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   Porto Alegre, quarta-feira, 17 de julho de 2024

   
A nova história e a escola dos Annales

Raul K. M. Carrion

Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando,

mas ele vinha como se fosse o Novo.

Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto,

e exalava novos odores de putrefação que ninguém antes havia cheirado.

..................................................................................................

E em torno estavam aqueles que instilavam horror e gritavam:

Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós!

E quem escutava, ouvia apenas os seus gritos, mas quem olhava, via tais que não gritavam.

Assim marchou o Velho, travestido de Novo,

mas em cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como Velho.

O Novo ia preso em ferros e coberto de trapos;

estes permitiam ver o vigor de seus membros.

Bertold Brecht

 

A questão da relação da “Nova” História com a Escola dos Annales dá lugar a diversas controvérsias. A primeira delas refere-se a própria existência ou não do que se convencionou chamar de Nova História. A segunda, diz respeito a se haveria algo radicalmente “novo” na referida escola. A terceira, quanto à sua vinculação propriamente dita com a Escola dos Annales.

Quanto à primeira questão, apesar da heterogeneidade e ecletismo da Nouvelle Histoire – “o movimento está unido apenas naquilo a que se opõe[1] –, devemos aceitar a sua existência enquanto última geração da Escola dos Annales (hoje já se fala em 4ª geração!).

No que se refere ao seu caráter de “novidade”, devemos ser mais cautos. Como nos diz Silvia Petersen, é preciso “saber que tanto de novo estamos criando, que tanto estamos avançando (ou velhas idéias estão aparecendo como novas) e, por outro, que tanto velhas concepções têm escapado à crítica e conseguiram infiltra-se, contrabandeando o velho para novas formas de pensar.”[2]

No que diz respeito à continuidade/descontinuidade entre a “Nova” História e a Escola dos Annales, somos da opinião que, por um lado, há uma continuidade e, por outro, uma ruptura. É o que desenvolveremos a seguir.

I - A PRIMEIRA E A SEGUNDA GERAÇÕES DA ESCOLA DOS ANNALES

Analisar a Escola dos Annales – que nos anos 70 irá dar origem à “Nova” História – nos exige levar em conta tanto a sua heterogeneidade e relativo ecletismo, quanto as suas distintas fases. Há um primeiro período, entre 1929 e 1939, em que ela se volta mais para os aspectos econômicos e sociais da história – no que alguns pretenderam ver alguma proximidade com o marxismo – apesar de que “nem Febvre nem Bloch tinham grande interesse nas idéias de Marx.[3]

Foi uma fase de crítica às correntes dominantes nas ciências sociais do Ocidente, seja ao positivismo, seja ao “teoricismo” idealista. É a época da revista Annales d’Histoire Economique et Sociales, dirigida por Lucien Febvre e Marc Bloch, este bastante influenciado por Durkheim, aquele por Jaurés e Michelet.

O seu “primeiro traço definidor (...) é de (...) rechaço do historicismo e de sua estéril erudição fatual (...) contra a tentativa de estabelecer a indagação do ‘fato histórico’ como objetivo supremo (...) contra uma história estritamente política[4]. A “história narração” foi substituída pela “história problema”, mais aberta.

Com base nesta crítica, os Annales propuseram uma “história econômica e social.”, o abandono da história preocupada com os eventos isolados e com os “grandes homens”, mais voltada aos aspectos coletivos. Mas logo os fatos demonstraram que esta opção não era sólida.

Já em 1939 a revista alterou o seu nome para Annales d’histoire sociale e em 1941, em sua conferência Vivre l’histoire, para os alunos da École Normale Supérieure, Bloch afirmou:

Sabemos muito bem que ‘social’, em particular, é um desses adjetivos a que se fizeram dizer muitas coisas no decorrer do tempo, a tal ponto que por fim já não quer dizer quase nada (...) Concordávamos em (...) uma palavra tão vaga quanto ‘social’ parecia ter sido criada (...) para servir de emblema a uma revista que pretendia não se rodear de muralhas (...) não há história econômica e social. Há a história pura e simplesmente em sua unidade.[5]

E Febvre complementou, para que não ficasse qualquer dúvida de proximidade com o marxismo:

