“Farrapo”. Esse nome, criado pelo desprezo, foi nobilitado pela
glória; a inevitável glória da justiça do Tempo transformou o
epíteto injurioso em título de suprema honra. Eram desgraçados,
sim, eram pobres, eram maltrapilhos, aqueles guerreiros que,
para não morrer de fome, contentavam-se com um bocado de carne
crua; acampavam e dormiam ao relento, com a face voltada para as
estrelas; não tinham dinheiro, nem uniforme e não podiam renovar
as botas e os ponchos que o pó das estradas, as balas, as
cutiladas, as chuvas estraçalhavam e apodreciam; – mas prezavam
o seu nome de “Farrapos” e tinham o orgulho da sua pobreza; – e
eram mais ricos assim, possuindo apenas o seu cavalo, a sua
garrucha, a sua lança e a sua bravura. Cenobitas da religião
cívica, anacoretas da guerra, vivendo no imenso e fúlgido
ascetério do “pampa” esses primeiros criadores da nossa
liberdade política não olhavam para si: olhavam para a estepe
infinita que os cercava, para o infinito céu que os cobria, – e
nesses dois infinitos viam dilatar-se, irradiar e vencer no ar
livre o seu grande ideal de justiça e de fraternidade.
(Olavo Bilac)
Eu vi corpos de tropas mais numerosos, batalhas mais disputadas;
mas nunca vi, em nenhuma parte homens mais valentes,
nem cavalheiros mais brilhantes que os da bela cavalaria
rio-grandenses, em cuja fileiras aprendi a desprezar o perigo e
combater dignamente pela causa sagrada das nações. Quantas vezes
eu fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi
realizar por essa viril e destemida gente, que sustentou por
mais de nove anos contra um poderosos Império a mais encarniçada
e gloriosa luta [...]. Oh! quantas vezes tenho desejado nestes
campos italianos um só esquadrão de vossos centauros, avezados a
carregar uma massa de infantaria com o mesmo desembaraço como se
fosse uma ponta de gado!
(Giuseppe Garibaldi)
1.
Introdução
Às
vezes, equivocadamente – por entendermos que o desenvolvimento
das sociedades humanas é regido por leis objetivas –,
consideramos que os processos históricos seguem um curso
inexorável e pré-determinado. Nada mais estranho ao marxismo,
que acentua o papel ativo dos homens na história e a existência
do próprio acaso no devir social.
Assim, a prevalência do Estado monárquico, centralizador e
escravocrata no Brasil da primeira metade do século XIX, longe
de ser algo inevitável, se deu em uma acirrada disputa com
outros projetos sociais alternativos — mais abertos e
democráticos — que defendiam a república, a federação, o fim da
escravidão.
Expressões maiores dessa disputa entre distintos caminhos para o
Brasil foram a Conjuração Baiana (1798); a Revolução Republicana
de Pernambuco (1817); a Confederação do Equador, em
Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí e Pará (1824);
a Cabanada, nos sertões de Pernambuco (1831-1836);
a Cabanagem, no Pará (1835-1837);
a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul (1835-1845);
a Sabinada, na Bahia (1837-1838); a Balaiada,
no Maranhão e Piauí (1838-1841);
as rebeliões liberais de São Paulo e Minas Gerais (1842); e a
Revolução Praieira,
em Pernambuco (1848-1849).
A
maioria dessas rebeliões foi sufocada rapidamente. Só a
Revolução Farroupilha — na então província de São Pedro do Rio
Grande do Sul — conseguiu resistir por mais de nove anos ao
todo-poderoso Império Brasileiro, inclusive constituindo um
Estado republicano independente.
O
Brasil do início do século XIX
O
Brasil vivia a ascensão do café como o seu principal produto de
exportação. Os grandes proprietários escravistas do Vale do
Paraíba do Sul formavam a classe dominante do país. Quando
ocorreu a Independência, eles impuseram uma monarquia unitária e
centralizada, com o objetivo de subjugar as massas escravizadas
— para impedir um novo Haiti — e de submeter as demais
províncias aos seus interesses.
No
Rio Grande do Sul, desenvolvia-se uma economia periférica,
subsidiária da economia central, tendo por base a pecuária
extensiva, voltada essencialmente à produção de charque para
alimentar a escravaria do país. Ali, o peso do centralismo
monárquico fazia-se sentir de diferentes maneiras. O presidente
da província era nomeado pelo Rio de Janeiro e governava em
função dos interesses da aristocracia cafeeira, o que
marginalizava econômica e politicamente a oligarquia gaúcha. Os
interesses expansionistas do Império transformavam a província —
a “fronteira viva” do país — em um permanente campo de batalha
com os vizinhos platinos, com graves prejuízos para a sua
economia.
A
derrota do Exército Imperial na Guerra Cisplatina (1825-1828)
agravou essa insatisfação, seja pela devastação causada pela
guerra, seja pela perda definitiva do Uruguai, o que significou
o fim do acesso dos sul-rio-grandenses às pastagens e aos
rebanhos uruguaios. A isso, somaram-se a taxação de 25% sobre o
charque produzido na província — enquanto o charque platino
pagava apenas 4% para ingressar no Brasil — e os tributos sobre
pastagens, esporas, estribos e rum, que o Império impôs aos
sul-rio-grandenses.
Assim, avolumaram-se as contradições entre os “gaúchos” e o
Império, o que se expressava em um difuso sentimento de
“opressão da província de São Pedro pelo Rio de Janeiro”.
Criou-se, assim, terreno fértil para que proliferassem as ideias
republicanas — predominantes na região do Prata —, combinadas
com aspirações federalistas. É o conjunto desses fatores que
causará o levante de 1835.
2.
A eclosão da Revolução Farroupilha
Em 20
de setembro de 1835, sob a direção de Bento Gonçalves, teve
início a Revolução Farroupilha, com a tomada de Porto Alegre
pelos revoltosos e a fuga do então presidente da província,
Fernandes Braga, para a cidade de Rio Grande, onde estabeleceu o
seu governo.
Inicialmente, os farroupilhas limitaram-se a reivindicar a
substituição de Braga e um maior respeito aos
sul-rio-grandenses. Rapidamente a revolta se estendeu a toda a
província. Em fins de outubro, a maioria das municipalidades
havia reconhecido o governo revolucionário: “Senhor da
província, menos de Rio Grande e São José do Norte, Bento
Gonçalves esperava que o regente Diogo Antônio Feijó
transformasse o Brasil numa federação” (FLORES, 2002, p.
350-351).
Para
pacificar a província, o Império nomeou o rio-grandense Araújo
Ribeiro como presidente e prometeu anistiar os revoltosos, mas a
Assembleia Provincial, onde os republicanos eram cada vez mais
ativos, adiou a sua posse e exigiu maior autonomia para a
província e soluções para os problemas econômicos:
Achavam-se já os revolucionários subdivididos de fato e em três
grupos: o primeiro constituído dos que apenas visavam a
deposição de Fernandes Braga e que aceitavam como seu substituto
Araújo Ribeiro; o segundo, dos que, mesmo se opondo à posse
deste, não admitiam nem a república nem uma separação [...]; o
terceiro, de uma minoria ativista e extremada, que propugnava a
separação do governo da Regência numa república confederada
futura, com as demais províncias. [...] Bento Gonçalves ainda
procurava manter-se numa posição que lhe permitisse ficar entre
os do segundo e terceiro grupo [...; o] periódico Continente,
dos do citado terceiro grupo, abrira já suas baterias em prol da
república, declarando que [...] “quando o governo não preenche
suas obrigações e não promove a felicidade do povo, [... este]
tem o direito de o mudar, abolir, reformar como lhe convier e
organizar outro baseado em princípios que sejam mais conformes
às suas circunstâncias” [...,] o que de momento se impõe ao Rio
Grande do Sul, seguindo o modelo dos Estados Unidos
(WIEDERSPAHN, 1984, p. 93).
Diante desses fatos, Araújo Ribeiro decidiu estabelecer o seu
governo em Rio Grande, cidade que, junto com São José do Norte,
estava nas mãos dos imperiais. Com o apoio de Bento Manuel, que
se passou para os imperiais, e reforços do Rio de Janeiro, os
legalistas passaram a dominar as águas interiores, com a ajuda
da esquadra do inglês John Grenfell, além de retomaram Porto
Alegre.
3.
A proclamação da República Rio-Grandense
Apesar de não haver unanimidade entre os farroupilhas quanto à
república e à separação do Império, a perda de Porto Alegre, a
prisão do governo revolucionário e revezes militares dos
farrapos precipitaram a proclamação da República Rio-Grandense,
para manter acesa a chama revolucionária:
Compreendendo a gravidade da situação e sem notícias pessoais de
Bento Gonçalves, resolveram o major João Manuel de Lima e Silva
e Domingos José de Almeida assumir a iniciativa por conta
própria, enviando emissários para induzirem ao coronel Antônio
de Sousa Neto a proclamar imediatamente a república, tão logo se
apresentasse uma oportunidade adequada. Foram esses emissários
dois dos que haviam aceito a solução proposta nas reuniões de
Pelotas, os tenentes-coronéis Joaquim Pedro Soares e Manuel
Lucas de Oliveira, amigos e companheiros de fileiras de Sousa
Netto, a cujas argumentações este acabou anuindo. (WIEDERSPAHN,
1984, p. 113-114)
Aproveitando a importante vitória farrapa na Batalha de Seival
–
onde os imperiais foram desbaratados –, Antônio Sousa Neto
proclamou, em 11 de setembro de 1836, a república e a separação
do Império:
“os
rio-grandenses estão dispostos, como nós, a não sofrer por mais
tempo a prepotência de um governo tirânico, arbitrário e cruel,
como o atual. Em todos os ângulos da província não soa outro eco
que o de independência, república, liberdade ou morte.
[...] Nós que compomos a 1ª Brigada do Exército Liberal devemos
ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência
desta província, a qual fica desligada das demais do Império e
forma um Estado livre e independente, com o título de República
Rio-Grandense [...]. Viva a República Rio-Grandense! Viva a
independência! Viva o Exército republicano rio-grandense!”
(SOUSA NETO apud FAGUNDES, 1989, p. 154)
Em 20
de setembro, a Câmara de Jaguarão aprovou a “deliberação da
maioria da Província, respeito a ficar desligada da família
brasileira, e instituindo um governo republicano, e sendo
aprovada com unânime aplauso de toda a Câmara esta nova
instituição” (FAGUNDES, 1989, p. 155).
Em 4
de outubro, Bento Gonçalves – cercado por Bento Manuel e pela
esquadra de Grenfell, na ilha do Fanfa – rendeu-se e foi mandado
preso para a Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro,
descumprindo-se os termos da rendição. Após, ficou preso no
Forte do Mar, em Salvador.
Em
novembro, a Câmara de Piratini referendou a proclamação da
República:
O
grande ato coletivo [...] que daria caráter definitivo à
República [...] foi marcado para a sessão da Câmara Municipal do
dia 5 de novembro, em Piratini [...]. Abrindo a sessão, o
presidente declarou que o seu motivo era “a necessidade de
proclamar-se a independência política, [...] declarar a
província desligada da obediência que devia ao governo do Brasil
e elevá-la â categoria de Estado livre, constitucional e
independente, [...] podendo ligar-se por laços de federação
àquelas províncias do Brasil que adotarem o mesmo sistema de
governo e quiserem se federar a este Estado” (FAGUNDES, 1989, p.
189).
