República:
				
				O 
				grande ato coletivo [...] que daria caráter definitivo à 
				República [...] foi marcado para a sessão da Câmara Municipal do 
				dia 5 de novembro, em Piratini [...]. Abrindo a sessão, o 
				presidente declarou que o seu motivo era “a necessidade de 
				proclamar-se a independência política, [...] declarar a 
				província desligada da obediência que devia ao governo do Brasil 
				e elevá-la â categoria de Estado livre, constitucional e 
				independente, [...] podendo ligar-se por laços de federação 
				àquelas províncias do Brasil que adotarem o mesmo sistema de 
				governo e quiserem se federar a este Estado” (FAGUNDES, 1989, p. 
				189).
				
				Em 6 
				de novembro, foi instalado em Piratini o governo republicano, e 
				Bento Gonçalves foi eleito presidente, com quatro 
				vice-presidentes. Como Bento Gonçalves estava preso, José Gomes 
				de Vasconcelos Jardim assumiu a Presidência interina. O mineiro 
				Domingos José de Almeida foi nomeado ministro do Interior (e 
				interinamente da Fazenda); o carioca José Mariano de Mattos, 
				ministro da Guerra (e interinamente da Marinha); o mineiro José 
				Pinheiro de Ulhoa Cintra, ministro da Justiça (e interinamente 
				de Relações Exteriores). O carioca João Manoel de Lima e Silva — 
				tio do futuro duque de Caxias — foi promovido a general e 
				comandante do Exército farroupilha. Dias depois, Bento Gonçalves 
				também foi promovido a general. Em abril de 1837, Antônio Neto — 
				também promovido a general — assumiu o comando do Exército 
				farrapo, devido a ferimentos de João Manuel. Calvet Fagundes 
				observa:
				
				Dos 
				três ministros nenhum é gaúcho: dois são mineiros, e o outro, 
				carioca. E o primeiro general nomeado não foi o líder inconteste 
				do movimento, mas o carioca João Manuel. Dos quatro 
				vice-presidentes, dois apenas são gaúchos. Penso, por isso, que 
				a Revolução Farroupilha foi, na verdade, uma revolução nacional, 
				dentro de uma província (FAGUNDES, 1989, p. 191-192).
				
				Após 
				alguns revezes, os farrapos retomaram a iniciativa e — com base 
				na guerra de movimentos — dominaram quase toda a província. Dos 
				14 municípios, os imperiais só controlavam Porto Alegre, Rio 
				Grande e São José do Norte. O trânsfuga Bento Manuel 
				lamentou-se: “Parece-me que cada capim é um republicano”. 
				Segundo Calvet Fagundes, “a revolução, neste primeiro quartel 
				de 1837, havia atingido a sua segunda fase – a de insurreição 
				popular, deixando de pertencer, como até aqui, apenas aos 
				‘coronéis’ fazendeiros e oficiais superiores da tropa regular.” 
				(FAGUNDES, 1989, p. 200)
				
				É 
				nesse contexto que, em 10 de setembro de 1837, aconteceu a fuga 
				de Bento Gonçalves do Forte do Mar — com a ajuda dos maçons e 
				dos “sabinos” baianos —, e ele retornou ao Rio Grande do Sul, 
				assumindo a Presidência da República e o comando do Exército 
				farroupilha.
				
				Em 
				abril de 1838, em uma importante vitória, três mil farroupilhas 
				retomaram Rio Pardo – que fora ocupada pelos imperiais – e 
				derrotaram os 1.700 legalistas que lá estavam, protegidos pela 
				esquadrilha de canhoneiras de Grenfell. Com a vitória, os 
				revolucionários se assenhoraram de 8 peças de artilharia, 1.000 
				armas de infantaria, 8.000 cartuchos, víveres e valores da 
				pagadoria imperial. Entre mortos e feridos, os legalistas 
				perderam 300 homens e tiveram 700 prisioneiros. O resto fugiu 
				rio abaixo, na esquadrilha de Grenfell. Os farroupilhas tiveram 
				200 baixas, entre mortos e feridos e ficaram donos de Rio Pardo.
				
				Em 29 
				de agosto de 1838, Bento Gonçalves e Domingos José de Almeida 
				lançaram o “Manifesto do presidente da República Rio-Grandense 
				em nome de seus constituintes”, que é o documento que melhor 
				esclarece os motivos da República Rio-Grandense:
				
				Há 
				muito desenvolvia o governo imperial uma parcialidade imérita, 
				um desprezo insolente e revoltante a respeito da nossa província 
				[...]. Agressor ou agredido, o governo nos fazia sempre marchar 
				à sua frente: disparávamos o primeiro tiro de canhão e éramos o 
				último a recebê-lo [...;] transformou-se o Rio Grande numa 
				estalagem do Império [...;] o arbítrio nos tirava com violência 
				em gado vacum e cavalar e em exigências de todo gênero mil vezes 
				mais do que cumpria quotizar-nos proporcionalmente [...;] O 
				governo imperial [...] esmagou a nossa principal indústria 
				[...]. A carne, o couro, o sebo, a graxa, além de pagarem nas 
				alfândegas o duplo do dízimo de que se propuseram aliviar-nos, 
				exibiam mais quinze por cento em qualquer dos portos do Império 
				[...;] nos puseram desde esse momento na linha dos povos 
				estrangeiros; desnacionalizaram a nossa província e de fato a 
				separaram da comunhão brasileira. Pagávamos todavia oitenta réis 
				do dízimo do couro e mais vinte por cento sobre o preço 
				corrente, nós que já íamos vencidos na venda desses gêneros pela 
				concorrência dos nossos vizinhos [...]. Era o Rio Grande uma 
				província de primeira ordem se se tratava de concorrer para as 
				despesas gerais, entrava quase na última quanto à sua 
				representação no Congresso Geral [...;] leis insensatas e 
				atrozes [...]. Tal era a lei da criação de um corpo policial 
				[...] organizado, disciplinado e comandado ad libitum do 
				presidente. Tal era a outra que estabeleceu o imposto de dez mil 
				réis sobre légua quadrada de campo e criou os direitos sobre os 
				chapeados, as esporas e estribos dos nossos cavaleiros [...;] um 
				único meio se oferecia à nossa salvação [...:] a nossa 
				independência política e o sistema republicano [...;] os 
				rio-grandenses, reunidos às suas municipalidades, solenemente 
				proclamaram e juraram a sua independência política, debaixo dos 
				auspícios do sistema republicano, dispostos todavia a 
				federarem-se, quando nisso se acorde, às províncias irmãs que 
				venham a adotar o mesmo sistema (GONÇALVES; ALMEIDA apud SILVA, 
				1985, p. 282-290).
				
				Em 
				1838, o republicano italiano Giuseppe Garibaldi pôs-se a serviço 
				da República Rio-Grandense e organizou a Marinha farroupilha na 
				Lagoa dos Patos, onde passou a atacar os barcos que navegavam 
				entre Rio Grande e Porto Alegre, desafiando o domínio imperial 
				nas águas interiores. Seu companheiro Luigi Rossetti passou a 
				editar em Piratini, junto com Domingos José de Almeida, o jornal
				O Povo — órgão do governo da República Rio-Grandense —, 
				que entre 1838 e 1840 publicou 160 números.
				
				No 
				seu número 3, O Povo conclamou os brasileiros a lutar 
				pela República:
				
				O 
				Império desaparece. A República vai ganhando o terreno que ele 
				perde. E então o melhor é lhe dar o golpe mortal e salvar a 
				nação. O povo brasileiro [...] está a par de seu século. O 
				século é revolucionário e republicano [...;] requer uma 
				liberdade mais vasta, aquela liberdade republicana. [...] 
				Preconizai a República; inspirai no povo [...] as doutrinas 
				democráticas que vão invadindo o mundo intelectual e deixai 
				sumir o Império (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE, 1838, p. 4).
				
				No 
				ano de 1839, Garibaldi protagonizou uma verdadeira epopeia, ao 
				atacar Laguna por mar, contribuindo à proclamação da República 
				Catarinense. Como os imperiais dominavam a saída da Lagoa dos 
				Patos para o mar, na barra de Rio Grande, Garibaldi decidiu 
				transportar os seus navios por terra, até Tramandaí, no litoral 
				norte do Rio Grande do Sul. Os barcos foram transportados por 
				mais de 80 km, em enormes carretas, cada uma puxada por uma 
				centena de bois. Após seis dias de viajem, os navios chegaram à 
				Tramandaí, onde ganharam o mar.
				
				Em 10 
				de fevereiro de 1840, Bento Gonçalves convocou a Assembleia 
				Constituinte e Legislativa, para elaborar a Constituição da 
				República. As eleições ocorreram em março de 1840 e nela votaram 
				3.680 eleitores de Caçapava do Sul, Alegrete, Jaguarão, 
				Piratini, Triunfo, Cachoeira do Sul, Cruz Alta, São Borja e 
				Lages. Os votos não puderam ser apurados em seguida, pois 
				Caçapava, sede da República, foi atacada e precisou ser 
				evacuada. Só em 1º de dezembro de 1842 os deputados 
				constituintes conseguiram reunir-se, em Alegrete.
				
				4. 
				Separatismo ou republicanismo?
				
				Uma 
				das maiores polêmicas sobre a Revolução Farroupilha é a 
				determinação do seu caráter: separatista ou republicano. Entendo 
				que ela foi uma luta essencialmente republicana e federalista, 
				contra a monarquia centralista existente no Brasil. Inclusive, 
				os farrapos propunham a união com as demais províncias 
				brasileiras, em uma confederação de repúblicas. O seu 
				“separatismo” foi algo conjuntural. Isso não significa, porém, 
				ignorar que nem todos os farroupilhas eram republicanos e que 
				existiam sérias contradições entre eles.
				
				Desde 
				o início, os farrapos mantiveram articulação com as demais 
				revoltas republicanas e liberais e conclamaram os brasileiros a 
				se insurgirem contra o Império, para derrotar a monarquia e 
				adotar o sistema federativo: “A jovem república proclamou o 
				desejo de se unir às outras províncias por laços federativos, 
				proclamação que também foi feita por outras municipalidades que 
				aderiram ao levante — Alegrete (24/6/1837), Cruz Alta (1/8/1837) 
				e Caçapava (3/3/1839)” (LOPEZ, 1992, p. 40).
				
				Em 
				janeiro de 1839, O Povo propôs a formação de uma 
				confederação de repúblicas brasileiras:
				
				Onde 
				estão os pernambucanos de 1824? Onde, os fluminenses de 1831? 
				Que fazem os baianos de 1837? Que fazem esses paulistas 
				orgulhosos de suas descobertas? Os paraenses, os sergipanos e os 
				cearenses, os de Mato Grosso, os alagoanos ardentes? [...] 
				Acreditais por acaso que aqui se combate puramente por nós? Ah! 
				Que vos enganais, se fôssemos vencidos, que seria de vós, 
				brasileiros de todas as províncias do Império [...]? A república 
				é a tábua de salvação do Brasil; só ela pode assegurar à vossa 
				posteridade o gozo de seus direitos e dos imensos produtos de 
				nosso território. [...] Uni-vos a nós. A confederação das 
				repúblicas brasileiras é altamente reclamada pelas 
				circunstâncias do país, pelas exigências da América, pelos 
				interesses do mundo em geral (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE 1839a, p. 
				2-3).
				