Falando com propriedade, não há história econômica e social. E não somente porque a relação entre o econômico e o social não é privilegiada (...) no sentido de que não há razão alguma para dizer econômico e social em lugar de político e social, literário e social, religioso e social ou, inclusive, filosófico e social. Não foram razões racionais as que nos habituaram a relacionar de forma natural, e sem mais reflexões, os dois epítetos de econômico e social (...) esta fórmula não é outra coisa que um resíduo ou uma herança das longas discussões que suscitou, já há mais de um século, aquilo que chamamos o problema do materialismo histórico.[6]

Como nos ensina Fontana:

a qualificação de ‘econômica’, não foi outra coisa que uma concessão a uma moda passageira, a um curto galanteio com o materialismo histórico (...) No ano de 1941, Febvre opina que o trabalho do historiador consiste em relacionar aspectos da vida humana, sem que importe demasiado quais sejam os que se escolham. Nenhum deles tem um papel predominante (...) A história é ‘ciência (...) da harmonia que (...) se estabelece em todas as épocas entre as diversas condições sincrônicas espirituais.’ (Combats pour l’Histoire, p.31-32) Frase que em última instância significa que tudo está relacionado com tudo, mas que esquece de dizer-nos o fundamental: de que forma está relacionado.[7]

Um terceiro aspecto relevante da Escola dos Annales é a sua concepção da história como ciência. Aqui percebemos mais uma vez a sua ambigüidade teórica. Enquanto Bloch falava da história como a “ciência dos homens no tempo[8], Febvre nos dizia que a história é um “estudo cientificamente elaborado” mas não uma ciência e reduzia as leis históricas a “estas fórmulas comuns que formam séries agrupando fatos até então separados[9]. Concepção pobre de “lei”, que é incapaz de captar o seu caráter de causalidade interna e necessária entre fenômenos.

Um quarto aspecto, talvez o mais fecundo dos Annales, é a sua busca da interdisciplinaridade, a sua abertura à colaboração com as demais ciências e disciplinas, o que redundou em uma grande renovação nos métodos e nas técnicas do historiador. A história aproximou-se da geografia, da estatística, da demografia, da lingüística, da psicanálise. Articulou-se com a sociologia, a arqueologia, a antropologia. Deu-se, também, uma abertura para outras fontes – além dos documentos escritos –, como a tradição oral, os vestígios arqueológicos, a iconografia, etc. Mas esse avanço técnico e metodológico careceu de uma renovação teórica correspondente. Mais do que uma teoria, o que une a Escola dos Annales é o seu combate ao historicismo positivista, factual.

A ascensão do grupo da Escola dos Annales foi fulminante. Em 1933, Lucien Febvre entrou no Collège de France. O Ministério de Educação Nacional lhe confiou o projeto de uma Enciclopédia Francesa, do qual será o secretário geral e o diretor, contando com 600 colaboradores científicos e 200 universitários e cuja publicação iniciou em 1935. Em 1936, Marc Bloch assumiu a cátedra de professor de História Econômica da Sorbonne. A II Guerra Mundial interrompeu a ascensão institucional dos Annales.

Com a queda da França, “a política anti-semítica do regime de Vichy exigiu a retirada de Bloch da co-direção da revista. Bloch esperava que a revista deixasse de ser publicada, prevaleceu, porém, a vontade de Febvre de continuar com a publicação.[10]. Em 1942, A revista trocou de nome para Mélanges d’histoire sociale. Em 1944, Marc Bloch – engajado na Resistência – foi capturado e fuzilado pelos alemães. Em 1946, a revista alterou mais uma vez o seu nome para Annales: Economiés, Societés, Civilizations.

O pós-guerra consolidou a vinculação dos Annales com o establishment universitário: Febvre foi convidado a reorganizar a École Pratique des Hautes Études, tornando-se em 1947 o presidente de sua VI Seção – dedicada às ciências sociais – e o diretor do Centro de Pesquisas Históricas.

Peter Burke, que não esconde a sua simpatia pelos Annales, resume esta trajetória afirmando que Os Annales começaram como uma revista de seita herética. (...) Depois da guerra, contudo, a revista transformou-se no órgão oficial de uma igreja ortodoxa. Sob a liderança de Febvre os revolucionários intelectuais souberam conquistar o establishment histórico francês. O herdeiro desse poder seria Fernand Braudel[11].