Em 6
de novembro, foi instalado em Piratini o governo republicano, e
Bento Gonçalves foi eleito presidente, com quatro
vice-presidentes. Como Bento Gonçalves estava preso, José Gomes
de Vasconcelos Jardim assumiu a Presidência interina. O mineiro
Domingos José de Almeida foi nomeado ministro do Interior (e
interinamente da Fazenda); o carioca José Mariano de Mattos,
ministro da Guerra (e interinamente da Marinha); o mineiro José
Pinheiro de Ulhoa Cintra, ministro da Justiça (e interinamente
de Relações Exteriores). O carioca João Manoel de Lima e Silva —
tio do futuro duque de Caxias — foi promovido a general e
comandante do Exército farroupilha. Dias depois, Bento Gonçalves
também foi promovido a general. Em abril de 1837, Antônio Neto —
também promovido a general — assumiu o comando do Exército
farrapo, devido a ferimentos de João Manuel. Calvet Fagundes
observa:
Dos
três ministros nenhum é gaúcho: dois são mineiros, e o outro,
carioca. E o primeiro general nomeado não foi o líder inconteste
do movimento, mas o carioca João Manuel. Dos quatro
vice-presidentes, dois apenas são gaúchos. Penso, por isso, que
a Revolução Farroupilha foi, na verdade, uma revolução nacional,
dentro de uma província (FAGUNDES, 1989, p. 191-192).
Após
alguns revezes, os farrapos retomaram a iniciativa e — com base
na guerra de movimentos — dominaram quase toda a província. Dos
14 municípios, os imperiais só controlavam Porto Alegre, Rio
Grande e São José do Norte. O trânsfuga Bento Manuel
lamentou-se: “Parece-me que cada capim é um republicano”.
Segundo Calvet Fagundes, “a revolução, neste primeiro quartel
de 1837, havia atingido a sua segunda fase – a de insurreição
popular, deixando de pertencer, como até aqui, apenas aos
‘coronéis’ fazendeiros e oficiais superiores da tropa regular.”
(FAGUNDES, 1989, p. 200)
É
nesse contexto que, em 10 de setembro de 1837, aconteceu a fuga
de Bento Gonçalves do Forte do Mar — com a ajuda dos maçons e
dos “sabinos” baianos —, e ele retornou ao Rio Grande do Sul,
assumindo a Presidência da República e o comando do Exército
farroupilha.
Em
abril de 1838, em uma importante vitória, três mil farroupilhas
retomaram Rio Pardo – que fora ocupada pelos imperiais – e
derrotaram os 1.700 legalistas que lá estavam, protegidos pela
esquadrilha de canhoneiras de Grenfell. Com a vitória, os
revolucionários se assenhoraram de 8 peças de artilharia, 1.000
armas de infantaria, 8.000 cartuchos, víveres e valores da
pagadoria imperial. Entre mortos e feridos, os legalistas
perderam 300 homens e tiveram 700 prisioneiros. O resto fugiu
rio abaixo, na esquadrilha de Grenfell. Os farroupilhas tiveram
200 baixas, entre mortos e feridos e ficaram donos de Rio Pardo.
Em 29
de agosto de 1838, Bento Gonçalves e Domingos José de Almeida
lançaram o “Manifesto do presidente da República Rio-Grandense
em nome de seus constituintes”, que é o documento que melhor
esclarece os motivos da República Rio-Grandense:
Há
muito desenvolvia o governo imperial uma parcialidade imérita,
um desprezo insolente e revoltante a respeito da nossa província
[...]. Agressor ou agredido, o governo nos fazia sempre marchar
à sua frente: disparávamos o primeiro tiro de canhão e éramos o
último a recebê-lo [...;] transformou-se o Rio Grande numa
estalagem do Império [...;] o arbítrio nos tirava com violência
em gado vacum e cavalar e em exigências de todo gênero mil vezes
mais do que cumpria quotizar-nos proporcionalmente [...;] O
governo imperial [...] esmagou a nossa principal indústria
[...]. A carne, o couro, o sebo, a graxa, além de pagarem nas
alfândegas o duplo do dízimo de que se propuseram aliviar-nos,
exibiam mais quinze por cento em qualquer dos portos do Império
[...;] nos puseram desde esse momento na linha dos povos
estrangeiros; desnacionalizaram a nossa província e de fato a
separaram da comunhão brasileira. Pagávamos todavia oitenta réis
do dízimo do couro e mais vinte por cento sobre o preço
corrente, nós que já íamos vencidos na venda desses gêneros pela
concorrência dos nossos vizinhos [...]. Era o Rio Grande uma
província de primeira ordem se se tratava de concorrer para as
despesas gerais, entrava quase na última quanto à sua
representação no Congresso Geral [...;] leis insensatas e
atrozes [...]. Tal era a lei da criação de um corpo policial
[...] organizado, disciplinado e comandado ad libitum do
presidente. Tal era a outra que estabeleceu o imposto de dez mil
réis sobre légua quadrada de campo e criou os direitos sobre os
chapeados, as esporas e estribos dos nossos cavaleiros [...;] um
único meio se oferecia à nossa salvação [...:] a nossa
independência política e o sistema republicano [...;] os
rio-grandenses, reunidos às suas municipalidades, solenemente
proclamaram e juraram a sua independência política, debaixo dos
auspícios do sistema republicano, dispostos todavia a
federarem-se, quando nisso se acorde, às províncias irmãs que
venham a adotar o mesmo sistema (GONÇALVES; ALMEIDA apud SILVA,
1985, p. 282-290).
Em
1838, o republicano italiano Giuseppe Garibaldi pôs-se a serviço
da República Rio-Grandense e organizou a Marinha farroupilha na
Lagoa dos Patos, onde passou a atacar os barcos que navegavam
entre Rio Grande e Porto Alegre, desafiando o domínio imperial
nas águas interiores. Seu companheiro Luigi Rossetti passou a
editar em Piratini, junto com Domingos José de Almeida, o jornal
O Povo — órgão do governo da República Rio-Grandense —,
que entre 1838 e 1840 publicou 160 números.
No
seu número 3, O Povo conclamou os brasileiros a lutar
pela República:
O
Império desaparece. A República vai ganhando o terreno que ele
perde. E então o melhor é lhe dar o golpe mortal e salvar a
nação. O povo brasileiro [...] está a par de seu século. O
século é revolucionário e republicano [...;] requer uma
liberdade mais vasta, aquela liberdade republicana. [...]
Preconizai a República; inspirai no povo [...] as doutrinas
democráticas que vão invadindo o mundo intelectual e deixai
sumir o Império (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE, 1838, p. 4).
No
ano de 1839, Garibaldi protagonizou uma verdadeira epopeia, ao
atacar Laguna por mar, contribuindo à proclamação da República
Catarinense. Como os imperiais dominavam a saída da Lagoa dos
Patos para o mar, na barra de Rio Grande, Garibaldi decidiu
transportar os seus navios por terra, até Tramandaí, no litoral
norte do Rio Grande do Sul. Os barcos foram transportados por
mais de 80 km, em enormes carretas, cada uma puxada por uma
centena de bois. Após seis dias de viajem, os navios chegaram à
Tramandaí, onde ganharam o mar.
Em 10
de fevereiro de 1840, Bento Gonçalves convocou a Assembleia
Constituinte e Legislativa, para elaborar a Constituição da
República. As eleições ocorreram em março de 1840 e nela votaram
3.680 eleitores de Caçapava do Sul, Alegrete, Jaguarão,
Piratini, Triunfo, Cachoeira do Sul, Cruz Alta, São Borja e
Lages. Os votos não puderam ser apurados em seguida, pois
Caçapava, sede da República, foi atacada e precisou ser
evacuada. Só em 1º de dezembro de 1842 os deputados
constituintes conseguiram reunir-se, em Alegrete.
4.
Separatismo ou republicanismo?
Uma
das maiores polêmicas sobre a Revolução Farroupilha é a
determinação do seu caráter: separatista ou republicano. Entendo
que ela foi uma luta essencialmente republicana e federalista,
contra a monarquia centralista existente no Brasil. Inclusive,
os farrapos propunham a união com as demais províncias
brasileiras, em uma confederação de repúblicas. O seu
“separatismo” foi algo conjuntural. Isso não significa, porém,
ignorar que nem todos os farroupilhas eram republicanos e que
existiam sérias contradições entre eles.
Desde
o início, os farrapos mantiveram articulação com as demais
revoltas republicanas e liberais e conclamaram os brasileiros a
se insurgirem contra o Império, para derrotar a monarquia e
adotar o sistema federativo: “A jovem república proclamou o
desejo de se unir às outras províncias por laços federativos,
proclamação que também foi feita por outras municipalidades que
aderiram ao levante — Alegrete (24/6/1837), Cruz Alta (1/8/1837)
e Caçapava (3/3/1839)” (LOPEZ, 1992, p. 40).
Em
janeiro de 1839, O Povo propôs a formação de uma
confederação de repúblicas brasileiras:
Onde
estão os pernambucanos de 1824? Onde, os fluminenses de 1831?
Que fazem os baianos de 1837? Que fazem esses paulistas
orgulhosos de suas descobertas? Os paraenses, os sergipanos e os
cearenses, os de Mato Grosso, os alagoanos ardentes? [...]
Acreditais por acaso que aqui se combate puramente por nós? Ah!
Que vos enganais, se fôssemos vencidos, que seria de vós,
brasileiros de todas as províncias do Império [...]? A república
é a tábua de salvação do Brasil; só ela pode assegurar à vossa
posteridade o gozo de seus direitos e dos imensos produtos de
nosso território. [...] Uni-vos a nós. A confederação das
repúblicas brasileiras é altamente reclamada pelas
circunstâncias do país, pelas exigências da América, pelos
interesses do mundo em geral (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE 1839a, p.
2-3).
Após
Lages declarar-se favorável à revolução e pedir o apoio da
República Rio-Grandense, os farroupilhas avançaram por terra e
mar para a província de Santa Catarina e, junto com os
republicanos catarinenses, tomaram Laguna, proclamando em julho
de 1839 a República Catarinense. Joaquim Teixeira Nunes,
comandante dos Lanceiros Negros, afirmou: “Proclamando a
independência do vosso país, não penseis que nisso afetais os
interesses do Brasil, do solo sagrado dos brasileiros; pois que
a República Rio-Grandense [...] nada tem tanto a peito quanto a
federação dos Estados seus irmãos.” (NUNES apud FAGUNDES,
1989, p. 260) E o General Antônio Neto complementou: “Que
resta, pois, ao Brasil? [...] o reconhecimento da independência
rio-grandense – ou melhor, a federação das províncias, única
maneira de manter um centro de união no malfadado Império de
Santa Cruz”. (NETO apud FAGUNDES, 1989, p. 260)
Referindo-se à recém criada República Catarinense, o jornal
O Povo
deixou claro que não ser intenção dos farrapos integrá-la à
República Rio-Grandense, e sim de estabelecer uma aliança entre
elas, para formar uma confederação de repúblicas:
Anunciamos aos nossos leitores a chegada nesta capital [... do]
enviado extraordinário do governo catarinense [...] encarregado
da celebração do tratado que servirá de base à Confederação
Brasileira [...]. Das bases dessa aliança pendem os destinos do
Brasil, visto que, como pensamos, ela de tal forma deve enlaçar
os interesses das diversas províncias do agonizante Império que,
ao separarem-se daquela associação ominosa, encontrem não só
vigoroso apoio, como ainda um religioso respeito às garantias e
aos direitos a cada uma peculiares (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE,
1839d, p. 1).