				Após 
				Lages declarar-se favorável à revolução e pedir o apoio da 
				República Rio-Grandense, os farroupilhas avançaram por terra e 
				mar para a província de Santa Catarina e, junto com os 
				republicanos catarinenses, tomaram Laguna, proclamando em julho 
				de 1839 a República Catarinense. Joaquim Teixeira Nunes, 
				comandante dos Lanceiros Negros, afirmou: “Proclamando a 
				independência do vosso país, não penseis que nisso afetais os 
				interesses do Brasil, do solo sagrado dos brasileiros; pois que 
				a República Rio-Grandense [...] nada tem tanto a peito quanto a 
				federação dos Estados seus irmãos.” (NUNES apud FAGUNDES, 
				1989, p. 260) E o General Antônio Neto complementou: “Que 
				resta, pois, ao Brasil? [...] o reconhecimento da independência 
				rio-grandense – ou melhor, a federação das províncias, única 
				maneira de manter um centro de união no malfadado Império de 
				Santa Cruz”. (NETO apud FAGUNDES, 1989, p. 260)
				
				
				Referindo-se à recém criada República Catarinense, o jornal 
				O Povo 
				deixou claro que não ser intenção dos farrapos integrá-la à 
				República Rio-Grandense, e sim de estabelecer uma aliança entre 
				elas, para formar uma confederação de repúblicas:
				
				
				Anunciamos aos nossos leitores a chegada nesta capital [... do] 
				enviado extraordinário do governo catarinense [...] encarregado 
				da celebração do tratado que servirá de base à Confederação 
				Brasileira [...]. Das bases dessa aliança pendem os destinos do 
				Brasil, visto que, como pensamos, ela de tal forma deve enlaçar 
				os interesses das diversas províncias do agonizante Império que, 
				ao separarem-se daquela associação ominosa, encontrem não só 
				vigoroso apoio, como ainda um religioso respeito às garantias e 
				aos direitos a cada uma peculiares (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE, 
				1839d, p. 1).
				
				Em 
				seu manifesto de 24 abril de 1840, dirigido aos “brasileiros”, 
				Bento Gonçalves conclamou as demais províncias a se levantarem 
				contra o governo Imperial e deixou claro que a luta dos 
				rio-grandenses era a mesma luta das demais províncias
				
				
				Brasileiros que iludidos defendeis a causa do Império! [...] 
				Proclamastes a vossa independência política e ainda hoje gemeis 
				curvados sob o jugo abominável de vossos senhores, sob o 
				predomínio de lusitanos [...] mostrai ao mundo que ainda pulsa 
				em vossos peitos o fogo elétrico do patriotismo, que ainda sois 
				os mesmos que derramastes há pouco vosso sangue em defesa da 
				malfadada Bahia e do Pará [clara referência à Sabinada e à 
				Cabanagem] [...]. Não hesiteis; a sorte dos baianos e dos 
				paraenses acha-se identificada com a nossa própria sorte; sereis 
				tratados e recebidos como qualquer de nós. (SILVA, 1985, p. 292)
				
				Da 
				mesma forma, em 13 de julho de 1842, Bento Gonçalves saudou a 
				Revolta Liberal de São Paulo e convoco os rio-grandenses a 
				persistirem na luta para libertar todo o Brasil:
				
				
				Rio-grandenses! Raiou a aurora de vossa felicidade! [...] os 
				briosos paulistas, em defesa de sua Pátria, começaram a guerra 
				contra o tirano do Brasil! Já as falanges paulistanas marcham 
				sobre o inimigo comum, já os satélites da escravidão têm 
				recebido sobre suas criminosas cabeças o afiado gume das espadas 
				dos livres [...] O Brasil em massa se levanta como um só homem 
				para sacudir o férreo jugo do segundo Pedro. É o momento de 
				mostrardes ao mundo que sois rio-grandenses. [...] e não só 
				salvareis a Pátria como sereis os libertadores do Brasil 
				inteiro. Viva a liberdade! Vivam os rio-grandenses! Vivam nossos 
				irmãos paulistas! (SILVA, 1985, p. 294)
				
				Em 11 
				de março de 1843, Bento Gonçalves voltou a defender uma 
				República Federal que reunisse todas as províncias que adotassem 
				o regime republicano:
				
				A 
				causa que defendemos não é só nossa, ela é igualmente a causa de 
				todo o Brasil [...]. Uma 
				república federal baseada em sólidos princípios de justiça e 
				recíproca conveniência uniria hoje todas as províncias irmãs, 
				tornando mais forte e respeitável a nação brasileira [...;] 
				enquanto subsistir entre vós a monarquia, não gozareis as 
				doçuras da paz nem sereis felizes; quebrai, ainda é tempo, os 
				grilhões desonrosos que roxeiam vossos pulsos e vinde conosco 
				sustentar nos campos do sul [...] a paz, a felicidade e o 
				esplendor da nação brasileira (SILVA, 1985, p. 295).
				
				É 
				importante referir, ainda, a destacada participação na luta 
				farroupilha dos republicanos italianos Tito Livio Zambeccari — 
				secretário particular de Bento Gonçalves —, Luigi Rossetti — 
				editor do jornal O Povo — e Giuseppe Garibaldi — 
				comandante da Marinha farroupilha.
				
				Outra 
				evidência de que a luta não tinha caráter puramente 
				“regionalista” é que importantes líderes farrapos provinham de 
				outras províncias, como os cariocas João Manuel de Lima e Silva 
				— o primeiro general farroupilha — e José Mariano de Mattos — 
				presidente da República Rio-Grandense por dois anos e duas vezes 
				ministro da Guerra e da Marinha. Assim como os mineiros Domingos 
				José de Almeida — ministro do Tesouro — e José Pinheiro Ulhoa 
				Cintra — ministro da Justiça e ministro da Guerra e da Marinha.
				
				5. 
				A participação de negros, índios, mestiços e brancos pobres na 
				luta farroupilha
				
				Desde 
				o início, a Revolução Farroupilha teve forte participação de 
				negros, índios, mestiços e brancos pobres. Os próprios imperiais 
				informam – logo após o início da rebelião – que “a força dos 
				revoltosos que se apresentaram próximo à Azenha e que depois 
				entraram na Cidade de Porto Alegre, não excedia de 80 a 90 
				pessoas, índios, negros e mulatos, a maior parte armados de 
				lanças.” (AHRGS, 1985, p.131).
				
				E, no 
				dia em que começou a revolta, o Dr. Hillebrand, líder dos 
				colonos alemães de São Leopoldo afirmou: "passo a comunicar 
				aos meus patrícios alemães que um partido, pela maior parte 
				composto de negros e índios, está ameaçando as autoridades desta 
				Província." (BENTO, 1976, p. 172).
				
				Em 12 
				de setembro de 1836, João Manuel de Lima e Silva tomou Pelotas e 
				libertou centenas de escravos, “criando em Pelotas [...] o 
				famoso 1º Corpo de Lanceiros de Primeira Linha farroupilha, num 
				desafio frontal à política escravocrata do Império, pois 
				declarara para sempre livres os que assentassem praça na mesma 
				como voluntários” (WIEDERSPAHN, 1984, p. 115). Spencer Leitman 
				acrescenta:
				
				
				Terminada a batalha, os farrapos armaram cerca de 400 escravos 
				que haviam caído em suas mãos, pois sentiam a necessidade de 
				aumentar seu Exército, e teriam libertado a todos se os 
				charqueadores não tivessem fugido para Rio Grande levando os que 
				com eles tinham ficado. [...] João Manuel foi o principal 
				promotor do alistamento dos libertos, mestiços errantes e 
				escravos no Exército republicano que estava se formando. Alguns 
				meses antes de sua vitória em Pelotas, ele havia organizado 
				alforriados numa unidade de infantaria (LEITMAN, 1985, p. 64).
				
				
				Contestando críticas a essa sua decisão, João Manuel destacou a 
				bravura dos negros e sua disciplina militar, já demonstradas na 
				Bahia durante a Guerra de Independência e em Pernambuco em 1824. 
				Em correspondência a Domingos José de Almeida, Ministro do 
				Tesouro dos farrapos, João Manuel defendeu sua decisão, 
				argumentando que os libertos haviam passado airosamente pelo 
				teste das batalhas, combatendo ao lado de orgulhosos veteranos 
				nas Campanhas Cisplatinas e no glorioso 12 de setembro, salvando 
				a “honra do exército”, em um recente combate entre farrapos e 
				legalistas.
				
				
				O Corpo de Lanceiros Negros era formado por negros livres ou 
				alforriados pela República — com a condição de lutarem pela 
				causa republicana — e ex-escravos dos imperiais. Em sua grande 
				maioria, foram recrutados entre os negros campeiros e domadores 
				das serras de Tapes e do Herval – municípios de Canguçu, 
				Piratini, Caçapava, Encruzilhada, Arroio Grande. 
				De
				
				
				início, os Lanceiros Negros foram comandados pelo Tenente 
				Coronel Joaquim Pedro Soares, 
				depois,
				pelo Major Joaquim Teixeira Nunes. 
				Demonstrando sua importância, em 
				9 
				de novembro de 
				
				1837, o general-em-chefe do Exército 
				farroupilha, 
				Antônio de Sousa Neto, 
				
				expediu ofício 
				
				elogiando o Major 
				Joaquim Teixeira Nunes e 
				os 
				seus 
				“bravos 
				lanceiros libertos”, 
				pela vitória em 31 
				de outubro de1837 
				(FLORES, 2004, p. 50). 
				
				Verdadeira “tropa 
				de choque”
				do exército farroupilha, os Lanceiros 
				Negros jogaram importante papel na
				
				
				expedição a Laguna e na 
				
				constituição 
				
				da República Catarinense.
				
				
				O historiador imperial Tristão de Alencar Araripe, crítico feroz 
				dos farrapos, afirmou:
				
				agora 
				a República adicionava essa força permanente, organizando o 
				batalhão, que denominou de lanceiros, composto dos escravos, que 
				por violência os rebeldes arrebatavam das estâncias dos 
				legalistas, ou que voluntariamente procuravam os estandartes da 
				rebeldia, convidados pela esperança da libertação, ou que 
				compravam aos possuidores amigos do governo republicano. De três 
				fontes, pois, provinham os escravos alistados no Exército 
				rebelde: extorsão aos adversários, convenção com amigos, convite 
				ao oprimido! Foi o primeiro meio que trouxe às armas da rebeldia 
				o maior número de escravos. 
				[...] a província do Rio Grande do Sul não possuía escravos em 
				número avultado; do contrário, na escravidão achariam os 
				rebeldes poderoso auxilio para manter a causa que eles 
				denominavam da liberdade (ARARIPE, 1986, p. 49-50).
				
				
				Araripe percebeu com acuidade o importante papel que os negros 
				libertos jogavam na luta dos farrapos, pois “proclamando a 
				liberdade dos escravos que viessem defender a liberdade dos 
				republicanos, as vítimas da opressão social afluíram e puderam 
				os generais da república ter um certo número de homens que 
				formavam a base da sua força militar”. Ao mesmo tempo, 
				celebrou que o Rio Grande do Sul não tivesse uma numerosa 
				escravaria pois, senão “teria a rebeldia encontrado possante 
				milícia para a sua obra separatista; e muito provavelmente a 
				separação teria se consumado”. (ARARIPE, 1986, p. 86-87). 
				Prossegue Araripe: “proclamando a liberdade dos escravos que 
				viessem defender a liberdade dos republicanos, as vítimas da 
				opressão social afluíram e puderam os generais da República ter 
				um certo número de homens que formavam a base da sua força 
				militar” (ARARIPE, 1986, p. 86).
				