Braudel, que desde meados dos anos 40 compunha o núcleo dirigente dos Annales, publicou em 1949 sua obra La Méditerranée et le Monde Méditerranéen, colocando a questão dos distintos níveis de temporalidade: 1) a curta duração dos acontecimentos, a “história à dimensão não do homem, mas do indivíduo, a história fatual[12]; 2) a média duração das estruturas sociais, “uma história lentamente ritmada (...) uma história social, a dos grupos e dos agrupamentos (...) as economias e os Estados, as sociedades e as civilizações[13]; 3) e a longa duração das relações do homem com o meio geográfico, “uma história quase imóvel, a do homem em suas relações com o meio que o cerca; uma história lenta no seu transcorrer e a transformar-se, feita com freqüência de retornos insistentes, de ciclos incessantemente recomeçados[14].

Em que pese o mérito de haver indicado que o tempo histórico não é absoluto nem é homogêneo, Braudel não conseguiu articular as diversas temporalidades, agregando suas “fatias” de acontecimentos de acordo com sua maior ou menor lentidão. Não compreendendo que a não linearidade do tempo histórico não se expressa através de um esquema “por camadas”. Senão, como compreender os “dias que valem por anos”, nos quais tanto as estruturas, como as conjunturas e os acontecimentos, se aceleram enormemente?

Além das debilidades teóricas da Escola dos Annales – já abordadas anteriormente, e que não foram superadas – a visão “braudeliana” trazia latente certo determinismo geográfico e histórico: “Quando penso no indivíduo, sou sempre inclinado a vê-lo como prisioneiro de um destino sobre o qual pouco pode influir.”[15].

Também é perceptível a sua deficiência no campo da economia, encarada mais do ponto de vista da troca e do consumo do que da produção. Essas e outras deficiências tornaram a Escola dos Annales presa fácil da ofensiva estruturalista e prepararam o terreno para sua evolução no sentido da “Nova” História, que se tornará hegemônica a partir de meados da década de 70.

Em 1949, Braudel tornou-se professor do Collège de France e passou a acumular, junto com Febvre, a direção do Centro de Pesquisas Históricas na École de Hautes Études e a direção da revista. Com a morte de Febvre, em 1956, Braudel tornou-se o seu sucessor à frente da VI Seção da École e o diretor dos Annales.

É nesta fase “braudeliana” que temos a participação nos Annales de alguns historiadores marxistas, destacadamente Ernest Labrousse, cuja obra A crise da economia francesa no final do Antigo Regime e no início da Revolução (1944) foi definida por Braudel como “o maior livro de história publicado na França nestes últimos vinte e cinco anos.”[16]

Dois anos mais velho do que Braudel, Labrousse foi extremamente influente na historiografia por mais de cinqüenta anos. Em razão de sua influência sobre os historiadores mais jovens, dos quais, em muitos casos, foi o orientador de tese, pode-se dizer que ocupou um lugar central nos Annales. Em outro sentido, porém, ele pode ser tido como marginal ao grupo. Lecionava na Sorbonne; seu foco de interesse era a Revolução Francesa, o evento por excelência, e o que era mais importante, tratava-se de um marxista.[17]

Além de Labrousse, podemos citar Michel Vovelle, Maurice Agulhon e Pierre Vilar como historiadores marxistas que mantiveram vínculos com os Annales.

Resumindo essa primeira fase da Escola dos Annales (1ª e 2ª gerações), podemos dizer que:

1.    Apesar de sua crítica ao empirismo e sua defesa da necessidade de uma teoria, na prática os Annales subestimaram a teoria e privilegiaram a questão dos métodos e das técnicas de análise e investigação. A conseqüência foi o ecletismo, a superficialidade teórica, a inconsistência e a atração pelo modismo. Tendeu a rejeitar os métodos apoiados na dedução, preferindo a síntese indutiva.

2.    Sua visão interdisciplinar caiu em vários momentos em um tecnicismo “estatístico”, demográfico”, “quantitativista”, que obscureceu uma visão verdadeiramente global e integrada do todo social e caiu na especialização.

3.    Reconheceu as distintas temporalidades na história, mas não as articulou dialeticamente, nem percebeu o fluir descontínuo dessas temporalidades, justapondo-as um tanto mecanicamente.

4.    Sua reivindicação de uma “história total” acabou caindo em uma visão de totalidade equivalente a um mero somatório.