Em
seu manifesto de 24 abril de 1840, dirigido aos “brasileiros”,
Bento Gonçalves conclamou as demais províncias a se levantarem
contra o governo Imperial e deixou claro que a luta dos
rio-grandenses era a mesma luta das demais províncias
Brasileiros que iludidos defendeis a causa do Império! [...]
Proclamastes a vossa independência política e ainda hoje gemeis
curvados sob o jugo abominável de vossos senhores, sob o
predomínio de lusitanos [...] mostrai ao mundo que ainda pulsa
em vossos peitos o fogo elétrico do patriotismo, que ainda sois
os mesmos que derramastes há pouco vosso sangue em defesa da
malfadada Bahia e do Pará [clara referência à Sabinada e à
Cabanagem] [...]. Não hesiteis; a sorte dos baianos e dos
paraenses acha-se identificada com a nossa própria sorte; sereis
tratados e recebidos como qualquer de nós. (SILVA, 1985, p. 292)
Da
mesma forma, em 13 de julho de 1842, Bento Gonçalves saudou a
Revolta Liberal de São Paulo e convoco os rio-grandenses a
persistirem na luta para libertar todo o Brasil:
Rio-grandenses! Raiou a aurora de vossa felicidade! [...] os
briosos paulistas, em defesa de sua Pátria, começaram a guerra
contra o tirano do Brasil! Já as falanges paulistanas marcham
sobre o inimigo comum, já os satélites da escravidão têm
recebido sobre suas criminosas cabeças o afiado gume das espadas
dos livres [...] O Brasil em massa se levanta como um só homem
para sacudir o férreo jugo do segundo Pedro. É o momento de
mostrardes ao mundo que sois rio-grandenses. [...] e não só
salvareis a Pátria como sereis os libertadores do Brasil
inteiro. Viva a liberdade! Vivam os rio-grandenses! Vivam nossos
irmãos paulistas! (SILVA, 1985, p. 294)
Em 11
de março de 1843, Bento Gonçalves voltou a defender uma
República Federal que reunisse todas as províncias que adotassem
o regime republicano:
A
causa que defendemos não é só nossa, ela é igualmente a causa de
todo o Brasil [...]. Uma
república federal baseada em sólidos princípios de justiça e
recíproca conveniência uniria hoje todas as províncias irmãs,
tornando mais forte e respeitável a nação brasileira [...;]
enquanto subsistir entre vós a monarquia, não gozareis as
doçuras da paz nem sereis felizes; quebrai, ainda é tempo, os
grilhões desonrosos que roxeiam vossos pulsos e vinde conosco
sustentar nos campos do sul [...] a paz, a felicidade e o
esplendor da nação brasileira (SILVA, 1985, p. 295).
É
importante referir, ainda, a destacada participação na luta
farroupilha dos republicanos italianos Tito Livio Zambeccari —
secretário particular de Bento Gonçalves —, Luigi Rossetti —
editor do jornal O Povo — e Giuseppe Garibaldi —
comandante da Marinha farroupilha.
Outra
evidência de que a luta não tinha caráter puramente
“regionalista” é que importantes líderes farrapos provinham de
outras províncias, como os cariocas João Manuel de Lima e Silva
— o primeiro general farroupilha — e José Mariano de Mattos —
presidente da República Rio-Grandense por dois anos e duas vezes
ministro da Guerra e da Marinha. Assim como os mineiros Domingos
José de Almeida — ministro do Tesouro — e José Pinheiro Ulhoa
Cintra — ministro da Justiça e ministro da Guerra e da Marinha.
5.
A participação de negros, índios, mestiços e brancos pobres na
luta farroupilha
Desde
o início, a Revolução Farroupilha teve forte participação de
negros, índios, mestiços e brancos pobres. Os próprios imperiais
informam – logo após o início da rebelião – que “a força dos
revoltosos que se apresentaram próximo à Azenha e que depois
entraram na Cidade de Porto Alegre, não excedia de 80 a 90
pessoas, índios, negros e mulatos, a maior parte armados de
lanças.” (AHRGS, 1985, p.131).
E, no
dia em que começou a revolta, o Dr. Hillebrand, líder dos
colonos alemães de São Leopoldo afirmou: "passo a comunicar
aos meus patrícios alemães que um partido, pela maior parte
composto de negros e índios, está ameaçando as autoridades desta
Província." (BENTO, 1976, p. 172).
Em 12
de setembro de 1836, João Manuel de Lima e Silva tomou Pelotas e
libertou centenas de escravos, “criando em Pelotas [...] o
famoso 1º Corpo de Lanceiros de Primeira Linha farroupilha, num
desafio frontal à política escravocrata do Império, pois
declarara para sempre livres os que assentassem praça na mesma
como voluntários” (WIEDERSPAHN, 1984, p. 115). Spencer Leitman
acrescenta:
Terminada a batalha, os farrapos armaram cerca de 400 escravos
que haviam caído em suas mãos, pois sentiam a necessidade de
aumentar seu Exército, e teriam libertado a todos se os
charqueadores não tivessem fugido para Rio Grande levando os que
com eles tinham ficado. [...] João Manuel foi o principal
promotor do alistamento dos libertos, mestiços errantes e
escravos no Exército republicano que estava se formando. Alguns
meses antes de sua vitória em Pelotas, ele havia organizado
alforriados numa unidade de infantaria (LEITMAN, 1985, p. 64).
Contestando críticas a essa sua decisão, João Manuel destacou a
bravura dos negros e sua disciplina militar, já demonstradas na
Bahia durante a Guerra de Independência e em Pernambuco em 1824.
Em correspondência a Domingos José de Almeida, Ministro do
Tesouro dos farrapos, João Manuel defendeu sua decisão,
argumentando que os libertos haviam passado airosamente pelo
teste das batalhas, combatendo ao lado de orgulhosos veteranos
nas Campanhas Cisplatinas e no glorioso 12 de setembro, salvando
a “honra do exército”, em um recente combate entre farrapos e
legalistas.
O Corpo de Lanceiros Negros era formado por negros livres ou
alforriados pela República — com a condição de lutarem pela
causa republicana — e ex-escravos dos imperiais. Em sua grande
maioria, foram recrutados entre os negros campeiros e domadores
das serras de Tapes e do Herval – municípios de Canguçu,
Piratini, Caçapava, Encruzilhada, Arroio Grande.
De
início, os Lanceiros Negros foram comandados pelo Tenente
Coronel Joaquim Pedro Soares,
depois,
pelo Major Joaquim Teixeira Nunes.
Demonstrando sua importância, em
9
de novembro de
1837, o general-em-chefe do Exército
farroupilha,
Antônio de Sousa Neto,
expediu ofício
elogiando o Major
Joaquim Teixeira Nunes e
os
seus
“bravos
lanceiros libertos”,
pela vitória em 31
de outubro de1837
(FLORES, 2004, p. 50).
Verdadeira “tropa
de choque”
do exército farroupilha, os Lanceiros
Negros jogaram importante papel na
expedição a Laguna e na
constituição
da República Catarinense.
O historiador imperial Tristão de Alencar Araripe, crítico feroz
dos farrapos, afirmou:
agora
a República adicionava essa força permanente, organizando o
batalhão, que denominou de lanceiros, composto dos escravos, que
por violência os rebeldes arrebatavam das estâncias dos
legalistas, ou que voluntariamente procuravam os estandartes da
rebeldia, convidados pela esperança da libertação, ou que
compravam aos possuidores amigos do governo republicano. De três
fontes, pois, provinham os escravos alistados no Exército
rebelde: extorsão aos adversários, convenção com amigos, convite
ao oprimido! Foi o primeiro meio que trouxe às armas da rebeldia
o maior número de escravos.
[...] a província do Rio Grande do Sul não possuía escravos em
número avultado; do contrário, na escravidão achariam os
rebeldes poderoso auxilio para manter a causa que eles
denominavam da liberdade (ARARIPE, 1986, p. 49-50).
Araripe percebeu com acuidade o importante papel que os negros
libertos jogavam na luta dos farrapos, pois “proclamando a
liberdade dos escravos que viessem defender a liberdade dos
republicanos, as vítimas da opressão social afluíram e puderam
os generais da república ter um certo número de homens que
formavam a base da sua força militar”. Ao mesmo tempo,
celebrou que o Rio Grande do Sul não tivesse uma numerosa
escravaria pois, senão “teria a rebeldia encontrado possante
milícia para a sua obra separatista; e muito provavelmente a
separação teria se consumado”. (ARARIPE, 1986, p. 86-87).
Prossegue Araripe: “proclamando a liberdade dos escravos que
viessem defender a liberdade dos republicanos, as vítimas da
opressão social afluíram e puderam os generais da República ter
um certo número de homens que formavam a base da sua força
militar” (ARARIPE, 1986, p. 86).
Spencer Leitman complementa: “Quando a guerra terminou, os
farrapos tinham duas divisões de negros em suas fileiras, uma de
infantaria e outra de cavalaria, totalizando mil homens. De
acordo com os cálculos do Exército imperial, os negros compunham
de um terço à metade do Exército rebelde” (LEITMAN, 1985, p.
65). Ele também chama a atenção para a participação de outros
segmentos excluídos na luta farroupilha:
Além
dos escravos, outros grupos de párias sociais preencheram as
brechas do Exército dos farrapos. Eles vinham em busca de
aventura e de fortuna [...]. Não raro, porém, eram indivíduos
que apoiavam a formação de um Estado republicano federado.
Gaúchos, índios, negros livres e escravos fugidos do Uruguai,
onde estavam sujeitos às práticas de recrutamento forçado dos
coronéis uruguaios e brasileiros, que ali operavam com o
objetivo de abrir uma segunda frente contra os rebeldes
(LEITMAN, 1985, p. 68).
Em
nota de rodapé, LEITMAN esclarece que os negros farrapos atuavam
“em vários setores da economia rebelde como tropeiros,
mensageiros e trabalhadores de manutenção geral [...,] em
tarefas como fabricação de pólvora, cultivo de fumo e erva mate
que o governo havia implantado” (LEITMAN, 1985, p. 69).
E
Júlio Chiavenato reforça:
era fácil
recrutar escravos, pois eles até esperavam a chegada dos
farrapos para entrar num Exército que os
“libertaria”.
Lutar ao lado dos farroupilhas era uma oportunidade concreta de
liberdade para os escravos. Não faltavam negros que fugiam dos
seus senhores no Uruguai para engrossar as forças gaúchas
(CHIAVENATO, 1988, p. 51).
É
reveladora a carta do dono de um escravo fugido que – em
processo datado de 1837 – acusou a um velho que lhe havia dado
refúgio: “Este coito e apoio dado pelo tal velho, em
companhia d'outros mulatos também do seu oficio, em mistura com
as danadas e perniciosas máximas espalhadas com a detestável
Revolução, penetraram não só em muitos brancos, mas na classe
mista forros e escravos, que desde logo se julgaram libertos!”
(MOTTA, 1985, p. 132).
A
historiadora Margaret Bakos nos relata que as instruções de
alistamento e recrutamento da Secretaria de Negócios de Guerra
do Governo Republicano de 1837, determinavam que a seleção dos
candidatos devia ser feita tendo por base a sua boa conduta,
robustez, patriotismo e adesão à causa republicana. Eram
recrutados solteiros, entre 18 e 35 anos, brancos, pardos,
índios e pretos libertos. Um cidadão podia eximir-se de servir
na guerra oferecendo um escravo negro, com carta de alforria,
para lutar no seu lugar. Muitas pessoas testemunharam, após o
conflito, que os farroupilhas incentivavam a insurreição dos
escravos negros, com o objetivo de incorporá-los às fileiras
revolucionárias:
Agostinho
José de Menezes denunciou o fato em Pelotas, onde, segundo ele,
cerca de [sic]
304
escravos negros foram desviados de seus proprietários pelos
farrapos em troca de promessas de liberdade. [...] Azevedo e
Souza relata fatos que implicam os farrapos com insurreições de
escravos negros em Pelotas [...].