				
				Spencer Leitman complementa: “Quando a guerra terminou, os 
				farrapos tinham duas divisões de negros em suas fileiras, uma de 
				infantaria e outra de cavalaria, totalizando mil homens. De 
				acordo com os cálculos do Exército imperial, os negros compunham 
				de um terço à metade do Exército rebelde” (LEITMAN, 1985, p. 
				65). Ele também chama a atenção para a participação de outros 
				segmentos excluídos na luta farroupilha:
				
				Além 
				dos escravos, outros grupos de párias sociais preencheram as 
				brechas do Exército dos farrapos. Eles vinham em busca de 
				aventura e de fortuna [...]. Não raro, porém, eram indivíduos 
				que apoiavam a formação de um Estado republicano federado. 
				Gaúchos, índios, negros livres e escravos fugidos do Uruguai, 
				onde estavam sujeitos às práticas de recrutamento forçado dos 
				coronéis uruguaios e brasileiros, que ali operavam com o 
				objetivo de abrir uma segunda frente contra os rebeldes 
				(LEITMAN, 1985, p. 68).
				
				Em 
				nota de rodapé, LEITMAN esclarece que os negros farrapos atuavam 
				“em vários setores da economia rebelde como tropeiros, 
				mensageiros e trabalhadores de manutenção geral [...,] em 
				tarefas como fabricação de pólvora, cultivo de fumo e erva mate 
				que o governo havia implantado” (LEITMAN, 1985, p. 69).
				
				E 
				Júlio Chiavenato reforça: 
				
				era fácil 
				recrutar escravos, pois eles até esperavam a chegada dos 
				farrapos para entrar num Exército que os 
				“libertaria”. 
				Lutar ao lado dos farroupilhas era uma oportunidade concreta de 
				liberdade para os escravos. Não faltavam negros que fugiam dos 
				seus senhores no Uruguai para engrossar as forças gaúchas 
				(CHIAVENATO, 1988, p. 51).
				
				É 
				reveladora a carta do dono de um escravo fugido que – em 
				processo datado de 1837 – acusou a um velho que lhe havia dado 
				refúgio: “Este coito e apoio dado pelo tal velho, em 
				companhia d'outros mulatos também do seu oficio, em mistura com 
				as danadas e perniciosas máximas espalhadas com a detestável 
				Revolução, penetraram não só em muitos brancos, mas na classe 
				mista forros e escravos, que desde logo se julgaram libertos!” 
				(MOTTA, 1985, p. 132).
				
				A 
				historiadora Margaret Bakos nos relata que as instruções de 
				alistamento e recrutamento da Secretaria de Negócios de Guerra 
				do Governo Republicano de 1837, determinavam que a seleção dos 
				candidatos devia ser feita tendo por base a sua boa conduta, 
				robustez, patriotismo e adesão à causa republicana. Eram 
				recrutados solteiros, entre 18 e 35 anos, brancos, pardos, 
				índios e pretos libertos. Um cidadão podia eximir-se de servir 
				na guerra oferecendo um escravo negro, com carta de alforria, 
				para lutar no seu lugar. Muitas pessoas testemunharam, após o 
				conflito, que os farroupilhas incentivavam a insurreição dos 
				escravos negros, com o objetivo de incorporá-los às fileiras 
				revolucionárias:
				
				Agostinho 
				José de Menezes denunciou o fato em Pelotas, onde, segundo ele, 
				cerca de [sic]
				304 
				escravos negros foram desviados de seus proprietários pelos 
				farrapos em troca de promessas de liberdade. [...] Azevedo e 
				Souza relata fatos que implicam os farrapos com insurreições de 
				escravos negros em Pelotas [...]. 
				Manoel Jubo Tureiro Barreto e José Ignácio do Saldo confirmam 
				tudo e Joaquim José Maria Panot ainda acrescenta que os farrapos 
				fizeram grandes reuniões da escravatura, principalmente na 
				cidade de São Francisco de Paula (BAKOS, 1985, p. 90-91).
				
				
				Caldre e Fião afirma: “Os rebeldes (farrapos) chamaram ao seu 
				exército os escravos, de que fizeram quatro batalhões e alguns 
				esquadrões de cavalaria. [...] Durante a guerra, os senhores 
				sofreram estrondosas vinganças e conheceram bem o valor destes 
				inimigos. (CESAR, 1976, p. 3).
				
				
				Giuseppe Garibaldi, em suas Memórias, nos fala da 
				importante participação de negros e mestiços na luta: “a 
				gente que me acompanhava era uma verdadeira chusma cosmopolita, 
				composta de homens de todas as nações e de todas as cores. Os 
				americanos na sua maior parte eram negros livres ou mulatos e, 
				via de regra, os melhores e mais fiéis [...]. Nossa 
				infantaria, na qual todos, menos os oficiais, eram homens de 
				cor, era excelente e ansiava o combate geral” (GARIBALDI, 
				1910, p. 66-67, 131, tradução minha).
				
				Ao 
				relatar a Batalha de Taquari (1840) – onde 3.500 republicanos 
				enfrentaram 5.000 imperiais, com um resultado indefinido –, 
				Garibaldi destacou a combatividade dos Lanceiros Negros:
				
				Já os 
				terríveis lanceiros [...], todos livres e todos domadores de 
				cavalos, haviam executado um movimento de avanço, envolvendo o 
				flanco direito do inimigo [...]. Os valentes livres, imponentes 
				por sua ferocidade, se punham mais firmes do que nunca, e aquele 
				incomparável pelotão, constituído por escravos alforriados pela 
				República, selecionados entre os mais hábeis domadores de 
				cavalos da província, todos negros, salvo os oficiais 
				superiores, se assemelhavam a uma verdadeira floresta de lanças. 
				O inimigo jamais havia visto pelas costas esses verdadeiros 
				filhos da liberdade, que tão bem combatiam por ela. Suas lanças, 
				mais longas que o normal, suas caras negríssimas, seus robustos 
				membros, endurecidos pelos constantes e fatigantes exercícios, e 
				a sua perfeita disciplina infundiam terror ao inimigo 
				(GARIBALDI, 1910, p. 132, tradução minha).
				
				
				Em resposta à crescente participação de negros nas tropas 
				republicanas, os imperiais decretaram, em novembro de 1838, a
				
				
				chamada 
				
				Lei da Chibata: 
				“Artigo 1° — todo escravo que for preso e tiver feito parte 
				das forças rebeldes será logo ali, 
				ou no lugar mais próximo em que possa ter lugar, 
				correcionalmente punido com 
				duzentos 
				a mil açoites, [...] independentemente de processos.” 
				Em contrapartida, prometiam a liberdade para todos que se 
				entregassem aos imperiais: “Artigo 2º — Os escravos que [...,] 
				abandonando o seu partido, 
				se apresentarem ao 
				general
				em 
				chefe 
				ou às autoridades que este designar, ficam anistiados e isentos 
				de todo serviço forçado e ser-lhes-á 
				passada a carta de alforria.” 
				(REPÚBLICA RIO-GRANDENSE,
				
				
				1839c, 
				p. 1). O revide dos republicanos foi exemplar e esclarece o 
				pensamento majoritário dos 
				
				chefes 
				
				farroupilhas em relação à escravidão:
				
				
				Tendo o tirânico 
				governo 
				do Brasil [...] determinado ao intruso e intitulado presidente 
				da Província do Rio Grande de São Pedro a aplicação de 200 a 1.000 
				açoites a todo homem de cor que, 
				livre do cativeiro, em conformidade com as leis desta República, 
				tiver feito parte de sua força armada e vier a cair prisioneiro 
				das tropas chamadas legais, desprezando 
				aquele imoral governo toda a espécie de processo e formalidade 
				judiciária para a qualificação daquele suposto crime. 
				
				Quando 
				
				em obediência às sagradas leis da humanidade, 
				às
				
				
				luzes do 
				presente 
				século e aos verdadeiros interesses dos cidadãos do
				Estado, é 
				que o 
				governo 
				do mesmo 
				passou a libertar os cativos aptos para 
				as 
				armas, oficinas e colonização, a fim de acelerar, de pronto, a 
				emancipação dessa parte infeliz do gênero
				humano. E, isso, com o grave sacrifício da Fazenda 
				Pública, pois 
				todos 
				os 
				proprietários 
				que exigiram a indenização desses cativos, a receberam de pronto 
				ou receberam documento para indenização oportuna. O presidente 
				da República, 
				para reivindicar os direitos inalienáveis da humanidade, não 
				consentirá que o homem livre rio-grandense, de qualquer cor com 
				que os acidentes da natureza o tenham distinguido, sofra, 
				impune e não vingado, o indigno, bárbaro, aviltante e afrontoso 
				tratamento que lhes prepara o infame 
				governo
				
				imperial. 
				Em represália à provocação, 
				decreta: Artigo 
				único: 
				Desde o momento em que houver notícia certa de ter sido açoitado 
				um homem livre de cor a soldo da República pelo 
				governo 
				do Brasil, o 
				general
				
				comandante 
				de Exército ou o comandante de qualquer 
				divisão 
				tirará a sorte entre os oficiais imperiais, de qualquer patente, 
				nossos prisioneiros, 
				e fará passar pelas armas aquele oficial que a sorte designar (REPÚBLICA 
				RIO-GRANDENSE,
				
				
				1839b, 
				p. 
				2).
				
				
				O decreto deixa claro que: 1) os negros engajados nas tropas 
				republicanas eram livres; 2) a libertação de escravos também 
				abrangia os que trabalhavam nas “oficinas e colonização”; 3)
				
				se 
				um negro farroupilha fosse açoitado, um oficial imperial preso 
				seria morto, algo inimaginável na sociedade escravista de então. 
				A postura farroupilha contrastava com o desprezo escravista e 
				racista dos imperiais, expresso pelo presidente Saturnino de 
				Souza e Oliveira Macedo, ao 
				avaliar 
				o combate de São José do Norte:
				
				
				O inimigo repelido teve 200 mortos, 
				e nós, 
				cem; 
				mas ele teve 200 escravos mortos e nós tivemos, além de bons 
				soldados e inferiores, 
				dois 
				distintos capitães do 2º 
				Batalhão, 
				um 
				tenente-coronel 
				de 
				artilharia, 
				um 
				capitão-tenente da armada [...]. 
				E, porventura, cada um desses beneméritos oficiais deve entrar 
				na balança com um dos negros de Bento Gonçalves, insurrecionados 
				contra seus senhores? Deveria um só deles ser sacrificado pelos 
				200 negros, sem que se ganhasse outra vantagem? (OLIVEIRA, 1986, 
				p. 121)
				
				
				Ressalte-se, ainda, que alguns dos mais destacados líderes 
				farrapos eram negros ou pardos, entre eles Domingos José de 
				Almeida e José Mariano de Mattos.
				