5.    Cada vez mais a sua crítica à história “política”, “biográfica” mostrou-se inconsistente. Diversos de seus historiadores passaram a dedicar-se, em seus trabalhos históricos concretos, às obras biográficas, até que toda preocupação com a história “econômica e social” foi abandonada. A conseqüência foi a ausência de qualquer teoria de “mudança social”.

Em que pese as suas deficiências, a Escola dos Annales jogou importante papel na renovação histórica e teve um caráter progressista:

Com todas as suas limitações, a historiografia que gravitava à volta dos Annales, antes de 1969, ao manter, apesar de tudo, a sua pretensão a uma visão global do social e o seu respeito à especificidade das diferentes formações histórico-sociais, desafiava ‘o modo culturalmente dominante de análise nas ciências sociais que ainda prevalece na atualidade - universalizante, empirista, que seciona o político do econômico e estes da cultura, profundamente arrogante, etnocêntrico e opressivo’, como foi dito por I. Wallerstein ao saudar a revista por sua resistência a esta cultura hegemônica.[18]

II - AS TERCEIRA E QUARTA GERAÇÕES, OU A “NOVA” HISTÓRIA

A “Nova” História propriamente dita, desenvolveu-se fundamentalmente a partir dos anos 70, quando Braudel, Morazé e Friedmann cederam a direção dos Annales a uma nova equipe, formada por Le Goff, Le Roy Ladurie, Revel, Marc Ferro e Burguière. Conservaram-se muitas características da antiga Escola dos Annales, mas também se pode observar importantes pontos de ruptura, sob a bandeira de “novas abordagens, novos objetos, novos problemas”:

Em 1974 (...), já se prenunciavam as orientações de uma história nova - la nouvelle histoire - de múltiplas facetas, hoje predominantes nas salas de aula e nas listas editoriais. (...) A História Política, praticamente descartada pelo movimento historiográfico renovador dos anos 30 e 40, do tão conhecido grupo dos Annales, historiografia essa que se apregoava econômica, demográfica, eminentemente agrária, voltada para as análises estruturais e regionais, também não parecia reencontrar um lugar que lhe fosse próprio, com o destaque que merecia, na nova história. Tratava-se e trata-se de uma história que passara a favorecer pequenos pedaços do passado, aspectos de um cotidiano nem sempre relevante, embora curioso, por vezes original e até mesmo ponderável.[19]

Uma primeira característica desta “Nova” História é o chamado “retorno à política”, que havia sido abandonada pelos Annales em nome do combate à história fatual. Como nos mostra Burke, esse retorno a política é na verdade uma reação contra uma história que – mesmo de forma tênue – ainda levava em conta os fatores estruturais de caráter social e econômico: “O retorno à política na terceira geração é uma reação contra Braudel e também contra outras formas de determinismo (especialmente o economismo marxista)[20]. Na verdade, influenciado por Foucault, esse “retorno à política” restringiu-se em grande parte à micropolítica, à luta pelo micro-poder na escola, na fábrica, na família, etc.

Uma segunda grande característica da “Nova” História está no que se convencionou chamar de “viragem antropológica”, uma mudança em direção à antropologia cultural ou simbólica, na incorporação de suas abordagens, de muitos dos seus conceitos e técnicas:

No momento, o modelo antropológico reina supremo nas abordagens culturais. Rituais, inversões carnavalescas e ritos de passagem estão sendo encontrados em todos os países e em quase todos os séculos. O estudo quantitativo das mentalités enquanto “terceiro nível” da experiência social nunca teve tantos seguidores.[21]

A partir daí, abriram-se novas abordagens como a micro-história, a história do cotidiano, a história “vista de baixo”, a história regional (“Uma história mais sensível às diferenças regionais do que às diferenças sociais[22]), etc.

Dá-se um deslocamento da “história das sociedades” para a “história dos pequenos grupos” (as “tribos”), para uma história dos “diferentes” dos marginalizados, dos fracos, dos vencidos. Ao invés da realidade social, das condições reais de existência, valoriza-se o seu avesso: os sonhos, o imaginário, o simbólico. Privilegia-se o periférico em relação ao central. O indivíduo passa a ser o centro da ação; o cenário, o palco, passam a um segundo plano. Na mesma medida, proliferam e são louvados os estudos biográficos:

O objetivo da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os mecanismos que regulam (...) as relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas, as famílias, os indivíduos. (...) a biografia constitui nesse sentido o lugar ideal para se verificar o caráter intersticial (...) da liberdade de que as pessoas dispõem.[23]