Manoel Jubo Tureiro Barreto e José Ignácio do Saldo confirmam
tudo e Joaquim José Maria Panot ainda acrescenta que os farrapos
fizeram grandes reuniões da escravatura, principalmente na
cidade de São Francisco de Paula (BAKOS, 1985, p. 90-91).
Caldre e Fião afirma: “Os rebeldes (farrapos) chamaram ao seu
exército os escravos, de que fizeram quatro batalhões e alguns
esquadrões de cavalaria. [...] Durante a guerra, os senhores
sofreram estrondosas vinganças e conheceram bem o valor destes
inimigos. (CESAR, 1976, p. 3).
Giuseppe Garibaldi, em suas Memórias, nos fala da
importante participação de negros e mestiços na luta: “a
gente que me acompanhava era uma verdadeira chusma cosmopolita,
composta de homens de todas as nações e de todas as cores. Os
americanos na sua maior parte eram negros livres ou mulatos e,
via de regra, os melhores e mais fiéis [...]. Nossa
infantaria, na qual todos, menos os oficiais, eram homens de
cor, era excelente e ansiava o combate geral” (GARIBALDI,
1910, p. 66-67, 131, tradução minha).
Ao
relatar a Batalha de Taquari (1840) – onde 3.500 republicanos
enfrentaram 5.000 imperiais, com um resultado indefinido –,
Garibaldi destacou a combatividade dos Lanceiros Negros:
Já os
terríveis lanceiros [...], todos livres e todos domadores de
cavalos, haviam executado um movimento de avanço, envolvendo o
flanco direito do inimigo [...]. Os valentes livres, imponentes
por sua ferocidade, se punham mais firmes do que nunca, e aquele
incomparável pelotão, constituído por escravos alforriados pela
República, selecionados entre os mais hábeis domadores de
cavalos da província, todos negros, salvo os oficiais
superiores, se assemelhavam a uma verdadeira floresta de lanças.
O inimigo jamais havia visto pelas costas esses verdadeiros
filhos da liberdade, que tão bem combatiam por ela. Suas lanças,
mais longas que o normal, suas caras negríssimas, seus robustos
membros, endurecidos pelos constantes e fatigantes exercícios, e
a sua perfeita disciplina infundiam terror ao inimigo
(GARIBALDI, 1910, p. 132, tradução minha).
Em resposta à crescente participação de negros nas tropas
republicanas, os imperiais decretaram, em novembro de 1838, a
chamada
Lei da Chibata:
“Artigo 1° — todo escravo que for preso e tiver feito parte
das forças rebeldes será logo ali,
ou no lugar mais próximo em que possa ter lugar,
correcionalmente punido com
duzentos
a mil açoites, [...] independentemente de processos.”
Em contrapartida, prometiam a liberdade para todos que se
entregassem aos imperiais: “Artigo 2º — Os escravos que [...,]
abandonando o seu partido,
se apresentarem ao
general
em
chefe
ou às autoridades que este designar, ficam anistiados e isentos
de todo serviço forçado e ser-lhes-á
passada a carta de alforria.”
(REPÚBLICA RIO-GRANDENSE,
1839c,
p. 1). O revide dos republicanos foi exemplar e esclarece o
pensamento majoritário dos
chefes
farroupilhas em relação à escravidão:
Tendo o tirânico
governo
do Brasil [...] determinado ao intruso e intitulado presidente
da Província do Rio Grande de São Pedro a aplicação de 200 a 1.000
açoites a todo homem de cor que,
livre do cativeiro, em conformidade com as leis desta República,
tiver feito parte de sua força armada e vier a cair prisioneiro
das tropas chamadas legais, desprezando
aquele imoral governo toda a espécie de processo e formalidade
judiciária para a qualificação daquele suposto crime.
Quando
em obediência às sagradas leis da humanidade,
às
luzes do
presente
século e aos verdadeiros interesses dos cidadãos do
Estado, é
que o
governo
do mesmo
passou a libertar os cativos aptos para
as
armas, oficinas e colonização, a fim de acelerar, de pronto, a
emancipação dessa parte infeliz do gênero
humano. E, isso, com o grave sacrifício da Fazenda
Pública, pois
todos
os
proprietários
que exigiram a indenização desses cativos, a receberam de pronto
ou receberam documento para indenização oportuna. O presidente
da República,
para reivindicar os direitos inalienáveis da humanidade, não
consentirá que o homem livre rio-grandense, de qualquer cor com
que os acidentes da natureza o tenham distinguido, sofra,
impune e não vingado, o indigno, bárbaro, aviltante e afrontoso
tratamento que lhes prepara o infame
governo
imperial.
Em represália à provocação,
decreta: Artigo
único:
Desde o momento em que houver notícia certa de ter sido açoitado
um homem livre de cor a soldo da República pelo
governo
do Brasil, o
general
comandante
de Exército ou o comandante de qualquer
divisão
tirará a sorte entre os oficiais imperiais, de qualquer patente,
nossos prisioneiros,
e fará passar pelas armas aquele oficial que a sorte designar (REPÚBLICA
RIO-GRANDENSE,
1839b,
p.
2).
O decreto deixa claro que: 1) os negros engajados nas tropas
republicanas eram livres; 2) a libertação de escravos também
abrangia os que trabalhavam nas “oficinas e colonização”; 3)
se
um negro farroupilha fosse açoitado, um oficial imperial preso
seria morto, algo inimaginável na sociedade escravista de então.
A postura farroupilha contrastava com o desprezo escravista e
racista dos imperiais, expresso pelo presidente Saturnino de
Souza e Oliveira Macedo, ao
avaliar
o combate de São José do Norte:
O inimigo repelido teve 200 mortos,
e nós,
cem;
mas ele teve 200 escravos mortos e nós tivemos, além de bons
soldados e inferiores,
dois
distintos capitães do 2º
Batalhão,
um
tenente-coronel
de
artilharia,
um
capitão-tenente da armada [...].
E, porventura, cada um desses beneméritos oficiais deve entrar
na balança com um dos negros de Bento Gonçalves, insurrecionados
contra seus senhores? Deveria um só deles ser sacrificado pelos
200 negros, sem que se ganhasse outra vantagem? (OLIVEIRA, 1986,
p. 121)
Ressalte-se, ainda, que alguns dos mais destacados líderes
farrapos eram negros ou pardos, entre eles Domingos José de
Almeida e José Mariano de Mattos.
6.
A divisão dos farroupilhas ante a abolição da escravidão
Outra
questão controversa em relação à luta farroupilha diz respeito à
sua atitude em face da abolição da escravidão. Em relação a esse
tema, não há uma resposta unívoca — “sim” ou “não”. De um lado
estavam setores progressistas, que defendiam a abolição geral da
escravidão. De outro, os que aceitavam a libertação dos escravos
que aderissem à luta, mas se opunham com veemência à libertação
geral dos escravos.
No
Rio Grande do Sul, o abolicionismo teve dois precursores. Um foi
Hipólito José da Costa, patrono da imprensa brasileira,
perseguido pela Inquisição, que publicava em Londres o
Correio Braziliense (1808-1822),
primeiro jornal brasileiro. O outro foi o charqueador José
Antônio Gonçalves Chaves, simpático aos farroupilhas e amigo de
Domingos José de Almeida. Ambos defendiam a abolição da
escravidão.
Nas
páginas do Correio Braziliense, Hipólito José da Costa
escreveu:
A
escravidão é um mal para o indivíduo que a sofre e para o Estado
aonde ela se admite. [...] É ideia contraditória querer uma
nação ser livre [...] e manter dentro de si a escravidão [...;]
um homem educado com escravos não pode deixar de olhar para o
despotismo como uma ordem de coisas naturais [...;] a maioria
dos homens que são educados com escravos deve ser inclinada à
escravidão e se habitua a olhar para seu inferior como escravo,
acostuma-se também a ter um superior que o trate como escravo
[...]. Da continuação da escravatura no Brasil deve sempre
resultar uma educação que fará os homens menos virtuosos e mais
suscetíveis de submeterem-se ao governo arbitrário de seus
superiores (COSTA apud BENTO, 1976, p. 239-240).
E
Antônio Gonçalves Chaves, em suas Memórias ecônomo-políticas
sobre a administração pública do Brasil, publicadas em
1822, apontou a escravidão como “inconciliável com a economia
política moderna” (CHAVES, 1978, p. 59). Além de fazer a
crítica moral à escravidão, Chaves chamava a atenção para a
baixa produtividade do trabalho escravo e sua inadequação à
indústria, à divisão do trabalho e ao uso de tecnologias
avançadas:
Não
posso de forma alguma divisar a menor vantagem para as nações
modernas por via da escravidão [...]. Como há de um homem livre
associar-se na cultura da terra ou em outro qualquer ramo de
trabalho com um homem cativo [...]? E se é só a classe escrava
que privativamente deve fazer o trabalho da agricultura e artes
pesadas, como se poderão adiantar os produtos do Brasil? Não
pode, com este terrível sistema, prosperar a agricultura, nem
pode nascer a indústria [...]. Nada pode cooperar mais
eficazmente para os trabalhos produtivos de uma nação do que a
subdivisão do mesmo trabalho [...;] o escravo é ao mesmo tempo
lacaio, boleeiro ou carpinteiro [...]; como poderá haver
subdivisão do trabalho? [Com a] proibição absoluta na importação
de escravos, a indústria irá aparecendo entre nós [...;] a mesma
classe escrava subministrará, no progresso de sua emancipação,
braços não manietados para os diferentes ramos em que forem mais
peritos (CHAVES, 1978, p. 58-77).
Sem
dúvida, essas ideias influenciaram os principais líderes
farrapos:
A censura contra um tráfico tão escandaloso, tão bárbaro e tão
desumano, [...] todos os jornais do mundo
civilizado
a têm
feito; lançaram-se contra ele todos os filósofos e todas as
ilustrações; diferentes governos celebraram com o Brasil
tratados para o abolir. [...] Há muito tempo que a opinião
pública, a moral e a religião gritam altamente contra
contrabando tão ignóbil e tão indigno do século XIX, mas
inutilmente! [...] Mas não importa. O tempo porá remédio a tudo.
O dia de triunfo pela república não tarda,
e logo que o Sol desse dia querido tiver purificado com seus
raios vivificadores a
Terra
de Santa Cruz, as
leis
e os
tratados
não serão mais violados (REPÚBLICA RIO-GRANDENSE,
1839b,
p. 2).
Ao
mesmo tempo – revelando as contradições dos farroupilhas quanto
à questão servil –, eventualmente O Povo publicava
anúncios de compra e venda de escravos...
Ao
estudar a
Revolução Farroupilha, Clóvis Moura afirmou:
Não
tendo surgido a Abolição em 1822, como esperavam, os escravos
não perderam a esperança. Continuaram, como já vimos, se
engajando nos movimentos subsequentes. Na Revolução Farroupilha
eles se sentirão à vontade porque, afora a insurreição dos
alfaiates, na Bahia, nenhum outro movimento foi tão enfática e
ostensivamente antiescravista como o chefiado por Bento
Gonçalves. A participação do escravo tinha um caráter racional,
lógico. Não havia a contradição existente nos demais
acontecimentos, quando eles participavam das lutas por ordem dos
seus senhores, conforme já vimos. Além do mais, como não pesava
muito fortemente na economia da região conflagrada, o escravo se
transformou em soldado rapidamente [...]. As próprias
autoridades farroupilhas se encarregavam de emancipá-lo. [...] O
tipo da economia pastoril prescindia do escravo africano. Os
trabalhos agrícolas, especialmente da erva-mate, não eram de
molde a exigir uma concentração de braços escravos como a que a
economia dos engenhos ou da mineração impunha. [...] Daí não
terem as camadas dirigentes da região conflagrada interesse em
manter o estatuto da escravidão, tão acirradamente como
aconteceu no Nordeste, onde ela era o esteio em que se escorava
toda a economia regional (MOURA, 1988, p. 97-98).