				6. 
				A divisão dos farroupilhas ante a abolição da escravidão
				
				Outra 
				questão controversa em relação à luta farroupilha diz respeito à 
				sua atitude em face da abolição da escravidão. Em relação a esse 
				tema, não há uma resposta unívoca — “sim” ou “não”. De um lado 
				estavam setores progressistas, que defendiam a abolição geral da 
				escravidão. De outro, os que aceitavam a libertação dos escravos 
				que aderissem à luta, mas se opunham com veemência à libertação 
				geral dos escravos.
				
				No 
				Rio Grande do Sul, o abolicionismo teve dois precursores. Um foi 
				Hipólito José da Costa, patrono da imprensa brasileira, 
				perseguido pela Inquisição, que publicava em Londres o 
				Correio Braziliense (1808-1822), 
				primeiro jornal brasileiro. O outro foi o charqueador José 
				Antônio Gonçalves Chaves, simpático aos farroupilhas e amigo de 
				Domingos José de Almeida. Ambos defendiam a abolição da 
				escravidão.
				
				Nas 
				páginas do Correio Braziliense, Hipólito José da Costa 
				escreveu:
				
				A 
				escravidão é um mal para o indivíduo que a sofre e para o Estado 
				aonde ela se admite. [...] É ideia contraditória querer uma 
				nação ser livre [...] e manter dentro de si a escravidão [...;] 
				um homem educado com escravos não pode deixar de olhar para o 
				despotismo como uma ordem de coisas naturais [...;] a maioria 
				dos homens que são educados com escravos deve ser inclinada à 
				escravidão e se habitua a olhar para seu inferior como escravo, 
				acostuma-se também a ter um superior que o trate como escravo 
				[...]. Da continuação da escravatura no Brasil deve sempre 
				resultar uma educação que fará os homens menos virtuosos e mais 
				suscetíveis de submeterem-se ao governo arbitrário de seus 
				superiores (COSTA apud BENTO, 1976, p. 239-240).
				
				E 
				Antônio Gonçalves Chaves, em suas Memórias ecônomo-políticas
				sobre a administração pública do Brasil, publicadas em 
				1822, apontou a escravidão como “inconciliável com a economia 
				política moderna” (CHAVES, 1978, p. 59). Além de fazer a 
				crítica moral à escravidão, Chaves chamava a atenção para a 
				baixa produtividade do trabalho escravo e sua inadequação à 
				indústria, à divisão do trabalho e ao uso de tecnologias 
				avançadas:
				
				Não 
				posso de forma alguma divisar a menor vantagem para as nações 
				modernas por via da escravidão [...]. Como há de um homem livre 
				associar-se na cultura da terra ou em outro qualquer ramo de 
				trabalho com um homem cativo [...]? E se é só a classe escrava 
				que privativamente deve fazer o trabalho da agricultura e artes 
				pesadas, como se poderão adiantar os produtos do Brasil? Não 
				pode, com este terrível sistema, prosperar a agricultura, nem 
				pode nascer a indústria [...]. Nada pode cooperar mais 
				eficazmente para os trabalhos produtivos de uma nação do que a 
				subdivisão do mesmo trabalho [...;] o escravo é ao mesmo tempo 
				lacaio, boleeiro ou carpinteiro [...]; como poderá haver 
				subdivisão do trabalho? [Com a] proibição absoluta na importação 
				de escravos, a indústria irá aparecendo entre nós [...;] a mesma 
				classe escrava subministrará, no progresso de sua emancipação, 
				braços não manietados para os diferentes ramos em que forem mais 
				peritos (CHAVES, 1978, p. 58-77).
				
				Sem 
				dúvida, essas ideias influenciaram os principais líderes 
				farrapos:
				
				
				A censura contra um tráfico tão escandaloso, tão bárbaro e tão 
				desumano, [...] todos os jornais do mundo 
				
				civilizado 
				
				a têm 
				feito; lançaram-se contra ele todos os filósofos e todas as 
				ilustrações; diferentes governos celebraram com o Brasil 
				tratados para o abolir. [...] Há muito tempo que a opinião 
				pública, a moral e a religião gritam altamente contra 
				contrabando tão ignóbil e tão indigno do século XIX, mas 
				inutilmente! [...] Mas não importa. O tempo porá remédio a tudo. 
				O dia de triunfo pela república não tarda, 
				e logo que o Sol desse dia querido tiver purificado com seus 
				raios vivificadores a 
				Terra 
				de Santa Cruz, as 
				leis 
				e os 
				tratados 
				não serão mais violados (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE,
				
				
				1839b, 
				p. 2).
				
				Ao 
				mesmo tempo – revelando as contradições dos farroupilhas quanto 
				à questão servil –, eventualmente O Povo publicava 
				anúncios de compra e venda de escravos...
				
				Ao 
				estudar a
				Revolução Farroupilha, Clóvis Moura afirmou:
				
				Não 
				tendo surgido a Abolição em 1822, como esperavam, os escravos 
				não perderam a esperança. Continuaram, como já vimos, se 
				engajando nos movimentos subsequentes. Na Revolução Farroupilha 
				eles se sentirão à vontade porque, afora a insurreição dos 
				alfaiates, na Bahia, nenhum outro movimento foi tão enfática e 
				ostensivamente antiescravista como o chefiado por Bento 
				Gonçalves. A participação do escravo tinha um caráter racional, 
				lógico. Não havia a contradição existente nos demais 
				acontecimentos, quando eles participavam das lutas por ordem dos 
				seus senhores, conforme já vimos. Além do mais, como não pesava 
				muito fortemente na economia da região conflagrada, o escravo se 
				transformou em soldado rapidamente [...]. As próprias 
				autoridades farroupilhas se encarregavam de emancipá-lo. [...] O 
				tipo da economia pastoril prescindia do escravo africano. Os 
				trabalhos agrícolas, especialmente da erva-mate, não eram de 
				molde a exigir uma concentração de braços escravos como a que a 
				economia dos engenhos ou da mineração impunha. [...] Daí não 
				terem as camadas dirigentes da região conflagrada interesse em 
				manter o estatuto da escravidão, tão acirradamente como 
				aconteceu no Nordeste, onde ela era o esteio em que se escorava 
				toda a economia regional (MOURA, 1988, p. 97-98).
				
				O 
				choque entre os farroupilhas favoráveis à abolição da 
				escravatura e os farroupilhas contrários ocorreu com força nos 
				debates da Assembleia Constituinte Farroupilha, instalada em 1º 
				de dezembro de 1842. Na ocasião,
				
				Bento 
				Gonçalves dirigiu a palavra aos constituintes, reafirmando que “aproxima-se 
				o dia em que – banida a realeza da terra de Santa Cruz – nos 
				havemos de reunir para estreitar laços federais à magnânima 
				nação brasileira, a cujo grêmio nos chamam a natureza e os 
				nossos mais caros interesses.” (DE ABREU, 1930, p. 12)
				
				Na 
				Constituinte, coube a José Mariano de Mattos apresentar, em nome 
				da maioria — liderada por Bento Gonçalves, Domingos José de 
				Almeida, Antônio Souza Neto, José Gomes Portinho —, a proposta 
				de abolição do cativeiro. A reação da minoria, — capitaneada por 
				Antônio Vicente da Fontoura, Davi Canabarro e Onofre Pires — foi 
				tão violenta, ameaçando uma irremediável cisão dos farroupilhas, 
				que impediu a sua aprovação. Varela relata:
				
				José 
				Mariano [...] apresentou à assembleia um projeto que abolia o 
				cativeiro, semelhante ao que se fizera no vizinho Uruguai [...;] 
				a minoria, acaudilhada por Antônio Vicente, opôs-se, irredutível 
				e fera, deixando-nos patentes [...] as frágeis razões em que se 
				apoiava para obstar a “liberdade geral dos escravos”. [...] No 
				diário que estava escrevendo, [...] Antônio Vicente [...,] 
				depois de referir-se “à alma vil e fraca do mulato José Mariano” 
				e ao “mofino Bento”, “dois demônios, desprezados por todo homem 
				decente”, assevera que o plano emancipador apresentado por “esse 
				mulato”, “em plena assembleia”, tinha “o fim sinistro de tudo 
				confundir para, no início da geral consternação, roubar-nos mais 
				amplamente e evadir-se para o país vizinho” (VARELA, 1933, p. 
				16).
				
				
				Ali, ficou clara a divisão dos farroupilhas 
				
				diante da 
				abolição da escravidão. Apesar de
				
				
				a maioria ser favorável a ela, as dificuldades da luta 
				inviabilizaram sua aprovação. Assim, o 
				“Projeto 
				de Constituição da República Rio-Grandense”
				— que não chegou a ser votado, pois a 
				Constituinte se encerrou prematuramente, em 16 de fevereiro de 
				1843, devido à aproximação das tropas de Caxias — não incluiu a 
				abolição da escravidão. Mas o seu artigo 6º enquadrava os negros 
				farroupilhas como “cidadãos rio-grandenses”:
				
				
				Art. 6º — São cidadãos rio-grandenses: 
				1º 
				— 
				Todos os homens livres nascidos no território da República. 2º 
				— Todos os brasileiros que habitavam no território da República 
				desde o memorável dia 20 de setembro de 1835, e têm prestado 
				serviços à causa da revolução ou da independência, com intenção 
				de pertencer à nação rio-grandense. 
				3º 
				— 
				Todos os brasileiros residentes no território da República na 
				época em que se proclamou a independência, que aderiram a esta 
				expressa ou tacitamente pela continuação de sua residência, bem 
				como todos os outros brasileiros que atualmente estão empregados 
				no serviço civil e militar da República. [...] 5º — Todos os 
				estrangeiros que têm combatido ou combaterem na presente guerra 
				da independência, contanto que residam dentro do país e tenham a 
				intenção de fixar nele seu domicílio (ABREU, 1930, p. 42-43).
				
				Anos 
				depois, o General Portinho comentaria: “A República nunca 
				proclamou a liberdade da escravatura (o que foi um erro); se a 
				tivesse proclamado poderia formar um exército de libertos de 
				mais de 6.000 homens porque na Província os havia.” 
				(PORTINHO, 1990, p. 37).
				
				Na 
				Constituinte, Vicente da Fontoura, Onofre Pires e Davi Canabarro 
				conspiraram para afastar Bento Gonçalves da Presidência da 
				República e da chefia do Exército farroupilha, inclusive 
				acusando-o de ser o mandante do assassinato do vice-presidente 
				Antônio Paulo da Fontoura, morto em um crime passional. Acusado 
				por Onofre Pires, Bento o desafiou para um duelo e o feriu, o 
				que lhe veio a causar a morte. Em agosto de 1843, desgostoso e 
				doente, Bento Gonçalves entregou a Presidência a Gomes Jardim e 
				o Comando Militar a Canabarro. Assim, a minoria assumiu o 
				comando da luta farroupilha em sua fase final.
				
				7. 
				A paz esbarra no destino a ser dado aos negros farroupilhas
				
				Na 
				Corte, os liberais que faziam oposição ao gabinete conservador 
				do regente Pedro de Araújo Lima defendiam a decretação da 
				maioridade de Pedro II, então com 14 anos, que foi declarada em 
				julho de 1840. Assumiu, então, um gabinete liberal que buscou a 
				pacificação do Rio Grande do Sul — província estratégica na 
				defesa do Sul do país —, cuja revolta já durava cinco anos. As 
				negociações esbarraram, porém, na exigência farroupilha de que o 
				Império reconhecesse a liberdade dos negros que lutavam pela 
				República. Para os imperiais, isso significava abrir um 
				precedente inaceitável, pois estariam “premiando” com a 
				liberdade escravos insurretos. Algo inconcebível no Brasil.
				