A diacronia cede espaço para a sincronia. Deixa-se de trabalhar a tridimensionalidade do tempo – o passado, o presente e o futuro. Privilegia-se a permanência ao invés do movimento. Congela-se o passado idealizado, já que “quando o presente frustra, o passado conforta”. Perde-se a dimensão de construção do futuro, ao qual se teme, e cultua-se o pessimismo.

talvez estejamos assistindo (...) ao fim da religião do progresso, da crença no progresso (...) existe uma relação entre a nova reticência dos anos 1960 em relação ao desenvolvimento, ao progresso, à modernidade, e a paixão trazida pelos jovens historiadores ao estudo das sociedades pré-industriais e de sua mentalidade. Estes não atribuem mais à história um sentido (...) A cultura que estudam é, então, quase tirada fora da história e apreciada da maneira como os etnólogos estruturalistas consideram a sociedade que escolheram.[24]

O historiador isola um bloco de passado, do mesmo modo que um etnólogo escolhe uma sociedade selvagem, e estuda-a, evitando na medida do possível os problemas de origem e de posteridade. É a etno-história.[25])

 

Uma outra grande vertente da “Nova” História, talvez a sua “menina dos olhos”, é a chamada Nova História Cultural, vista como uma verdadeira “libertação” frente ao “materialismo” e ao “determinismo”:

Nos anos 50 e 60, os historiadores econômicos e sociais foram atraídos por modelos mais ou menos deterministas de explicação histórica (...) Hoje em dia (...) os modelos mais atraentes são aqueles que enfatizam a liberdade de escolha das pessoas comuns (...) os novos historiadores (...) foram muito bem sucedidos ao revelar as inadequações das explicações materialistas e deterministas tradicionais do comportamento individual e coletivo de curto prazo, e na demonstração de que tanto na vida cotidiana, quanto nos momentos de crise, o que conta é a cultura.[26]

A Nova História Cultural é tão eclética como toda a “Nova” História, admitindo em seu seio as mais diversas tendências. Seus postulados hegemônicos, porém, têm por norte a visão idealista de que as estruturas culturais (mentalidades, representações, imaginário) são as que determinam a sociedade. Também aqui se expressa a tendência da “Nova” História de voltar-se para o passado: “A história das mentalidades é, portanto, muito mais a história das mentalidades de outrora, das mentalidades não atuais.”[27] A Nova História Cultural é examinada em mais detalhe na terceira questão.

Outra importante característica da “Nova” História é a sua fragmentação: “os objetos de investigação aparecem como que isolados dos complexos mais amplos onde se realizam, onde a idéia de totalidade é substituída pela de fragmentação, ruptura.”[28] Há uma explosão dos novos temas: a infância, o sonho, o corpo, o odor, a morte, o amor, a sexualidade, o medo, a culpa, o livro, o vestuário, o casamento, a loucura, o crime, o clima, a sujeira, a limpeza, os gestos, a fala, o silêncio, a leitura, a raiva, a ansiedade, a doença, etc.

Por um lado, amplia-se enormemente o campo do historiador e alguns destes estudos podem trazer certa contribuições para uma melhor visão do todo. Mas, por outro, tende-se à atomização do real, à perda do referencial da totalidade e ao deslocamento do interesse para temas inócuos e politicamente desmobilizadores:

A sociedade torna-se um fantástico caleidoscópio de micro objetos, sem sentido, sem hierarquia causal, sem razão. Na ausência de um sentido para a história, a preocupação com o futuro desaparece: é o fim da história e o objeto das práticas políticas se define a partir do cotidiano de cada um.[29]

Por fim, temos o chamado retorno à “narrativa”, outrora tão criticada pelos Annales. A historiografia desloca-se do objeto real para o narrativo, o literário, o textual. O valor não está tanto no conteúdo quanto no estético. Se por um lado isso poderia ter um aspecto positivo – o da preocupação com a forma – por outro lado somos levados a uma subestimação do conteúdo. A descrição prevalece sobre a interpretação: “é provável que o ‘cosmo’ humano, como é encarado por tais historiadores, não seja o mesmo – estruturado e explicável – em que acreditavam os historiadores dos Annales no passado, e em que acreditam os marxistas; e sim um cosmo contingente e inexplicável, no qual só constatações são possíveis, mas nenhuma explicação.[30]