O
choque entre os farroupilhas favoráveis à abolição da
escravatura e os farroupilhas contrários ocorreu com força nos
debates da Assembleia Constituinte Farroupilha, instalada em 1º
de dezembro de 1842. Na ocasião,
Bento
Gonçalves dirigiu a palavra aos constituintes, reafirmando que “aproxima-se
o dia em que – banida a realeza da terra de Santa Cruz – nos
havemos de reunir para estreitar laços federais à magnânima
nação brasileira, a cujo grêmio nos chamam a natureza e os
nossos mais caros interesses.” (DE ABREU, 1930, p. 12)
Na
Constituinte, coube a José Mariano de Mattos apresentar, em nome
da maioria — liderada por Bento Gonçalves, Domingos José de
Almeida, Antônio Souza Neto, José Gomes Portinho —, a proposta
de abolição do cativeiro. A reação da minoria, — capitaneada por
Antônio Vicente da Fontoura, Davi Canabarro e Onofre Pires — foi
tão violenta, ameaçando uma irremediável cisão dos farroupilhas,
que impediu a sua aprovação. Varela relata:
José
Mariano [...] apresentou à assembleia um projeto que abolia o
cativeiro, semelhante ao que se fizera no vizinho Uruguai [...;]
a minoria, acaudilhada por Antônio Vicente, opôs-se, irredutível
e fera, deixando-nos patentes [...] as frágeis razões em que se
apoiava para obstar a “liberdade geral dos escravos”. [...] No
diário que estava escrevendo, [...] Antônio Vicente [...,]
depois de referir-se “à alma vil e fraca do mulato José Mariano”
e ao “mofino Bento”, “dois demônios, desprezados por todo homem
decente”, assevera que o plano emancipador apresentado por “esse
mulato”, “em plena assembleia”, tinha “o fim sinistro de tudo
confundir para, no início da geral consternação, roubar-nos mais
amplamente e evadir-se para o país vizinho” (VARELA, 1933, p.
16).
Ali, ficou clara a divisão dos farroupilhas
diante da
abolição da escravidão. Apesar de
a maioria ser favorável a ela, as dificuldades da luta
inviabilizaram sua aprovação. Assim, o
“Projeto
de Constituição da República Rio-Grandense”
— que não chegou a ser votado, pois a
Constituinte se encerrou prematuramente, em 16 de fevereiro de
1843, devido à aproximação das tropas de Caxias — não incluiu a
abolição da escravidão. Mas o seu artigo 6º enquadrava os negros
farroupilhas como “cidadãos rio-grandenses”:
Art. 6º — São cidadãos rio-grandenses:
1º
—
Todos os homens livres nascidos no território da República. 2º
— Todos os brasileiros que habitavam no território da República
desde o memorável dia 20 de setembro de 1835, e têm prestado
serviços à causa da revolução ou da independência, com intenção
de pertencer à nação rio-grandense.
3º
—
Todos os brasileiros residentes no território da República na
época em que se proclamou a independência, que aderiram a esta
expressa ou tacitamente pela continuação de sua residência, bem
como todos os outros brasileiros que atualmente estão empregados
no serviço civil e militar da República. [...] 5º — Todos os
estrangeiros que têm combatido ou combaterem na presente guerra
da independência, contanto que residam dentro do país e tenham a
intenção de fixar nele seu domicílio (ABREU, 1930, p. 42-43).
Anos
depois, o General Portinho comentaria: “A República nunca
proclamou a liberdade da escravatura (o que foi um erro); se a
tivesse proclamado poderia formar um exército de libertos de
mais de 6.000 homens porque na Província os havia.”
(PORTINHO, 1990, p. 37).
Na
Constituinte, Vicente da Fontoura, Onofre Pires e Davi Canabarro
conspiraram para afastar Bento Gonçalves da Presidência da
República e da chefia do Exército farroupilha, inclusive
acusando-o de ser o mandante do assassinato do vice-presidente
Antônio Paulo da Fontoura, morto em um crime passional. Acusado
por Onofre Pires, Bento o desafiou para um duelo e o feriu, o
que lhe veio a causar a morte. Em agosto de 1843, desgostoso e
doente, Bento Gonçalves entregou a Presidência a Gomes Jardim e
o Comando Militar a Canabarro. Assim, a minoria assumiu o
comando da luta farroupilha em sua fase final.
7.
A paz esbarra no destino a ser dado aos negros farroupilhas
Na
Corte, os liberais que faziam oposição ao gabinete conservador
do regente Pedro de Araújo Lima defendiam a decretação da
maioridade de Pedro II, então com 14 anos, que foi declarada em
julho de 1840. Assumiu, então, um gabinete liberal que buscou a
pacificação do Rio Grande do Sul — província estratégica na
defesa do Sul do país —, cuja revolta já durava cinco anos. As
negociações esbarraram, porém, na exigência farroupilha de que o
Império reconhecesse a liberdade dos negros que lutavam pela
República. Para os imperiais, isso significava abrir um
precedente inaceitável, pois estariam “premiando” com a
liberdade escravos insurretos. Algo inconcebível no Brasil.
Tristão de Alencar Araripe relata que Bento Gonçalves apresentou
como uma das primeirascondições “a liberdade dos escravos
que estão a nosso serviço”, (ARARIPE, 1986, p. 111). Como os
imperiais não concordaram com essa exigência, “no Rio Grande
continuaria a guerra, não podendo voltar aos grilhões os negros
que havia cinco anos lutavam pela liberdade na América”
(ARARIPE apud MACEDO, 1995, p. 38-39). Ulhôa Cintra, consultado,
respondeu da mesma forma: “Homens que ombrearam conosco na
defesa da liberdade não podem voltar ao cativeiro” (CINTRA
apud MACEDO, 1995, p. 39). Após a pacificação, Araripe,
insuspeito de simpatia pelos rebeldes farroupilhas, afirmou:
Em um
ponto, porém, sempre foram coerentes e leais. Servindo-se dos
escravos para defender a liberdade por eles apregoada, não os
abandonaram no último momento da luta, e esforçaram-se com o
governo imperial para que esses infelizes não voltassem ao
cativeiro. Embora o governo imperial reconhecesse o perigo da
legitimação da alforria dos que com as armas na mão
a
conquistavam, em um país cujo primeiro elemento da sua produção
era o escravo, [...] os soldados da
República,
recrutados na escravidão, conservaram no Império a condição de
liberdade, por exigência dos caudilhos da rebelião (ARARIPE,
1986, p. 10).
Apesar do silêncio de Araripe em relação às sérias divergências
entre os líderes farrapos quanto à escravidão — o que levou à
traição de Porongos (cf. seções 8 e 9) —, o seu testemunho é
incontroverso. E o próprio Antônio Vicente da Fontoura,
escravista empedernido, precisou incluir entre as exigências
farrapas que “são livres, e como tal reconhecidos, todos os
cativos que serviram na República” para obter consenso para
a paz entre os farroupilhas. Não havendo a pacificação em 1840,
devido à negativa em conceder liberdade aos negros em armas, a
luta seguiu, com um relativo equilíbrio de forças entre os
farrapos e os imperiais.
A
situação alterou-se com a nomeação do barão de Caxias como
presidente e chefe militar na província, em agosto de 1842.
Caxias reorganizou o Exército imperial, adquiriu grandes
cavalhadas (para lhe dar maior mobilidade) e impôs derrotas aos
farroupilhas. Tendo tomando Piratini, Caçapava e Jaguarão, lhes
retirou as bases de apoio urbano. Buscou, então, uma batalha
decisiva, mas os farrapos se esquivaram de um combate frontal e,
através da guerra de guerrilhas, conservaram o domínio do Pampa:
Com
7.000 homens à sua disposição, número este que atingiria mais de
11.000, Caxias dividiu seu exército em três divisões para maior
mobilidade. [...] Nos dois anos que se seguiram, os farroupilhas
entravam no Uruguai e voltavam ao Rio Grande do Sul, evitando a
perseguição de Caxias. O barão podia se movimentar livremente
para ocupar território rebelde, mas não podia garantir essas
áreas indefinidamente. Atacando de surpresa, muitas vezes os
Farrapos salvaram a reputação da República [...] como aconteceu
com a vitória de São Gabriel, em 1843 (LEITMAN, 1979, p. 44-45).
O
seguimento da luta — que ainda poderia durar anos —, o risco do
apoio do uruguaio Fructuoso Rivera aos farrapos e as ameaças do
argentino Juan Manuel de Rosas forçaram o Império a propor uma
paz honrosa aos farrapos. Em setembro de 1844, com a
intermediação de Dionísio Amaro, Canabarro enviou Bento
Gonçalves para uma conversa com Caxias sobre os termos da paz.
Entre as condições postas por Bento estavam a anistia aos
farroupilhas, o pagamento das dívidas da República, a
incorporação dos oficiais farroupilhas ao Exército Brasileiro,
nos seus respectivos postos, e a liberdade para os negros
farroupilhas. Caxias aceitou as exigências farroupilhas e disse
que consultaria a Corte.
Bento
levou esta concordância de Caxias à Canabarro, mas este negou-se
a firmar a paz, pois não queria que Bento levasse as honras da
pacificação. O mencionado Dionísio deixa isso claro, em carta
que escreveu: “A paz teria sido feita [...] se o círculo
minorista, de que era alma o ex-ministro (Fontoura), não a
tivesse feito retardar, por não querer ver aparecer Bento
Gonçalves em negócio de tamanha transcendência”. E
questionado por Caxias, o mesmo Dionísio afirmou: “A paz será
feita, porque V. Exa. ofereceu muito aos republicanos. Eles se
contentarão com menos da metade, contanto que o nome de Bento
Gonçalves não apareça.” (AMARO apud FAGUNDES, 1989, p.
382-382)
Em 22
de setembro de 1844, Fontoura escreveu em seu diário:
Cartas que hoje recebemos [...] nos afirmam que é inevitável a
guerra entre o Brasil e o tirano de Buenos Aires [Rosas], e que
[...] manda o governo imperial propor-nos a pacificação, cujos
pontos cardeais são mais ou menos os seguintes: “São
reconhecidos nos mesmos postos todos os oficiais da República;
libertos todos os escravos que têm estado ao serviço das armas
da República; reconhecida nossa dívida interna e externa etc.
etc., com a condição de ajudarem os republicanos na guerra
contra Rosas.” (FONTOURA, 1984, p. 128-129)
O
governo imperial vinha preparando-se para essa alternativa. O
ministro da Guerra, José Clemente Pereira, se preocupava com os
problemas diplomáticos e militares que poderiam advir se os
negros farrapos — mais coesos e conscientes — buscassem asilo no
Uruguai, para continuar a guerra sob a proteção de Fructuoso
Rivera:
Para
evitar uma guerra com o Uruguai, o ministro perguntou aos seus
conselheiros se seria necessário estabelecer o “terrível
precedente” de premiar escravos dando “liberdade pelo crime de
insurreição”. A pacificação do Rio Grande do Sul, então, poderia
incluir a resistência no Uruguai, o que levaria à guerra. Ainda
mais, uma aventura imperial no Uruguai poderia provocar graves
problemas diplomáticos com a Argentina de Juan Manuel de Rosas
(LEITMAN, 1985, p. 72).