				
				Tristão de Alencar Araripe relata que Bento Gonçalves apresentou
				como uma das primeirascondições “a liberdade dos escravos 
				que estão a nosso serviço”, (ARARIPE, 1986, p. 111). Como os 
				imperiais não concordaram com essa exigência, “no Rio Grande 
				continuaria a guerra, não podendo voltar aos grilhões os negros 
				que havia cinco anos lutavam pela liberdade na América” 
				(ARARIPE apud MACEDO, 1995, p. 38-39). Ulhôa Cintra, consultado, 
				respondeu da mesma forma: “Homens que ombrearam conosco na 
				defesa da liberdade não podem voltar ao cativeiro” (CINTRA 
				apud MACEDO, 1995, p. 39). Após a pacificação, Araripe, 
				insuspeito de simpatia pelos rebeldes farroupilhas, afirmou:
				
				Em um 
				ponto, porém, sempre foram coerentes e leais. Servindo-se dos 
				escravos para defender a liberdade por eles apregoada, não os 
				abandonaram no último momento da luta, e esforçaram-se com o 
				governo imperial para que esses infelizes não voltassem ao 
				cativeiro. Embora o governo imperial reconhecesse o perigo da 
				legitimação da alforria dos que com as armas na mão 
				a 
				
				conquistavam, em um país cujo primeiro elemento da sua produção 
				era o escravo, [...] os soldados da 
				República, 
				recrutados na escravidão, conservaram no Império a condição de 
				liberdade, por exigência dos caudilhos da rebelião (ARARIPE, 
				1986, p. 10).
				
				
				Apesar do silêncio de Araripe em relação às sérias divergências 
				entre os líderes farrapos quanto à escravidão — o que levou à 
				traição de Porongos (cf. seções 8 e 9) —, o seu testemunho é 
				incontroverso. E o próprio Antônio Vicente da Fontoura, 
				escravista empedernido, precisou incluir entre as exigências 
				farrapas que “são livres, e como tal reconhecidos, todos os 
				cativos que serviram na República” para obter consenso para 
				a paz entre os farroupilhas. Não havendo a pacificação em 1840, 
				devido à negativa em conceder liberdade aos negros em armas, a 
				luta seguiu, com um relativo equilíbrio de forças entre os 
				farrapos e os imperiais.
				
				A 
				situação alterou-se com a nomeação do barão de Caxias como 
				presidente e chefe militar na província, em agosto de 1842. 
				Caxias reorganizou o Exército imperial, adquiriu grandes 
				cavalhadas (para lhe dar maior mobilidade) e impôs derrotas aos 
				farroupilhas. Tendo tomando Piratini, Caçapava e Jaguarão, lhes 
				retirou as bases de apoio urbano. Buscou, então, uma batalha 
				decisiva, mas os farrapos se esquivaram de um combate frontal e, 
				através da guerra de guerrilhas, conservaram o domínio do Pampa:
				
				Com 
				7.000 homens à sua disposição, número este que atingiria mais de 
				11.000, Caxias dividiu seu exército em três divisões para maior 
				mobilidade. [...] Nos dois anos que se seguiram, os farroupilhas 
				entravam no Uruguai e voltavam ao Rio Grande do Sul, evitando a 
				perseguição de Caxias. O barão podia se movimentar livremente 
				para ocupar território rebelde, mas não podia garantir essas 
				áreas indefinidamente. Atacando de surpresa, muitas vezes os 
				Farrapos salvaram a reputação da República [...] como aconteceu 
				com a vitória de São Gabriel, em 1843 (LEITMAN, 1979, p. 44-45).
				
				O 
				seguimento da luta — que ainda poderia durar anos —, o risco do 
				apoio do uruguaio Fructuoso Rivera aos farrapos e as ameaças do 
				argentino Juan Manuel de Rosas forçaram o Império a propor uma 
				paz honrosa aos farrapos. Em setembro de 1844, com a 
				intermediação de Dionísio Amaro, Canabarro enviou Bento 
				Gonçalves para uma conversa com Caxias sobre os termos da paz. 
				Entre as condições postas por Bento estavam a anistia aos 
				farroupilhas, o pagamento das dívidas da República, a 
				incorporação dos oficiais farroupilhas ao Exército Brasileiro, 
				nos seus respectivos postos, e a liberdade para os negros 
				farroupilhas. Caxias aceitou as exigências farroupilhas e disse 
				que consultaria a Corte.
				
				Bento 
				levou esta concordância de Caxias à Canabarro, mas este negou-se 
				a firmar a paz, pois não queria que Bento levasse as honras da 
				pacificação. O mencionado Dionísio deixa isso claro, em carta 
				que escreveu: “A paz teria sido feita [...] se o círculo 
				minorista, de que era alma o ex-ministro (Fontoura), não a 
				tivesse feito retardar, por não querer ver aparecer Bento 
				Gonçalves em negócio de tamanha transcendência”. E 
				questionado por Caxias, o mesmo Dionísio afirmou: “A paz será 
				feita, porque V. Exa. ofereceu muito aos republicanos. Eles se 
				contentarão com menos da metade, contanto que o nome de Bento 
				Gonçalves não apareça.” (AMARO apud FAGUNDES, 1989, p. 
				382-382)
				
				Em 22 
				de setembro de 1844, Fontoura escreveu em seu diário:
				
				
				Cartas que hoje recebemos [...] nos afirmam que é inevitável a 
				guerra entre o Brasil e o tirano de Buenos Aires [Rosas], e que 
				[...] manda o governo imperial propor-nos a pacificação, cujos 
				pontos cardeais são mais ou menos os seguintes: “São 
				reconhecidos nos mesmos postos todos os oficiais da República; 
				libertos todos os escravos que têm estado ao serviço das armas 
				da República; reconhecida nossa dívida interna e externa etc. 
				etc., com a condição de ajudarem os republicanos na guerra 
				contra Rosas.” (FONTOURA, 1984, p. 128-129)
				
				O 
				governo imperial vinha preparando-se para essa alternativa. O 
				ministro da Guerra, José Clemente Pereira, se preocupava com os 
				problemas diplomáticos e militares que poderiam advir se os 
				negros farrapos — mais coesos e conscientes — buscassem asilo no 
				Uruguai, para continuar a guerra sob a proteção de Fructuoso 
				Rivera:
				
				Para 
				evitar uma guerra com o Uruguai, o ministro perguntou aos seus 
				conselheiros se seria necessário estabelecer o “terrível 
				precedente” de premiar escravos dando “liberdade pelo crime de 
				insurreição”. A pacificação do Rio Grande do Sul, então, poderia 
				incluir a resistência no Uruguai, o que levaria à guerra. Ainda 
				mais, uma aventura imperial no Uruguai poderia provocar graves 
				problemas diplomáticos com a Argentina de Juan Manuel de Rosas 
				(LEITMAN, 1985, p. 72).
				
				
				Esse mesmo temor tinham os chefes farrapos contrários à abolição
				
				da 
				escravatura— 
				como Vicente da Fontoura e Canabarro —, 
				que negociavam a paz com Caxias. Por um lado, era inviável obter 
				um mínimo de consenso para a paz sem a garantia de liberdade 
				para os negros farroupilhas. Por outro, era arriscada 
				a 
				sua volta às senzalas, 
				levando a semente da rebelião. Já para a ordem escravocrata 
				reinante no Brasil, era um problema manter livre um grande 
				contingente de negros com experiência militar. A solução foi 
				eliminar o problema...
				
				8. 
				O massacre dos negros farroupilhas às vésperas da pacificação
				
				
				É nesse contexto que, na madrugada de 14 de novembro de 1844, 
				ocorreu o combate de Porongos, 
				no 
				qual
				os negros farrapos — desarmados e separados 
				do resto das tropas — foram atacados de surpresa e dizimados 
				pelas tropas imperiais, comandadas por Chico Pedro (de 
				apelido 
				
				Moringue), por meio de um conluio entre Canabarro e Caxias. Esse 
				combate cumpriu dois objetivos: 1) eliminar o máximo de negros 
				em armas; 2) forçar os farrapos a deporem as armas. As 
				instruções de Caxias a Chico Pedro diziam:
				
				
				Regule V.S. suas marchas de maneira que no dia 14, às 
				duas 
				horas da madrugada possa atacar as forças a mando de Canabarro, 
				que estará nesse dia no 
				cerro 
				dos Porongos. [...] Suas marchas devem ser o mais ocultas que 
				possível seja, inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois 
				posso afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter suas 
				observações sobre o lado oposto. No conflito poupe sangue 
				brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da 
				província ou índios, pois você bem sabe que essa pobre gente 
				ainda nos pode ser útil no futuro. [...] Não receie a infantaria 
				inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro de seu 
				general em chefe para entregar o cartuchame sob pretexto de 
				desconfiarem dela. [...] 9 de novembro de 1844. [A.]
				Barão de Caxias (AHRGS, 1983, p. 30).
				
				
				A transcrição completa desta carta – guardada no Arquivo 
				Histórico do Rio Grande do Sul – encontra-se em anexo, ao final 
				desse trabalho.
				
				
				Cumprindo a sua parte na combinação, David Canabarro acampou no 
				dia 10 de novembro no cerro dos Porongos, atual município de 
				Pinheiro Machado, com 1.200 homens: “João Antônio, acampado à 
				margem esquerda do arroio dos Porongos, em bom campo; a 
				infantaria desarmada, na margem do dito arroio, e a cavalaria de 
				Neto, mais além em campo bom” (TABORDA, 1985, p. 81). Apesar 
				de ter havido um choque da vanguarda de Chico Pedro com um 
				pelotão farroupilha e Canabarro ter sido informado da 
				aproximação de Moringue, nenhuma medida foi tomada. No dia 12, 
				d.ª Manoela, irmã do general Neto, soube da presença de Moringue 
				nos fundos da sua estância e pediu ao seu vizinho Joaquim 
				Pereira que avisasse Canabarro:
				
				
				Travou-se, então, o seguinte diálogo: [...] — De que lado está o 
				vento, perguntou Canabarro. Pereira indicou [...] que era para 
				os lados [de] onde estava acampado Chico Moringue. — O Moringue 
				sentindo a minha catinga, disse Canabarro, para cá não vem. 
				Marche para a sua casa e não ande espalhando boatos. Sabedor 
				desse desfecho, Neto voltou à barraca de Canabarro e reafirmou 
				seus receios e as suas previsões [...]. O lugar onde estavam não 
				era apropriado para um demorado estacionamento de um pequeno 
				Exército. Além disso, na direção de Bagé, Portinho já 
				estabelecera contato com os imperiais e era certo que à 
				retaguarda se aproximava outra força. [...] Canabarro não 
				aceitou os alvitres de Neto [... e] determinou o relaxamento da 
				vigilância, o desarmamento dos soldados, a guarda de toda a 
				munição para ser redistribuída na manhã seguinte (TABORDA, 1985, 
				p. 83-84).
				