No fundo, o que está em questão é a própria cientificidade e racionalidade do trabalho do historiador: “Tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como elas mais manifestamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura do que na ciência.”[31]

Daí para a negação da história como ciência é um passo. Em sua obra “Como se escreve a História”, o “novo” historiador Paul Veyne defende a opinião de que a história não é uma ciência, mas uma espécie de gênero literário, que se distingue da ficção por ser escrita a partir de uma documentação histórica. Para ele, os fenômenos sociais são singulares, estranhos a qualquer regularidade, desprovidos de qualquer determinação essencial ou dominante. E Georges Duby completa o panegírico dos papas da “Nova” História ao subjetivismo na produção histórica:

Para que serve a história? A história é, antes de mais, um divertimento: o historiador sempre escreveu por prazer e para dar prazer aos outros.(...) O que ele enuncia, quando escreve a história é o seu próprio sonho (...) O historiador conta uma história, uma história que ele forja recorrendo a um certo número de informações concretas. (...) continuamos a utilizar este material (...) ao serviço das nossas paixões e da ideologia que nos domina (...) o discurso histórico continua a ser uma forma de criação (...) a elaboração do material é sempre feita de uma forma subjetiva. (...) a objetividade do conhecimento histórico é um mito. (...) jamais chegaremos a uma verdade objetiva.(...) sou céptico em relação à objetividade (...) toda a informação é subjetiva.[32]

Resumindo as principais continuidades e rupturas da “Nova” História com a Escola dos Annales:

1.    A “Nova” História continua apresentando a mesma indigência teórica que já caracterizava os Annales, disfarçada pela absorção acrítica de terminologias e conceituações mal assimiladas, tomadas de empréstimo de outros campos científicos, levando ao mais grotesco ecletismo.

2.    Manteve a interdisciplinaridade tão proclamada pelo Annales, que muitas vezes se confunde com uma especialização tecnicista.

3.    Mantendo a pluralidade de tempos braudeliana, a sua temporalidade sincrônica tende para a longuíssima duração da história “quase imóvel”, que conduz à noção de ausência de mudanças. Ao mesmo tempo em que privilegia a permanência em relação à mudança, a “Nova” História volta-se para o passado, esquece o presente e fecha os olhos para o futuro.

4.    A “Nova” História abandonou qualquer visão de totalidade – mesmo que fosse a de justaposição mecânica dos Annales –, passando a cultuar a fragmentação do real.

5.    Em nome do combate ao “determinismo econômico”, “de cunho marxista”, a “Nova” História erigiu as mentalités como as verdadeiras infra-estruturas determinantes do social ou – quando não chegou a tanto – proclamou ao menos a sua autonomia em relação às estruturas sociais e econômicas globais. Aprofundando o afastamento das causalidades econômicas e sociais que os Annales já haviam iniciado.

6.    O seu “retorno à política” – rompendo com a anterior orientação dos Annales – tem muito mais a ver com o combate às “determinações econômicas e sociais” e com um voltar-se à temática do “micro-poder”, do que com a história “macro-política”.

7.    Ao questionar a existência de leis históricas e do próprio processo histórico, ao negar a objetividade do conhecimento histórico e a existência de verdade histórica, a “Nova” História rompeu com a visão da história como ciência, indo muito além das vacilações que os Annales já haviam manifestado nesse terreno.

Concluindo, podemos dizer que é inegável a existência de uma continuidade, em diversos aspectos e “tendências”, entre os Annales e a “Nova” História. Temos a opinião, inclusive, de que os Annales já tinham, em latência, muitos dos germens de seu ulterior desenvolvimento para a “Nova” História. Mas, também é evidente a existência de uma profunda ruptura entre ambas – no nosso entender involutiva –, rompendo com o caráter progressista da Escola dos Annales. Nesse sentido comparto a opinião de Ciro F. Cardoso de que a “Nova” História é “uma corrente retrógrada sob aparências de novidade e ousadia”.[33]

Esse juízo de valor não significa que nada é aproveitável na “Nova” História. Primeiro, porque, ao ser uma escola extremamente heterogênea, são muito diversas as orientações pessoais de cada autor. Segundo, porque mesmo historiadores com uma visão teórica equivocada podem contribuir, em estudos concretos, para o avanço do conhecimento histórico. O que se trata é de submeter a sua obra a uma crítica cuidadosa – não apriorística –, resgatando o que tenha de valor.