Esse mesmo temor tinham os chefes farrapos contrários à abolição
da
escravatura—
como Vicente da Fontoura e Canabarro —,
que negociavam a paz com Caxias. Por um lado, era inviável obter
um mínimo de consenso para a paz sem a garantia de liberdade
para os negros farroupilhas. Por outro, era arriscada
a
sua volta às senzalas,
levando a semente da rebelião. Já para a ordem escravocrata
reinante no Brasil, era um problema manter livre um grande
contingente de negros com experiência militar. A solução foi
eliminar o problema...
8.
O massacre dos negros farroupilhas às vésperas da pacificação
É nesse contexto que, na madrugada de 14 de novembro de 1844,
ocorreu o combate de Porongos,
no
qual
os negros farrapos — desarmados e separados
do resto das tropas — foram atacados de surpresa e dizimados
pelas tropas imperiais, comandadas por Chico Pedro (de
apelido
Moringue), por meio de um conluio entre Canabarro e Caxias. Esse
combate cumpriu dois objetivos: 1) eliminar o máximo de negros
em armas; 2) forçar os farrapos a deporem as armas. As
instruções de Caxias a Chico Pedro diziam:
Regule V.S. suas marchas de maneira que no dia 14, às
duas
horas da madrugada possa atacar as forças a mando de Canabarro,
que estará nesse dia no
cerro
dos Porongos. [...] Suas marchas devem ser o mais ocultas que
possível seja, inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois
posso afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter suas
observações sobre o lado oposto. No conflito poupe sangue
brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da
província ou índios, pois você bem sabe que essa pobre gente
ainda nos pode ser útil no futuro. [...] Não receie a infantaria
inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro de seu
general em chefe para entregar o cartuchame sob pretexto de
desconfiarem dela. [...] 9 de novembro de 1844. [A.]
Barão de Caxias (AHRGS, 1983, p. 30).
A transcrição completa desta carta – guardada no Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul – encontra-se em anexo, ao final
desse trabalho.
Cumprindo a sua parte na combinação, David Canabarro acampou no
dia 10 de novembro no cerro dos Porongos, atual município de
Pinheiro Machado, com 1.200 homens: “João Antônio, acampado à
margem esquerda do arroio dos Porongos, em bom campo; a
infantaria desarmada, na margem do dito arroio, e a cavalaria de
Neto, mais além em campo bom” (TABORDA, 1985, p. 81). Apesar
de ter havido um choque da vanguarda de Chico Pedro com um
pelotão farroupilha e Canabarro ter sido informado da
aproximação de Moringue, nenhuma medida foi tomada. No dia 12,
d.ª Manoela, irmã do general Neto, soube da presença de Moringue
nos fundos da sua estância e pediu ao seu vizinho Joaquim
Pereira que avisasse Canabarro:
Travou-se, então, o seguinte diálogo: [...] — De que lado está o
vento, perguntou Canabarro. Pereira indicou [...] que era para
os lados [de] onde estava acampado Chico Moringue. — O Moringue
sentindo a minha catinga, disse Canabarro, para cá não vem.
Marche para a sua casa e não ande espalhando boatos. Sabedor
desse desfecho, Neto voltou à barraca de Canabarro e reafirmou
seus receios e as suas previsões [...]. O lugar onde estavam não
era apropriado para um demorado estacionamento de um pequeno
Exército. Além disso, na direção de Bagé, Portinho já
estabelecera contato com os imperiais e era certo que à
retaguarda se aproximava outra força. [...] Canabarro não
aceitou os alvitres de Neto [... e] determinou o relaxamento da
vigilância, o desarmamento dos soldados, a guarda de toda a
munição para ser redistribuída na manhã seguinte (TABORDA, 1985,
p. 83-84).
Na madrugada de 14 de novembro, Chico Pedro atacou as tropas
farrapas desprevenidas, matando principalmente os negros
farroupilhas. Canabarro e Vicente da Fontoura escaparam
incólumes:
Um esquadrão de 40 homens [...] cai de chofre sobre o Exército
desprevenido [...]. A onda humana, que se espalhou em várias
direções, tenta ganhar distância para se refazer [...]. Mas eis
que a onda se despedaça de encontro a uma barreira inesperada. É
o próprio Chico Pedro que, emboscado com o grosso de suas
forças, esperava o resultado do ataque para surgir pela frente
dos que fogem. A situação é terrível. [...] Teixeira, o bravo
dos bravos, cujo denodo assombrou um dia ao próprio Garibaldi,
reúne os seus lanceiros, o 4º Regimento de Linha e alguns
esquadrões e leva uma carga aos atacantes. As fileiras destes
afrouxam, mas os imperiais se multiplicam, surgem de todos os
pontos. Uma segunda carga, mais impetuosa, mais desesperada, é
também repelida. É esse o sinal da debandada geral. [...] Apenas
alguns grupos mantêm-se resistindo e neles o combate se trava a
arma branca [...;] é uma carnificina sem nome, um desbarato
completo. Um pouco mais e toda resistência se abate. [...] jazem
quatorze feridos, e mais de cem mortos [...] trezentos e trinta
e três prisioneiros, inclusive trinta e cinco oficiais e o
ministro da fazenda da república, toda a bagagem, abarracamento
e armamento da infantaria, para cima de dois mil cartuchos,
muito armamento de cavalaria, parte deles encilhados (RODRIGUES,
1990, p. 234-235).
Anos depois, Manuel Alves da Silva Caldeira – que durante quase
toda a revolução combateu no 1º Corpo de Lanceiros de Linha, os
célebres Lanceiros Negros – denunciou:
Canabarro, de combinação com Caxias e Moringue, deu entrada a
Moringue em seu acampamento, para derrotar a força comandada
pelo Gen. Neto, menos a do Gen. João Antônio da Silveira que
estava acampado em lugar que ficou livre do ataque. [...]
Canabarro deu ordem [...] para recolher o cartuchame da
infantaria e carrega-lo em cargueiros [...] para ser
distribuídos quando aparecesse inimigo [...] Moringue [...]
antes de clarear o dia estendeu a cavalaria em linha na frente
do acampamento de Canabarro e mandou tocar a alvorada [...]
Canabarro ouvindo toque de alvorada montou a cavalo com o seu
estado-maior e passou o arroio do dito passo e apresentou-se à
frente da força de João Antônio, o qual estava furioso por ver a
matança que o inimigo fazia em seus companheiros de armas sem
socorrê-los, por Canabarro não consentir. Canabarro ficou
naquele dia nos campos dos Porongos e pernoitou e no outro dia
marchou serenamente para o campo do Contato, ficando Neto
derrotado completamente por causa do péssimo terreno escolhido
(a propósito) por Canabarro (WIEDERSPAHN, 1980, p. 74-75).
Calvet Fagundes relata que “no combate de Porongos [...] 80%
dos mortos que ficaram no campo de batalha eram negros”
(FAGUNDES, 1989, p. 252) e Varela denuncia abertamente a traição
de Canabarro:
Foram, no entanto, as cópias de suas cartas [...] que me deram a
quase convicção de que David era um criminoso, [...] depois de
ouvir a quatro contemporâneos insuspeitos [...]: José Custódio
Alves de Sousa, Manuel Alves da Silva Caldeira, João Amado e
José Gomes Jardim, Beco de alcunha. Unânime o voto condenatório,
sendo o do último o que acabou com as minhas dúvidas, porque
pertenceu ao círculo da minoria, isto é, do que tinha em David o
seu lord-protector; [...] as suas declarações eram
terrivelmente acusadoras. [...] Acreditava que, querendo este a
todo transe fazer a paz, decidira desfazer-se daqueles que se
opunham. [...] “Até hoje brigariam, se não fosse a traição.
Havia ainda uns três mil homens em armas”, “gente magnífica”, no
conceito de um legalista. [Nota nº 298 — há depoimentos do
capitão Felisberto Cândido Pinto Bandeira mui parecidos ao de
Beco, menos em um ponto. Diz que a maioria “não queria a paz,
que Canabarro se deixou derrotar em Porongos para fazer uma paz
que lhe desse posição e especialmente fortuna, porque com
posições não se importava muito, mas era ambicioso de dinheiro”
(VARELA, 1933, p. 500).
Também é inexplicável o comportamento de Fontoura, indicado por
Canabarro para as tratativas de paz. Na noite de 13 de novembro,
ele anotou no seu diário: “Amanhã é a minha marcha para o Rio
de Janeiro. Devo primeiro ir ao campo do barão de Caxias para
reunir-me com o outro que ele manda de sua parte.” Em 18 de
novembro, ele volta a escrever, como se nada houvesse
acontecido: “Não quero [...] fazer a descrição do revés que
tivemos a 14 porque o Gabriel vai, e ele que o conte. [...] A 16
saí do nosso acampamento, para prosseguir nas negociações da paz
[...,] e por isso amanhã devo seguir para a Corte”
(FONTOURA, 1985, p. 143-145). O que desmente a “lenda” de que em
represália ao ataque de Porongos, Canabarro e seus seguidores
teriam suspendido as negociações de paz com Caxias, “em um gesto
de desassombro e altivez”.
Ivo
Caggiani — que defende Canabarro da acusação de traição em
Porongos — cita Alfredo Ferreira Rodrigues, que confirma que
Canabarro desarmou os negros farrapos na véspera do ataque,
apresentando explicações fantasiosas para justificar
comportamento tão estranho de alguém que, informado da
aproximação de Chico Pedro, preferiu não precaver-se e
ainda desarmou os negros farrapos:
Havendo, tempos antes, Chico Pedro aprisionado um oficial de
Canabarro, este lhe pediu que não o deportasse, poupando-lhe os
trabalhos e misérias que iria sofrer. Chico Pedro disse que só o
soltaria com a condição de ir trabalhar a favor do governo com a
infantaria republicana, onde encontraria companheiros.
Perguntando-lhe o prisioneiro quem eram eles, Chico Pedro
disse-lhe que isso era a chave do segredo, mas que fosse
trabalhando, que eles haviam de aparecer. O oficial recusou,
indignado. Chico Pedro, fingindo-se comovido com as suas
súplicas, soltou-o depois, sem lhe falar mais nisso. O oficial,
chegando ao acampamento republicano, relatou a proposta ao
general Neto, que a comunicou a Canabarro. Este, pretextando a
necessidade de substituir o cartuchame velho, mandou recolhê-lo,
dizendo que distribuiria outro, demorando, porém, a entrega
(CAGGIANI, 1992, p. 244-245).
Quanto à carta combinando a batalha, Ferreira Rodrigues diz que
foi uma farsa para desmoralizar Canabarro. Mas o próprio
Ferreira pergunta: “Por que Canabarro nunca se defendeu,
[...] desmentindo esse documento, contentando-se em dizer: — O
tempo me há de justificar! Por que Caxias, depois da paz, nunca
o defendeu, desmentindo a intriga de Chico Pedro? Por quê?”
(FERREIRA apud CAGGIANI, 1992, p. 245). Ora, não é plausível que
Caxias tivesse qualquer interesse em desmoralizar Canabarro, o
líder farrapo em quem mais confiava e de quem precisava para
convencer os demais a aceitarem a paz. E Chico Pedro era o menos
interessado em difundir uma versão que lhe tirava as honras de
uma vitória sem precedentes em Porongos.