				
				Na madrugada de 14 de novembro, Chico Pedro atacou as tropas 
				farrapas desprevenidas, matando principalmente os negros 
				farroupilhas. Canabarro e Vicente da Fontoura escaparam 
				incólumes:
				
				
				Um esquadrão de 40 homens [...] cai de chofre sobre o Exército 
				desprevenido [...]. A onda humana, que se espalhou em várias 
				direções, tenta ganhar distância para se refazer [...]. Mas eis 
				que a onda se despedaça de encontro a uma barreira inesperada. É 
				o próprio Chico Pedro que, emboscado com o grosso de suas 
				forças, esperava o resultado do ataque para surgir pela frente 
				dos que fogem. A situação é terrível. [...] Teixeira, o bravo 
				dos bravos, cujo denodo assombrou um dia ao próprio Garibaldi, 
				reúne os seus lanceiros, o 4º Regimento de Linha e alguns 
				esquadrões e leva uma carga aos atacantes. As fileiras destes 
				afrouxam, mas os imperiais se multiplicam, surgem de todos os 
				pontos. Uma segunda carga, mais impetuosa, mais desesperada, é 
				também repelida. É esse o sinal da debandada geral. [...] Apenas 
				alguns grupos mantêm-se resistindo e neles o combate se trava a 
				arma branca [...;] é uma carnificina sem nome, um desbarato 
				completo. Um pouco mais e toda resistência se abate. [...] jazem 
				quatorze feridos,  e mais de cem mortos [...] trezentos e trinta 
				e três prisioneiros, inclusive trinta e cinco oficiais e o 
				ministro da fazenda da república, toda a bagagem, abarracamento 
				e armamento da infantaria, para cima de dois mil cartuchos, 
				muito armamento de cavalaria, parte deles encilhados (RODRIGUES, 
				1990, p. 234-235).
				
				
				Anos depois, Manuel Alves da Silva Caldeira – que durante quase 
				toda a revolução combateu no 1º Corpo de Lanceiros de Linha, os 
				célebres Lanceiros Negros – denunciou:
				
				
				Canabarro, de combinação com Caxias e Moringue, deu entrada a 
				Moringue em seu acampamento, para derrotar a força comandada 
				pelo Gen. Neto, menos a do Gen. João Antônio da Silveira que 
				estava acampado em lugar que ficou livre do ataque. [...] 
				Canabarro deu ordem [...] para recolher o cartuchame da 
				infantaria e carrega-lo em cargueiros [...] para ser 
				distribuídos quando aparecesse inimigo [...] Moringue [...] 
				antes de clarear o dia estendeu a cavalaria em linha na frente 
				do acampamento de Canabarro e mandou tocar a alvorada [...] 
				Canabarro ouvindo toque de alvorada montou a cavalo com o seu 
				estado-maior e passou o arroio do dito passo e apresentou-se à 
				frente da força de João Antônio, o qual estava furioso por ver a 
				matança que o inimigo fazia em seus companheiros de armas sem 
				socorrê-los, por Canabarro não consentir. Canabarro ficou 
				naquele dia nos campos dos Porongos e pernoitou e no outro dia 
				marchou serenamente para o campo do Contato, ficando Neto 
				derrotado completamente por causa do péssimo terreno escolhido 
				(a propósito) por Canabarro (WIEDERSPAHN, 1980, p. 74-75).
				
				
				Calvet Fagundes relata que “no combate de Porongos [...] 80% 
				dos mortos que ficaram no campo de batalha eram negros” 
				(FAGUNDES, 1989, p. 252) e Varela denuncia abertamente a traição 
				de Canabarro:
				
				
				Foram, no entanto, as cópias de suas cartas [...] que me deram a 
				quase convicção de que David era um criminoso, [...] depois de 
				ouvir a quatro contemporâneos insuspeitos [...]: José Custódio 
				Alves de Sousa, Manuel Alves da Silva Caldeira, João Amado e 
				José Gomes Jardim, Beco de alcunha. Unânime o voto condenatório, 
				sendo o do último o que acabou com as minhas dúvidas, porque 
				pertenceu ao círculo da minoria, isto é, do que tinha em David o 
				seu lord-protector; [...] as suas declarações eram 
				terrivelmente acusadoras. [...] Acreditava que, querendo este a 
				todo transe fazer a paz, decidira desfazer-se daqueles que se 
				opunham. [...] “Até hoje brigariam, se não fosse a traição. 
				Havia ainda uns três mil homens em armas”, “gente magnífica”, no 
				conceito de um legalista. [Nota nº 298 — há depoimentos do 
				capitão Felisberto Cândido Pinto Bandeira mui parecidos ao de 
				Beco, menos em um ponto. Diz que a maioria “não queria a paz, 
				que Canabarro se deixou derrotar em Porongos para fazer uma paz 
				que lhe desse posição e especialmente fortuna, porque com 
				posições não se importava muito, mas era ambicioso de dinheiro” 
				(VARELA, 1933, p. 500).
				
				
				Também é inexplicável o comportamento de Fontoura, indicado por 
				Canabarro para as tratativas de paz. Na noite de 13 de novembro, 
				ele anotou no seu diário: “Amanhã é a minha marcha para o Rio 
				de Janeiro. Devo primeiro ir ao campo do barão de Caxias para 
				reunir-me com o outro que ele manda de sua parte.” Em 18 de 
				novembro, ele volta a escrever, como se nada houvesse 
				acontecido: “Não quero [...] fazer a descrição do revés que 
				tivemos a 14 porque o Gabriel vai, e ele que o conte. [...] A 16 
				saí do nosso acampamento, para prosseguir nas negociações da paz 
				[...,] e por isso amanhã devo seguir para a Corte” 
				(FONTOURA, 1985, p. 143-145). O que desmente a “lenda” de que em 
				represália ao ataque de Porongos, Canabarro e seus seguidores 
				teriam suspendido as negociações de paz com Caxias, “em um gesto 
				de desassombro e altivez”.
				
				Ivo 
				Caggiani — que defende Canabarro da acusação de traição em 
				Porongos — cita Alfredo Ferreira Rodrigues, que confirma que 
				Canabarro desarmou os negros farrapos na véspera do ataque, 
				apresentando explicações fantasiosas para justificar 
				comportamento tão estranho de alguém que, informado da 
				aproximação de Chico Pedro, preferiu não precaver-se e 
				ainda desarmou os negros farrapos:
				
				
				Havendo, tempos antes, Chico Pedro aprisionado um oficial de 
				Canabarro, este lhe pediu que não o deportasse, poupando-lhe os 
				trabalhos e misérias que iria sofrer. Chico Pedro disse que só o 
				soltaria com a condição de ir trabalhar a favor do governo com a 
				infantaria republicana, onde encontraria companheiros. 
				Perguntando-lhe o prisioneiro quem eram eles, Chico Pedro 
				disse-lhe que isso era a chave do segredo, mas que fosse 
				trabalhando, que eles haviam de aparecer. O oficial recusou, 
				indignado. Chico Pedro, fingindo-se comovido com as suas 
				súplicas, soltou-o depois, sem lhe falar mais nisso. O oficial, 
				chegando ao acampamento republicano, relatou a proposta ao 
				general Neto, que a comunicou a Canabarro. Este, pretextando a 
				necessidade de substituir o cartuchame velho, mandou recolhê-lo, 
				dizendo que distribuiria outro, demorando, porém, a entrega 
				(CAGGIANI, 1992, p. 244-245).
				
				
				Quanto à carta combinando a batalha, Ferreira Rodrigues diz que 
				foi uma farsa para desmoralizar Canabarro. Mas o próprio 
				Ferreira pergunta: “Por que Canabarro nunca se defendeu, 
				[...] desmentindo esse documento, contentando-se em dizer: — O 
				tempo me há de justificar! Por que Caxias, depois da paz, nunca 
				o defendeu, desmentindo a intriga de Chico Pedro? Por quê?” 
				(FERREIRA apud CAGGIANI, 1992, p. 245). Ora, não é plausível que 
				Caxias tivesse qualquer interesse em desmoralizar Canabarro, o 
				líder farrapo em quem mais confiava e de quem precisava para 
				convencer os demais a aceitarem a paz. E Chico Pedro era o menos 
				interessado em difundir uma versão que lhe tirava as honras de 
				uma vitória sem precedentes em Porongos.
				
				
				Examinando a explicação apresentada por Ferreira Rodrigues para 
				pôr em dúvida a referida carta, o autor da coletânea de ofícios 
				de Caxias afirma: “A defesa de A. F. Rodrigues de Canabarro 
				me parece fraca. Julgo o documento legítimo, pois Francisco 
				Pedro não teria nenhuma conveniência em divulgar um documento 
				que lhe tiraria todas as honras de uma estrondosa vitória, como 
				foi julgada a surpresa de Porongos” (CAXIAS, 1950, p. 148). 
				Igualmente, o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul publicou a 
				íntegra da carta de Caxias a Chico Pedro, sem indicar qualquer 
				dúvida em relação à sua autenticidade.
				
				Da 
				mesma forma, o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul publicou a 
				íntegra da carta de Caxias a Chico Pedro (AHRGS, 1983, p. 
				30-31), sem colocar em dúvida a sua autenticidade. Cópia da 
				referida carta – que tive a oportunidade de manusear e 
				fotografar – encontra-se no AHRGS, Coleção Varela, Caixa 6, Maço 
				22, documento CV-3730. Ela está reproduzida ao final deste 
				texto.
				
				
				Moacyr Flores agrega:
				
				O 
				documento [...] é tido como falso porque no alto consta a 
				palavra cópia, no entanto o Ministro Domingos José de Almeida, 
				que tentou desvendar a tal “surpresa de Porongos”, escreveu que 
				viu e copiou o documento original da ordem de Caxias, que estava 
				em poder de Francisco Pedro de Abreu. A carta de Almeida ao 
				major Bernardo Pires, em 17.9.1859 é estarrecedora: “Porém eu 
				que aqui vi com antecedência duas cartas de Caxias anunciando ao 
				falecido veador João Rodrigues Ribas o próximo termo da 
				revolução; pois que certos bichos, e que bichões! Estavam de 
				acordo e podiam prestar. E que se quisesse ver, pedisse ao 
				Moringue parte do plano que tinha que executar para disso 
				convencer-se”. (FLORES, 2004, p. 61)
				
				Por 
				tudo isso, apesar da controvérsia em relação à carta e à 
				“Traição de Porongos”, a esmagadora maioria das evidências são 
				no sentido da sua confirmação.
				