A IMPORTÂNCIA TEÓRICO-METODOLÓGICA DO ESTUDO DO “COTIDIANO”

Outro exemplo de uma nova abordagem que gerou problemas de definição é a história da vida cotidiana (...). A expressão em si não é nova: La vie quotidienne era o título de uma série lançada pelos editores franceses Hachette, nos anos 30 (...). Outrora rejeitada como trivial, a história da vida cotidiana é encarada agora, por alguns historiadores, como a única história verdadeira, o centro a que tudo o mais deve ser relacionado.[34]

É evidente que não compartilhamos da exagerada supervalorização do cotidiano, que alguns historiadores da “Nova” História lhe atribuem, a ponto de afirmarem que “A vida cotidiana (...) está (...) no ‘centro’ do acontecer histórico; é a verdadeira ‘essência’ da substância social”.[35]

Tampouco tem fundamento a sua pretensão de serem os “descobridores” do cotidiano! Para não nos alongarmos, podemos citar a obra “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, escrita por Engels, em 1840, e editada em 1845, onde, além de estudar o desenvolvimento do capitalismo e as conseqüências da industrialização, ele faz um estudo detalhado da vida e da luta cotidiana dos operários ingleses...

Isto posto, ao iniciarmos o exame da temática do cotidiano (terminologia criada pela “Nova” História), a primeira coisa que devemos fazer é precisar esse conceito bastante ambíguo:

um exemplo disso é a temática do cotidiano. O conceito ‘cotidiano’ via de regra permanece em um nível muito impreciso – o de ‘vida de todos os dias’ – prestando portanto escassos serviços analíticos. Quais são os componentes significativos da vida cotidiana? Existirá alguma forma de hierarquia entre eles, sendo uns mais importantes que outros? Como se organizam, se mantém e se transformam estes elementos? Que relações existem entre os aspectos cotidianos e não-cotidianos da vida social?[36]

Como ponto de partida, podemos definir o cotidiano como a dimensão do “dia a dia”, do rotineiro, do habitual, do costumeiro, do corriqueiro, do tradicional, do repetitivo, do automático, do pragmático, do concreto, do senso comum, do inconsciente (ou subconsciente). “O cotidiano é o humilde e o sólido, o que se dá por suposto (...) é o que não leva data. É o insignificante (aparentemente), ocupa e preocupa e, entretanto, não tem necessidade de ser dito.[37] Por isso mesmo:

A vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se presta à alienação. (...) A assimilação espontânea das normas consuetudinárias dominantes pode converter-se por si mesma em conformismo (...) Quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica de uma dada sociedade, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação para as demais esferas. (...) o moderno desenvolvimento capitalista exacerbou ao extremo essa contradição.[38]

Mas, apesar da vida cotidiana estar condicionada pela formação social em que se dá, pela estrutura e dominação de classes existente, pela ideologia hegemônica, ela tem uma dinâmica própria e uma relativa autonomia. É na vida cotidiana onde se expressa com maior amplitude a chamada sociedade civil, onde ocorrem as manifestações mais espontâneas dos indivíduos em busca dos pequenos resquícios de liberdade e autonomia pessoal. Aqui, são geradas manifestações “contra-culturais”, seja nas festas, nos esportes ou no lazer, formas de resistência e de reafirmação de sua identidade cultural.

Os valores da vida cotidiana, mais que pensados, são fundamentalmente vividos. Por isso mesmo, “é impossível apreender o cotidiano como tal, aceitando-o, ‘vivendo-o’ passivamente, sem tomar distância. Distância crítica, construção, comparação”.[39] Assentam-se na vida material das comunidades e encarnam-se em seus sentimentos. São tão arraigados, que a vida cotidiana de um determinado período histórico pode sobreviver, em muitos aspectos, em formações sociais posteriores.

Por outra parte, em uma mesma formação social coexistem várias cotidianidades, conforme as classes e os grupos sociais ou étnicos presentes. Mas uma delas, a imposta pela ideologia da classe dominante, é a preponderante. Os setores explorados e oprimidos estão condicionados, em sua existência diária, pela maneira de ser das classes dominantes, que procuram regulamentar por todos meios a cotidianidade, através da educação, das convenções sociais, dos códigos civis, dos meios de comunicação.[40]

Assim, a cotidianidade – ao mesmo tempo que expressa a alienação humana – também pode expressar formas de desalienação, de protesto e de rebelião contra a sociedade hegemônica. As quais, em algum momento do processo histórico, podem explodir ou ser canalizadas por distintas vias. Como nos diz Heler, “a vida cotidiana não é alienada necessariamente (...) mas apenas em determinadas circunstâncias sociais.[41]

O estudo da vida cotidiana tem importância para que possamos detectar quais comportamentos sociais expressam uma atitude conformista e que setores sociais questionam o modo de vida tradicional.