Examinando a explicação apresentada por Ferreira Rodrigues para
pôr em dúvida a referida carta, o autor da coletânea de ofícios
de Caxias afirma: “A defesa de A. F. Rodrigues de Canabarro
me parece fraca. Julgo o documento legítimo, pois Francisco
Pedro não teria nenhuma conveniência em divulgar um documento
que lhe tiraria todas as honras de uma estrondosa vitória, como
foi julgada a surpresa de Porongos” (CAXIAS, 1950, p. 148).
Igualmente, o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul publicou a
íntegra da carta de Caxias a Chico Pedro, sem indicar qualquer
dúvida em relação à sua autenticidade.
Da
mesma forma, o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul publicou a
íntegra da carta de Caxias a Chico Pedro (AHRGS, 1983, p.
30-31), sem colocar em dúvida a sua autenticidade. Cópia da
referida carta – que tive a oportunidade de manusear e
fotografar – encontra-se no AHRGS, Coleção Varela, Caixa 6, Maço
22, documento CV-3730. Ela está reproduzida ao final deste
texto.
Moacyr Flores agrega:
O
documento [...] é tido como falso porque no alto consta a
palavra cópia, no entanto o Ministro Domingos José de Almeida,
que tentou desvendar a tal “surpresa de Porongos”, escreveu que
viu e copiou o documento original da ordem de Caxias, que estava
em poder de Francisco Pedro de Abreu. A carta de Almeida ao
major Bernardo Pires, em 17.9.1859 é estarrecedora: “Porém eu
que aqui vi com antecedência duas cartas de Caxias anunciando ao
falecido veador João Rodrigues Ribas o próximo termo da
revolução; pois que certos bichos, e que bichões! Estavam de
acordo e podiam prestar. E que se quisesse ver, pedisse ao
Moringue parte do plano que tinha que executar para disso
convencer-se”. (FLORES, 2004, p. 61)
Por
tudo isso, apesar da controvérsia em relação à carta e à
“Traição de Porongos”, a esmagadora maioria das evidências são
no sentido da sua confirmação.
Poucos dias depois, ocorreu
um
novo revés das armas farroupilhas, sobre o qual também pairam
fundadas suspeitas, devido ao seu alto risco. Canabarro
determinou a
Teixeira Nunes e
aos
remanescentes de
seus Lanceiros Negros uma ação altamente temerária, na
retaguarda inimiga:
Devia
arrecadar impostos, e fornecer do necessário, a tropa, no
distrito do Arroio Grande. Também devia, se possível, cair de
chofre no imperial depósito de solípedes, de além do S. Gonçalo.
Teixeira, ainda que [por] presságio, houve-se com destreza.
[...] Notando estar agora inteiramente cortado do Exército,
buscou reunir as suas partidas volantes para distanciar-se
[...]. Efetuada a incorporação, e já cobradas as taxas na aldeia
supra e costa do Chasqueiro, movia-se o contingente
revolucionário em franco recuo para noroeste, quando a sua
desfortuna o pôs nas unhas de um dos mais bravios filhotes do
possante condor, ávido de substância farrapa, que voava e
revoava, nesse departamento da República. Acampava, a 26, perto
de Canudos, e Fidelis, o indicado subalterno e bom discípulo,
caiu de improviso sobre os retirantes. [...] Assistiu-se aí à
exata miniatura do que se vira em Porongos: total e ruinoso
destroço. Sucumbiram muitos sob o ferro legalista, divulgando a
apologia dos Abreus que, entre os mortos na surpresa, se contara
o nobre Teixeira, ilustre entre os mais ilustres pugilistas do
áureo decênio. Mais uma inverdade escandalosa, disseminada pela
turba dos vencedores. É falso! “Prisioneiro, foi assassinado”
(VARELA, 1933, p. 258-259).
9.
A paz e o destino dado aos negros farroupilhas
Com a
traição de Porongos, foi aplainado o caminho para a pacificação,
seja porque a matança dos negros farrapos eliminou boa parte do
problema do destino a ser dado a eles, seja porque a gravidade
da derrota eliminou as últimas resistências entre os
farroupilhas para a paz. Segundo Tristão de Alencar Araripe, “O
combate de Porongos, que mais foi uma matança de um só lado do
que peleja, dispersou a principal força republicana, e
manifestou estar morta a rebelião. [...] Em Porongos, pois, a
revolução expirou. Foi daí que se seguiu o entabulamento das
negociações, que deram tranquilidade ao Rio Grande do Sul
(ARARIPE, 1986, p. 211).
Vicente da Fontoura seguiu, então, para o Rio de Janeiro, para
negociar a rendição dos farroupilhas. Lá esteve entre os dias 12
e 20 de dezembro. Após, retornou ao Rio Grande do Sul com a
tarefa de obter a concordância dos principais líderes
farroupilhas para a deposição das armas.
Em 18
de dezembro, o governo imperial — já sabedor dos pleitos
farroupilhas — enviou a Caxias suas “Instruções reservadas”.
Caxias podia receber o pedido de deposição de armas dos chefes
farroupilhas (art. 1º) e dar-lhes ampla anistia (art. 2º); os
oficiais anistiados do Exército ou da Guarda Nacional deveriam
ser dispensados (art. 3º), mantendo as prerrogativas dos seus
postos (art. 8º); não seria reconhecida a dívida rebelde, mas
poderiam ser pagos até 300 contos de réis dessas dívidas (art.
7º). “Os escravos que fizeram parte das forças rebeldes,
apresentados, serão remetidos para esta Corte à disposição do
governo imperial, que lhes dará o conveniente destino” (art.
5º) (WIEDERSPAHN, 1980, p. 13-14). De acordo com o artigo 7º, o
destino dos negros farrapos sobreviventes continuava sendo uma
questão pendente. Canabarro, Fontoura e os imperiais trabalharam
para que o problema fosse solucionado pelo seu desarme e
afastamento da província.
Caxias comunicou a Chico Pedro – em ofício datado de 15 de
janeiro de 1845 – que Vicente da Fontoura lhe pedira um local
para se reunirem, decidirem a sua dispersão e entregarem os
negros farrapos. Caxias designou, então, a Estância das Cunhas,
em Ponche Verde,
como o lugar onde receberia os negros farrapos.
Varela denuncia:
Caxias
[...] tudo esclarece: “David Canabarro [...] é hoje o chefe em
cuja boa-fé confio, e ele me promete ser o seu primeiro passo,
logo que chegue ao ponto marcado, mandar entregar todos os
escravos que ainda conserva em armas, e que formam sua principal
força.”
[...] Revestido ainda com as insígnias do generalato
emancipador, S.Ex.a
[...] concordava em que fossem reduzidos à sua ignóbil condição
primitiva os libertos, cujo fabuloso devotamento, cuja fera
incontinência na arena guerreira encheram de assombro a
Garibaldi! [...] Graças à fraqueza do antes pujantíssimo David,
os maravilhosos lanceiros, os estupendos caçadores, aríete e
baluarte sem iguais da liberdade americana, passariam, da guarda
e defesa do tricolor estandarte até aí imaculado, à senzala e ao
eito! [...;]
passariam, das planícies abertas, ao fechado recinto da imperial
fazenda de S.ta
Cruz, no caráter, não mais de escravos de seus antigos senhores,
mas da nação
brasileira, que a aqueles entregaria o valor dos mesmos, para
que continuasse intangível o sacro direito de propriedade!
(VARELA, 1933, p. 297-298)
Mas o
próprio Varela nos esclarece que essa traição final aos negros
farroupilhas não se consumou, integralmente, tendo
Caxias utilizado o
“Aviso
Imperial”
de 19
de novembro de
1838 — que
concedia a liberdade aos negros farrapos que se entregassem aos
imperiais — para enviá-los alforriados ao Rio de Janeiro:
Sofreram,
todavia, a predita humilhação; Canabarro separou 120 deles das
suas fileiras, como quem faz um “aparte” de gado, e o rebanho de
míseros o conduziram, os colaboradores do general, à presença de
Caxias. Este, parece, os remeteu para fora da província [...,]
mas seguiram, tudo o persuade, com a carta de alforria ou a
receberam ao chegar ao porto de desembarque. É o que se concilia
de posteriores debates no parlamento (VARELA, 1933, p. 297-298).
Depois de algum tempo,
Caxias confirmou ao Ministro da Guerra a irrestrita lealdade de
Vicente da Fontoura e de David Canabarro, assim como a entrega
dos negros farroupilhas:
Os escravos que eles ainda conservavam armados foram entregues
com as suas armas e seu número já não excede a 120. [...] Os
escravos mandei adir aos corpos de cavalaria de Linha até
seguirem para essa Corte na forma das ordens que recebi. [...]
Antônio Vicente da Fontoura conduziu-se em tudo quanto o
encarreguei relativamente os arranjos conciliatórios com boa fé
e mostrando muita vontade de ver a guerra terminada, encontrando
decidido apoio em David Canabarro (WIEDERSPAHN, 1980
Ainda persistem dúvidas quanto ao destino final dos negros
farroupilhas,
entregues por Canabarro a Caxias. Tudo indica, porém, que
procede a opinião de Varela de que Caxias se valeu das
disposições que permitiam libertar os escravos que se
entregassem, para alforriá-los. Segundo Silva, 77 negros
farroupilhas foram enviados para o Rio de Janeiro, sendo que
quatro fugiram e 73 foram entregues às autoridades da Corte
(SILVA, 2010,
p.
240-241).
Lá, eles foram encaminhados à “comissão
encarregada de avaliar os indivíduos que, havendo sido escravos,
se achavam livres, em consequência dos acontecimentos da
província de São Pedro, a fim de serem indenizados seus senhores”
(SILVA, 2010, 291-293). Dessa informação se depreende que os
negros farrapos “se achavam livres”, não havendo qualquer menção
a que eles tenham sido enviados para alguma
propriedade
do Império como escravos. Os debates no parlamento também
reforçam essa conclusão:
Joaquim Antão Fernandes Leão requereu, a 5 de maio, explicações
a
respeito
[...
de]
um aviso que, diz, "não está nas coleções", pediu cópia do
mesmo, cuja doutrina lhe parece "um atentado ao direito de
propriedade",
e acaba perguntando qual o número dos escravos postos em
alforria. Alvares Machado [...] reflexiona que o requerer
esclarecimentos é indesconhecível direito da oposição, mas acha
que o que fora justo mais tarde, agora não o é. Os escravos
entregues pela revolução foram libertados graças ao que estatui
o aviso de 19 de novembro de 1838, cujo § 3° “mandou que todos
os escravos militarizados pelos rebeldes que se apresentassem às
forças legais fossem avaliados e postos em liberdade, avaliados
para pagá-los a seus donos”. Assim se fez (prossegue) com os da
Bahia, na época da independência. Já se vê, conseguintemente,
que o marechal Caxias nada mais fez que cumprir a palavra do
imperador
naquele aviso dado em face de todos. [...] Álvaro Machado expõe
que os escravos a serviço da revolta não tornam ao poder dos
senhores, e que não excediam aqueles a 200, inclusos na soma os
120 que David entregou no ato da paz (VARELA, 1933, p. 507-508).
Como
é óbvio, essa possível
alforria não assegurou
aos
negros farroupilhas
condições dignas de vida. Nada se sabe deles a partir daí, mas
devem ter vivido todas as
dificuldades
dos alforriados de então.