				
				Poucos dias depois, ocorreu 
				um
				
				
				novo revés das armas farroupilhas, sobre o qual também pairam 
				fundadas suspeitas, devido ao seu alto risco. Canabarro 
				
				determinou a 
				Teixeira Nunes e 
				aos 
				remanescentes de 
				seus Lanceiros Negros uma ação altamente temerária, na 
				retaguarda inimiga: 
				
				Devia 
				arrecadar impostos, e fornecer do necessário, a tropa, no 
				distrito do Arroio Grande. Também devia, se possível, cair de 
				chofre no imperial depósito de solípedes, de além do S. Gonçalo. 
				Teixeira, ainda que [por] presságio, houve-se com destreza. 
				[...] Notando estar agora inteiramente cortado do Exército, 
				buscou reunir as suas partidas volantes para distanciar-se 
				[...]. Efetuada a incorporação, e já cobradas as taxas na aldeia 
				supra e costa do Chasqueiro, movia-se o contingente 
				revolucionário em franco recuo para noroeste, quando a sua 
				desfortuna o pôs nas unhas de um dos mais bravios filhotes do 
				possante condor, ávido de substância farrapa, que voava e 
				revoava, nesse departamento da República. Acampava, a 26, perto 
				de Canudos, e Fidelis, o indicado subalterno e bom discípulo, 
				caiu de improviso sobre os retirantes. [...] Assistiu-se aí à 
				exata miniatura do que se vira em Porongos: total e ruinoso 
				destroço. Sucumbiram muitos sob o ferro legalista, divulgando a 
				apologia dos Abreus que, entre os mortos na surpresa, se contara 
				o nobre Teixeira, ilustre entre os mais ilustres pugilistas do 
				áureo decênio. Mais uma inverdade escandalosa, disseminada pela 
				turba dos vencedores. É falso! “Prisioneiro, foi assassinado” 
				(VARELA, 1933, p. 258-259).
				
				9. 
				A paz e o destino dado aos negros farroupilhas
				
				Com a 
				traição de Porongos, foi aplainado o caminho para a pacificação, 
				seja porque a matança dos negros farrapos eliminou boa parte do 
				problema do destino a ser dado a eles, seja porque a gravidade 
				da derrota eliminou as últimas resistências entre os 
				farroupilhas para a paz. Segundo Tristão de Alencar Araripe, “O 
				combate de Porongos, que mais foi uma matança de um só lado do 
				que peleja, dispersou a principal força republicana, e 
				manifestou estar morta a rebelião. [...] Em Porongos, pois, a 
				revolução expirou. Foi daí que se seguiu o entabulamento das 
				negociações, que deram tranquilidade ao Rio Grande do Sul 
				(ARARIPE, 1986, p. 211).
				
				
				Vicente da Fontoura seguiu, então, para o Rio de Janeiro, para 
				negociar a rendição dos farroupilhas. Lá esteve entre os dias 12 
				e 20 de dezembro. Após, retornou ao Rio Grande do Sul com a 
				tarefa de obter a concordância dos principais líderes 
				farroupilhas para a deposição das armas.
				
				Em 18 
				de dezembro, o governo imperial — já sabedor dos pleitos 
				farroupilhas — enviou a Caxias suas “Instruções reservadas”. 
				Caxias podia receber o pedido de deposição de armas dos chefes 
				farroupilhas (art. 1º) e dar-lhes ampla anistia (art. 2º); os 
				oficiais anistiados do Exército ou da Guarda Nacional deveriam 
				ser dispensados (art. 3º), mantendo as prerrogativas dos seus 
				postos (art. 8º); não seria reconhecida a dívida rebelde, mas 
				poderiam ser pagos até 300 contos de réis dessas dívidas (art. 
				7º). “Os escravos que fizeram parte das forças rebeldes, 
				apresentados, serão remetidos para esta Corte à disposição do 
				governo imperial, que lhes dará o conveniente destino” (art. 
				5º) (WIEDERSPAHN, 1980, p. 13-14). De acordo com o artigo 7º, o 
				destino dos negros farrapos sobreviventes continuava sendo uma 
				questão pendente. Canabarro, Fontoura e os imperiais trabalharam 
				para que o problema fosse solucionado pelo seu desarme e 
				afastamento da província.
				
				
				Caxias comunicou a Chico Pedro – em ofício datado de 15 de 
				janeiro de 1845 – que Vicente da Fontoura lhe pedira um local 
				para se reunirem, decidirem a sua dispersão e entregarem os 
				negros farrapos. Caxias designou, então, a Estância das Cunhas, 
				em Ponche Verde,
				
				
				como o lugar onde receberia os negros farrapos. 
				Varela denuncia:
				
				Caxias 
				[...] tudo esclarece: “David Canabarro [...] é hoje o chefe em 
				cuja boa-fé confio, e ele me promete ser o seu primeiro passo, 
				logo que chegue ao ponto marcado, mandar entregar todos os 
				escravos que ainda conserva em armas, e que formam sua principal 
				força.” 
				[...] Revestido ainda com as insígnias do generalato 
				emancipador, S.Ex.a 
				[...] concordava em que fossem reduzidos à sua ignóbil condição 
				primitiva os libertos, cujo fabuloso devotamento, cuja fera 
				incontinência na arena guerreira encheram de assombro a 
				Garibaldi! [...] Graças à fraqueza do antes pujantíssimo David, 
				os maravilhosos lanceiros, os estupendos caçadores, aríete e 
				baluarte sem iguais da liberdade americana, passariam, da guarda 
				e defesa do tricolor estandarte até aí imaculado, à senzala e ao 
				eito! [...;] 
				passariam, das planícies abertas, ao fechado recinto da imperial 
				fazenda de S.ta 
				Cruz, no caráter, não mais de escravos de seus antigos senhores, 
				mas da nação 
				brasileira, que a aqueles entregaria o valor dos mesmos, para 
				que continuasse intangível o sacro direito de propriedade! 
				(VARELA, 1933, p. 297-298)
				
				Mas o 
				próprio Varela nos esclarece que essa traição final aos negros 
				farroupilhas não se consumou, integralmente, tendo 
				Caxias utilizado o 
				“Aviso
				Imperial”
				de 19 
				de novembro de 
				1838 — que 
				concedia a liberdade aos negros farrapos que se entregassem aos 
				imperiais — para enviá-los alforriados ao Rio de Janeiro:
				
				Sofreram, 
				todavia, a predita humilhação; Canabarro separou 120 deles das 
				suas fileiras, como quem faz um “aparte” de gado, e o rebanho de 
				míseros o conduziram, os colaboradores do general, à presença de 
				Caxias. Este, parece, os remeteu para fora da província [...,] 
				mas seguiram, tudo o persuade, com a carta de alforria ou a 
				receberam ao chegar ao porto de desembarque. É o que se concilia 
				de posteriores debates no parlamento (VARELA, 1933, p. 297-298).
				
				
				Depois de algum tempo, 
				Caxias confirmou ao Ministro da Guerra a irrestrita lealdade de 
				Vicente da Fontoura e de David Canabarro, assim como a entrega 
				dos negros farroupilhas:
				
				
				Os escravos que eles ainda conservavam armados foram entregues 
				com as suas armas e seu número já não excede a 120. [...] Os 
				escravos mandei adir aos corpos de cavalaria de Linha até 
				seguirem para essa Corte na forma das ordens que recebi. [...] 
				Antônio Vicente da Fontoura conduziu-se em tudo quanto o 
				encarreguei relativamente os arranjos conciliatórios com boa fé 
				e mostrando muita vontade de ver a guerra terminada, encontrando 
				decidido apoio em David Canabarro (WIEDERSPAHN, 1980
				
				
				Ainda persistem dúvidas quanto ao destino final dos negros 
				farroupilhas, 
				entregues por Canabarro a Caxias. Tudo indica, porém, que 
				procede a opinião de Varela de que Caxias se valeu das 
				disposições que permitiam libertar os escravos que se 
				entregassem, para alforriá-los. Segundo Silva, 77 negros 
				farroupilhas foram enviados para o Rio de Janeiro, sendo que 
				quatro fugiram e 73 foram entregues às autoridades da Corte 
				(SILVA, 2010,
				
				p.
				
				
				240-241). 
				Lá, eles foram encaminhados à “comissão 
				encarregada de avaliar os indivíduos que, havendo sido escravos, 
				se achavam livres, em consequência dos acontecimentos da 
				província de São Pedro, a fim de serem indenizados seus senhores” 
				(SILVA, 2010, 291-293). Dessa informação se depreende que os 
				negros farrapos “se achavam livres”, não havendo qualquer menção 
				a que eles tenham sido enviados para alguma
				propriedade
				do Império como escravos. Os debates no parlamento também 
				reforçam essa conclusão:
				
				
				Joaquim Antão Fernandes Leão requereu, a 5 de maio, explicações 
				a 
				respeito 
				[... 
				de] 
				um aviso que, diz, "não está nas coleções", pediu cópia do 
				mesmo, cuja doutrina lhe parece "um atentado ao direito de 
				propriedade", 
				e acaba perguntando qual o número dos escravos postos em 
				alforria. Alvares Machado [...] reflexiona que o requerer 
				esclarecimentos é indesconhecível direito da oposição, mas acha 
				que o que fora justo mais tarde, agora não o é. Os escravos 
				entregues pela revolução foram libertados graças ao que estatui 
				o aviso de 19 de novembro de 1838, cujo § 3° “mandou que todos 
				os escravos militarizados pelos rebeldes que se apresentassem às 
				forças legais fossem avaliados e postos em liberdade, avaliados 
				para pagá-los a seus donos”. Assim se fez (prossegue) com os da 
				Bahia, na época da independência. Já se vê, conseguintemente, 
				que o marechal Caxias nada mais fez que cumprir a palavra do
				
				imperador 
				naquele aviso dado em face de todos. [...] Álvaro Machado expõe 
				que os escravos a serviço da revolta não tornam ao poder dos 
				senhores, e que não excediam aqueles a 200, inclusos na soma os 
				120 que David entregou no ato da paz (VARELA, 1933, p. 507-508).
				
				Como 
				é óbvio, essa possível 
				alforria não assegurou 
				aos 
				negros farroupilhas 
				
				condições dignas de vida. Nada se sabe deles a partir daí, mas 
				devem ter vivido todas as 
				
				dificuldades 
				dos alforriados de então.
				
				
				10. A pacificação de Ponche Verde
				
				
				Equacionado no fundamental o destino dos negros farroupilhas, 
				prosseguiram as negociações de Vicente da Fontoura com Caxias, o 
				qual — ao que tudo indica com a concordância do governo imperial 
				— extrapolou as instruções recebidas e ampliou as 
				concessões aos farroupilhas, com o objetivo de superar as 
				resistências ao fim das hostilidades e de obter a participação 
				dos rio-grandenses no iminente enfrentamento com Rosas.
				
				
				Finalmente, em 25 de fevereiro de 1945, realizou-se em Ponche 
				Verde um encontro dos principais chefes militares farroupilhas. 
				Nele, Vicente da Fontoura apresentou os pontos acertados com 
				Caxias para a pacificação, entre eles: ampla anistia e garantia 
				de que nenhum processo seria movido contra os farroupilhas; 
				indicação do presidente da província pelos líderes farroupilhas; 
				alforria para os cativos que serviram à República; pagamento 
				pelo governo imperial da dívida da República Rio-Grandense; 
				integração ao Exército Brasileiro, nos seus postos — salvo no de 
				general —, dos oficiais republicanos que assim o desejassem; 
				aqueles que não o desejassem, seriam dispensados de servir; 
				dispensa do recrutamento dos soldados republicanos (FAGUNDES, 
				1989, p. 405; WIEDERSPAHN, 1980, p. 10).
				