10. A pacificação de Ponche Verde
Equacionado no fundamental o destino dos negros farroupilhas,
prosseguiram as negociações de Vicente da Fontoura com Caxias, o
qual — ao que tudo indica com a concordância do governo imperial
— extrapolou as instruções recebidas e ampliou as
concessões aos farroupilhas, com o objetivo de superar as
resistências ao fim das hostilidades e de obter a participação
dos rio-grandenses no iminente enfrentamento com Rosas.
Finalmente, em 25 de fevereiro de 1945, realizou-se em Ponche
Verde um encontro dos principais chefes militares farroupilhas.
Nele, Vicente da Fontoura apresentou os pontos acertados com
Caxias para a pacificação, entre eles: ampla anistia e garantia
de que nenhum processo seria movido contra os farroupilhas;
indicação do presidente da província pelos líderes farroupilhas;
alforria para os cativos que serviram à República; pagamento
pelo governo imperial da dívida da República Rio-Grandense;
integração ao Exército Brasileiro, nos seus postos — salvo no de
general —, dos oficiais republicanos que assim o desejassem;
aqueles que não o desejassem, seriam dispensados de servir;
dispensa do recrutamento dos soldados republicanos (FAGUNDES,
1989, p. 405; WIEDERSPAHN, 1980, p. 10).
Havendo acordo em relação aos pontos acertados com Caxias, os
chefes farrapos firmaram uma “Ata de pacificação”, datada de 28
de fevereiro, logo enviada a Caxias. Em seguida, foram
divulgadas duas proclamações: uma em nome do presidente Gomes
Jardim; outra, do chefe do Exército republicano, David
Canabarro, ambas anunciando a paz. Por sua parte, Caxias
proclamou em 1º de março:
Rio-grandenses! [...] Os irmãos contra quem combatíamos estão
hoje congratulados conosco e já obedecem ao legítimo governo do
Império Brasileiro. Sua Majestade, o Imperador, ordenou por
decreto de 18 de dezembro de 1844 o esquecimento do passado e
mui positivamente recomenda no mesmo decreto que tais
brasileiros não sejam judicialmente nem por outra qualquer
maneira inquietados pelos atos que tenham sido praticados
durante o tempo da revolução. [...] Eu o prometo sob minha
palavra de honra. Uma só vontade nos una, rio-grandenses,
maldição eterna a quem recordar-se das nossas dissensões!
(WIEDERSPAHN, 1980, p. 102)
Após,
os oficiais superiores farroupilhas votaram para definir quem
devia presidir a província: Caxias teve 14 votos, Antônio Carlos
Ribeiro Machado de Andrade e Silva, 11 votos, e Manuel Antônio
Galvão, 2 votos.
É
preciso que se diga que não houve um tratado de paz assinado
conjuntamente por Caxias e pelos farroupilhas, até porque o
Império não reconhecia a República Rio-Grandense e tratava os
farrapos como meros insurretos. O que houve foi uma ata firmada
pelos farroupilhas, proclamando o encerramento da luta e a
reintegração deles à nação brasileira, nos termos negociados com
o então barão de Caxias,
segundo um documento manuscrito e do próprio punho do então
barão de Caxias e por ele subscrito, cujo inteiro teor é o
seguinte: “Art. 1º — Fica nomeado presidente da província o
indivíduo que for indicado pelos republicanos. Art. 2º — Pleno e
inteiro esquecimento de todos os atos praticados pelos
republicanos durante a luta, sem ser, em nenhum caso, permitida
a instauração de processos contra eles [...]. Art. 3º — Dar-se-á
pronta liberdade a todos os prisioneiros [...]. Art. 4º — Fica
garantida a dívida pública, segundo o quadro que dela se
apresente. [...] Art. 7º — Está garantida pelo governo imperial
a liberdade dos escravos que tenham servido nas fileiras
republicanas, ou nelas existam. Art. 8º — Os oficiais
republicanos [...,] quando espontaneamente queiram servir, serão
admitidos em seus postos. Art. 9° — Os soldados republicanos
serão dispensados do recrutamento. Art. 10º — Só os generais
deixam de ser admitidos em seus postos, porém, em tudo mais
gozarão da imunidade concedida aos oficiais. [...] [A.] O barão
de Caxias.” (WIEDERSPAHN, 1980, p. 11)
A
concessão aos farroupilhas de condições tão favoráveis de paz só
se explica pela necessidade do Império de contar com os
rio-grandenses para os iminentes conflitos com os países
platinos.
11. Conclusões
A
Guerra dos Farrapos foi o mais relevante episódio da história do
Rio Grande do Sul. Como todo grande acontecimento histórico, a
sua interpretação tem sido objeto de grandes polêmicas. Por um
lado, vemos a tentativa de apropriação ideológica da Revolução
Farroupilha pela oligarquia pecuarista, que — através de uma
historiografia laudatória aos “monarcas das coxilhas” (brancos e
ricos) e à “democracia dos pampas” (sem explorados e
exploradores) — idealiza o espírito “libertário” dos grandes
fazendeiros que dirigiram a luta pela República, mas fecha os
olhos para as suas contradições em face da escravidão (que se
expressou no massacre dos negros farroupilhas em Porongos) e
ignora o protagonismo dos despossuídos.
Como
afirmou Sandra Pesavento, essa versão tem “uma função
orgânica muito precisa: legitimar e dar coesão ao sistema de
dominação vigente e à hegemonia do grupo agropecuarista na
sociedade civil. [...] Através da reelaboração do seu passado,
os grupos dominantes buscavam fatos que os notabilizassem e
dessa forma justificassem o seu predomínio na sociedade”
(PESAVENTO, 1985, p. 8).
Por
outro lado, em uma reação “espelhar” a essa visão elitista da
Revolução Farroupilha, observamos interpretações superficiais,
muitas vezes panfletárias, incapazes de compreender o caráter
historicamente progressista da luta pela República, pela
federação e contra o Império centralista e escravocrata. Caráter
progressista que explica a forte adesão à luta farroupilha por
parte de negros, índios, mestiços e brancos pobres. Essas
análises que “não conseguem enxergar” o sentido progressista da
luta farroupilha são anacrônicas e a-históricas.
Ao
reduzirem a questão unicamente à direção dessa luta pelas
oligarquias rurais gaúchas, desconhecem o momento e as condições
históricas em que ela se deu, que inviabilizavam a hegemonia dos
setores populares. É o mesmo que negar o caráter progressista da
luta pela independência das colônias inglesas da América do
Norte, por ela haver sido dirigida pelos grandes proprietários
de terras e pela burguesia local. Ou negar o caráter
progressista da Revolução Francesa, por ter sido ela
hegemonizada pelo Terceiro Estado, isto é, pela nascente
burguesia francesa.
Uns e
outros ignoram as contradições entre os farroupilhas, expressas
na postura de uma maioria progressista e abolicionista que se
confrontava com uma minoria conservadora e escravocrata. Ambas
as interpretações reproduzem a visão preconceituosa das elites,
que só veem o povo como massa de manobra, sem vontade própria,
incapaz de protagonizar a sua própria história. Se é verdade que
essa luta foi hegemonizada pelos grandes proprietários de
terras, não é menos verdade que os principais protagonistas
dessa luta foram os negros, índios, mestiços e brancos pobres,
que lutaram pela República e por espaços de liberdade.
Portanto, ao fazer o balanço da Revolução Farroupilha é preciso
romper com as manipulações ideológicas e com os mitos ufanistas
— que só dificultam a compreensão da grandeza, das contradições
e das limitações da luta farroupilha —, mas sem deixar de
resgatar o caráter progressista da sua luta.
Por
outra parte, discordamos daqueles que consideram a opção
monárquica e imperial – vitoriosa em meados do século XIX – como
a única capaz de manter a unidade nacional, e por isso mesmo
justificada. A luta dos farrapos e as demais rebeliões coetâneas
expressaram alternativas mais avançadas e democráticas, que
podiam ter sido vitoriosas.
Mas —
como nos ensina Karl Marx —, ainda que a história seja feita em
condições e circunstâncias que os homens não determinam, ela é
feita pelos próprios homens.
*
Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), especialista em História Afro-Asiática pelas
Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA). Presidente da Fundação
Maurício Grabois no Rio Grande do Sul. Publicou em 2003 “Os
Lanceiros Negros na Revolução Farroupilha” e em 2005
“Revolução Farroupilha: mais longa revolta republicana
enfrentada pelo império centralizador e escravocrata”. Na
Câmara de Vereadores de Porto Alegre, foi o autor da Lei que
criou o Espaço Lanceiros Negros no Parque Farroupilha. Na
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul foi o autor da Lei
que declarou Patrimônio Histórico-Cultural do Rio Grande do Sul
o Cerro de Porongos, em Pinheiro Machado, Seu texto sobre
os Lanceiros Negros foi indicado pelo Instituto dos
Arquitetos do Brasil (IAB) como referência histórica no seu
Concurso Nacional para o projeto de um Memorial aos Lanceiros
Negros no Cerro de Porongos e dos monumentos aos
Lanceiros Negros em Pinheiro Machado e em Porto Alegre.
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Anexo
CV-3730
Cópia. Reservadíssimo.
Ilmo.
Sr. regule V. Sa. suas marchas de maneira que no dia 14 às 2
horas da madrugada possa atacar a força ao mando de Canabarro,
que estará nesse dia no cerro dos Porongos. Não se descuide de
mandar bombear o lugar do acampamento de dia, devendo ficar bem
certo de que ele há de passar a noite nesse mesmo acampamento.
Suas marchas devem ser o mais ocultas que possível seja,
inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso
afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter as suas
observações sobre o lado oposto. No conflito poupe o sangue
brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da
Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda
nos pode ser útil no futuro. A relação junta é das pessoas a
quem deve dar escapula se por casualidade caírem prisioneiras.
Não receie da infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem
de um Ministro e do seu General-em-chefe para entregar o
cartuchame sobre [sic] pretexto de desconfiança dela. Se
Canabarro ou Lucas, que são os únicos que sabem de tudo, forem
prisioneiros, deve dar-lhes escapula de maneira que ninguém
possa nem levemente desconfiar, nem mesmo os outros que eles
pedem que não sejam presos, pois V. Sá. bem deve conhecer a
gravidade deste secreto negócio que nos levará em poucos dias ao
fim da revolta desta Província. Se por acaso cair prisioneiro um
cirurgião ou boticário de Santa Catarina, Casado, não lhe
reviste a sua bagagem e nem consinta que ninguém lhe toque, pois
com ela deve estar a de Canabarro. Se por fatalidade não puder
alcançar o lugar que lhe indico no dia 14, às horas marcadas,
deverá diferir o ataque para o dia 15, às mesmas horas, ficando
bem certo de que neste caso o acampamento estará mudado um
quarto de légua mais ou menos por essas imediações em que
estiverem no dia 14. Se o portador chegar a tempo de que esta
importante empresa se possa efetuar, V. Sá. lhe dará 6 onças,
pois ele promete-me entregar em suas mãos este ofício até as 4
horas da tarde do dia 11 do corrente. Além de tudo quanto lhe
digo nesta ocasião, já V. Sa. deverá estar bem ao fato das
coisas pelo meu ofício de 28 de outubro e por isso julgo que o
bote será aproveitado desta vez. Todo o segredo é indispensável
nesta ocasião e eu confio no seu zelo e discernimento que não
abusará deste importante segredo. Deus vos guarde a V. Sá.
Quartel-general da Presidência e do Comando-em-chefe do Exército
em marcha nas imediações de Bagé. 9 de novembro 1844. Barão de
Caxias. Sr. Coronel Francisco Pedro de Abreu, Comandante da 8a Brigada
do Exército.
Reservadíssima de Caxias [no verso] (AHRGS, 1983, p.
30-31)