				
				Havendo acordo em relação aos pontos acertados com Caxias, os 
				chefes farrapos firmaram uma “Ata de pacificação”, datada de 28 
				de fevereiro, logo enviada a Caxias. Em seguida, foram 
				divulgadas duas proclamações: uma em nome do presidente Gomes 
				Jardim; outra, do chefe do Exército republicano, David 
				Canabarro, ambas anunciando a paz. Por sua parte, Caxias 
				proclamou em 1º de março:
				
				
				Rio-grandenses! [...] Os irmãos contra quem combatíamos estão 
				hoje congratulados conosco e já obedecem ao legítimo governo do 
				Império Brasileiro. Sua Majestade, o Imperador, ordenou por 
				decreto de 18 de dezembro de 1844 o esquecimento do passado e 
				mui positivamente recomenda no mesmo decreto que tais 
				brasileiros não sejam judicialmente nem por outra qualquer 
				maneira inquietados pelos atos que tenham sido praticados 
				durante o tempo da revolução. [...] Eu o prometo sob minha 
				palavra de honra. Uma só vontade nos una, rio-grandenses, 
				maldição eterna a quem recordar-se das nossas dissensões! 
				(WIEDERSPAHN, 1980, p. 102)
				
				Após, 
				os oficiais superiores farroupilhas votaram para definir quem 
				devia presidir a província: Caxias teve 14 votos, Antônio Carlos 
				Ribeiro Machado de Andrade e Silva, 11 votos, e Manuel Antônio 
				Galvão, 2 votos.
				
				É 
				preciso que se diga que não houve um tratado de paz assinado 
				conjuntamente por Caxias e pelos farroupilhas, até porque o 
				Império não reconhecia a República Rio-Grandense e tratava os 
				farrapos como meros insurretos. O que houve foi uma ata firmada 
				pelos farroupilhas, proclamando o encerramento da luta e a 
				reintegração deles à nação brasileira, nos termos negociados com 
				o então barão de Caxias,
				
				
				segundo um documento manuscrito e do próprio punho do então 
				barão de Caxias e por ele subscrito, cujo inteiro teor é o 
				seguinte: “Art. 1º — Fica nomeado presidente da província o 
				indivíduo que for indicado pelos republicanos. Art. 2º — Pleno e 
				inteiro esquecimento de todos os atos praticados pelos 
				republicanos durante a luta, sem ser, em nenhum caso, permitida 
				a instauração de processos contra eles [...]. Art. 3º — Dar-se-á 
				pronta liberdade a todos os prisioneiros [...]. Art. 4º — Fica 
				garantida a dívida pública, segundo o quadro que dela se 
				apresente. [...] Art. 7º — Está garantida pelo governo imperial 
				a liberdade dos escravos que tenham servido nas fileiras 
				republicanas, ou nelas existam. Art. 8º — Os oficiais 
				republicanos [...,] quando espontaneamente queiram servir, serão 
				admitidos em seus postos. Art. 9° — Os soldados republicanos 
				serão dispensados do recrutamento. Art. 10º — Só os generais 
				deixam de ser admitidos em seus postos, porém, em tudo mais 
				gozarão da imunidade concedida aos oficiais. [...] [A.] O barão 
				de Caxias.” (WIEDERSPAHN, 1980, p. 11)
				
				A 
				concessão aos farroupilhas de condições tão favoráveis de paz só 
				se explica pela necessidade do Império de contar com os 
				rio-grandenses para os iminentes conflitos com os países 
				platinos.
				
				
				11. Conclusões
				
				A 
				Guerra dos Farrapos foi o mais relevante episódio da história do 
				Rio Grande do Sul. Como todo grande acontecimento histórico, a 
				sua interpretação tem sido objeto de grandes polêmicas. Por um 
				lado, vemos a tentativa de apropriação ideológica da Revolução 
				Farroupilha pela oligarquia pecuarista, que — através de uma 
				historiografia laudatória aos “monarcas das coxilhas” (brancos e 
				ricos) e à “democracia dos pampas” (sem explorados e 
				exploradores) — idealiza o espírito “libertário” dos grandes 
				fazendeiros que dirigiram a luta pela República, mas fecha os 
				olhos para as suas contradições em face da escravidão (que se 
				expressou no massacre dos negros farroupilhas em Porongos) e 
				ignora o protagonismo dos despossuídos.
				
				Como 
				afirmou Sandra Pesavento, essa versão tem “uma função 
				orgânica muito precisa: legitimar e dar coesão ao sistema de 
				dominação vigente e à hegemonia do grupo agropecuarista na 
				sociedade civil. [...] Através da reelaboração do seu passado, 
				os grupos dominantes buscavam fatos que os notabilizassem e 
				dessa forma justificassem o seu predomínio na sociedade” 
				(PESAVENTO, 1985, p. 8).
				
				Por 
				outro lado, em uma reação “espelhar” a essa visão elitista da 
				Revolução Farroupilha, observamos interpretações superficiais, 
				muitas vezes panfletárias, incapazes de compreender o caráter 
				historicamente progressista da luta pela República, pela 
				federação e contra o Império centralista e escravocrata. Caráter 
				progressista que explica a forte adesão à luta farroupilha por 
				parte de negros, índios, mestiços e brancos pobres. Essas 
				análises que “não conseguem enxergar” o sentido progressista da 
				luta farroupilha são anacrônicas e a-históricas.
				
				Ao 
				reduzirem a questão unicamente à direção dessa luta pelas 
				oligarquias rurais gaúchas, desconhecem o momento e as condições 
				históricas em que ela se deu, que inviabilizavam a hegemonia dos 
				setores populares. É o mesmo que negar o caráter progressista da 
				luta pela independência das colônias inglesas da América do 
				Norte, por ela haver sido dirigida pelos grandes proprietários 
				de terras e pela burguesia local. Ou negar o caráter 
				progressista da Revolução Francesa, por ter sido ela 
				hegemonizada pelo Terceiro Estado, isto é, pela nascente 
				burguesia francesa.
				
				Uns e 
				outros ignoram as contradições entre os farroupilhas, expressas 
				na postura de uma maioria progressista e abolicionista que se 
				confrontava com uma minoria conservadora e escravocrata. Ambas 
				as interpretações reproduzem a visão preconceituosa das elites, 
				que só veem o povo como massa de manobra, sem vontade própria, 
				incapaz de protagonizar a sua própria história. Se é verdade que 
				essa luta foi hegemonizada pelos grandes proprietários de 
				terras, não é menos verdade que os principais protagonistas 
				dessa luta foram os negros, índios, mestiços e brancos pobres, 
				que lutaram pela República e por espaços de liberdade.
				
				
				Portanto, ao fazer o balanço da Revolução Farroupilha é preciso 
				romper com as manipulações ideológicas e com os mitos ufanistas 
				— que só dificultam a compreensão da grandeza, das contradições 
				e das limitações da luta farroupilha —, mas sem deixar de 
				resgatar o caráter progressista da sua luta.
				
				Por 
				outra parte, discordamos daqueles que consideram a opção 
				monárquica e imperial – vitoriosa em meados do século XIX – como 
				a única capaz de manter a unidade nacional, e por isso mesmo 
				justificada. A luta dos farrapos e as demais rebeliões coetâneas 
				expressaram alternativas mais avançadas e democráticas, que 
				podiam ter sido vitoriosas.
				
				Mas — 
				como nos ensina Karl Marx —, ainda que a história seja feita em 
				condições e circunstâncias que os homens não determinam, ela é 
				feita pelos próprios homens.
				
				 
				
				* 
				Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do 
				Sul (UFRGS), especialista em História Afro-Asiática pelas 
				Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA). Presidente da Fundação 
				Maurício Grabois no Rio Grande do Sul. Publicou em 2003 “Os 
				Lanceiros Negros na Revolução Farroupilha” e em 2005 
				“Revolução Farroupilha: mais longa revolta republicana 
				enfrentada pelo império centralizador e escravocrata”. Na 
				Câmara de Vereadores de Porto Alegre, foi o autor da Lei que 
				criou o Espaço Lanceiros Negros no Parque Farroupilha. Na 
				Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul foi o autor da Lei 
				que declarou Patrimônio Histórico-Cultural do Rio Grande do Sul 
				o Cerro de Porongos, em Pinheiro Machado, Seu texto sobre 
				os Lanceiros Negros foi indicado pelo Instituto dos 
				Arquitetos do Brasil (IAB) como referência histórica no seu 
				Concurso Nacional para o projeto de um Memorial aos Lanceiros 
				Negros no Cerro de Porongos e dos monumentos aos 
				Lanceiros Negros em Pinheiro Machado e em Porto Alegre.
				
				
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				Anexo 
				
				
				CV-3730
				
				
				Cópia. Reservadíssimo.
				
				Ilmo. 
				Sr. regule V. Sa. suas marchas de maneira que no dia 14 às 2 
				horas da madrugada possa atacar a força ao mando de Canabarro, 
				que estará nesse dia no cerro dos Porongos. Não se descuide de 
				mandar bombear o lugar do acampamento de dia, devendo ficar bem 
				certo de que ele há de passar a noite nesse mesmo acampamento. 
				Suas marchas devem ser o mais ocultas que possível seja, 
				inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso 
				afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter as suas 
				observações sobre o lado oposto. No conflito poupe o sangue 
				brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da 
				Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda 
				nos pode ser útil no futuro. A relação junta é das pessoas a 
				quem deve dar escapula se por casualidade caírem prisioneiras. 
				Não receie da infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem 
				de um Ministro e do seu General-em-chefe para entregar o 
				cartuchame sobre [sic] pretexto de desconfiança dela. Se 
				Canabarro ou Lucas, que são os únicos que sabem de tudo, forem 
				prisioneiros, deve dar-lhes escapula de maneira que ninguém 
				possa nem levemente desconfiar, nem mesmo os outros que eles 
				pedem que não sejam presos, pois V. Sá. bem deve conhecer a 
				gravidade deste secreto negócio que nos levará em poucos dias ao 
				fim da revolta desta Província. Se por acaso cair prisioneiro um 
				cirurgião ou boticário de Santa Catarina, Casado, não lhe 
				reviste a sua bagagem e nem consinta que ninguém lhe toque, pois 
				com ela deve estar a de Canabarro. Se por fatalidade não puder 
				alcançar o lugar que lhe indico no dia 14, às horas marcadas, 
				deverá diferir o ataque para o dia 15, às mesmas horas, ficando 
				bem certo de que neste caso o acampamento estará mudado um 
				quarto de légua mais ou menos por essas imediações em que 
				estiverem no dia 14. Se o portador chegar a tempo de que esta 
				importante empresa se possa efetuar, V. Sá. lhe dará 6 onças, 
				pois ele promete-me entregar em suas mãos este ofício até as 4 
				horas da tarde do dia 11 do corrente. Além de tudo quanto lhe 
				digo nesta ocasião, já V. Sa. deverá estar bem ao fato das 
				coisas pelo meu ofício de 28 de outubro e por isso julgo que o 
				bote será aproveitado desta vez. Todo o segredo é indispensável 
				nesta ocasião e eu confio no seu zelo e discernimento que não 
				abusará deste importante segredo. Deus vos guarde a V. Sá. 
				Quartel-general da Presidência e do Comando-em-chefe do Exército 
				em marcha nas imediações de Bagé. 9 de novembro 1844. Barão de 
				Caxias. Sr. Coronel Francisco Pedro de Abreu, Comandante da 8a Brigada 
				do Exército.
				
				Reservadíssima de Caxias         [no verso] (AHRGS, 1983, p. 
				30-31)