Para isso, impõe-se o emprego de uma teoria e um método de investigação adequados, que não obscureçam a existência de diferentes cotidianidades no interior de uma mesma sociedade, em uma mesma época, capazes de analisar dialeticamente – nas suas recíprocas influências – este “diário viver” que desborda a economia e a política, tem incidência sobre elas e ao mesmo tempo sofre as suas influências.

Para alguns, o estudo da cotidiano levanta um sério problema epistemológico, pois ao ser a dimensão do “sentido comum”, não seria totalmente apreensível pelo pensamento científico: “considero o paradigma da ciência ao mesmo tempo indispensável e insuficiente para o conhecimento do cotidiano (...) insuficiente porque ignora, por um lado, o estatuto do senso comum, da experiência imediata como uma forma de conhecimento e, por outro, como forma de pensamento por excelência da vida cotidiana.[42]

Sobre esta questão, que não é o centro da nossa discussão, penso que devemos relativizar essa “dificuldade” do pensamento racional apreender o cotidiano. Por um lado, porque, mesmo que aceitemos que o cotidiano é o locus do senso comum, do mítico, do imaginário, isso não é impedimento para o seu estudo científico e racional, pois o simbólico também faz parte do real. Por outro, porque essa visão do racional como um conhecimento que se constrói em “oposição” ao senso comum, em “ruptura” com o conhecimento prático, é bastante questionável (“para Bachelard (...) ‘a ciência se opõe absolutamente à opinião’. O senso comum, a experiência imediata, o conhecimento espontâneo são opiniões, formas falsas de conhecimento, com as quais é necessário realizar uma ruptura”).[43]

Por uma parte, porque a epistemologia marxista considera o conhecimento imediato como o ponto de partida de qualquer conhecimento científico – construído na dialética do concreto e do abstrato. Por outra, porque autores como Boaventura Santos propõem o reencontro da ciência com o saber comum, em uma “ruptura da ruptura epistemológica”, criando “um senso comum esclarecido e uma ciência prudente”.

Encarado com esses cuidados, o estudo do cotidiano pode prestar importantes serviços ao historiador, desde que não caiamos no empirismo, no estudo do detalhe de como eram “as carruagens”, “as vestimentas” ou “os penteados” de determinada época... Não se trata de fazer uma história por separado dos distintos aspectos da cotidianidade, mas de analisá-los globalmente, para ver como incidem nas transformações sociais ou na manutenção da ordem estabelecida:

O projeto é (...) que estes fatos, em aparência informes, entrem a fazer parte do conhecimento e sejam agrupados não arbitrariamente, mas de acordo com conceitos e uma teoria. Muitos dos passos adiante no conhecimento não têm sido, porventura, devidos à ‘recuperação’ (...) de fatos bem conhecidos e, entretanto, mal avaliados, dispersos, ao mesmo tempo familiares e desdenhados, apreciados segundo ‘valores’, isto é, segundo ideologias rebatíveis? O trabalho (Marx), o sexo (Freud)?[44]

Infelizmente, o que prevalece em alguns “historiadores do cotidiano” é uma visão a-histórica, fragmentária, desligada da realidade social, centrada nos indivíduos, imóvel: “igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança. Visto do seu interior, o cotidiano parece eterno.”[45] Por isso, são justificadas as críticas de Silvia Petersen a esse modelo de “história do cotidiano”:

escassa reflexão teórica dos estudos sobre a vida cotidiana, geralmente descritivos (...) caráter fortemente empírico dos estudos sobre o cotidiano (...) em geral centrados no sujeito e sua ação, nos fenômenos minúsculos, nas dimensões simbólicas do mítico, do imaginário, do irracional (...) as análises micro-orientadas, acabam por tornar-se micro-centradas, desconhecendo o contraponto das condições estruturais e o objetivismo estrito cede lugar a um subjetivismo que não se reconhece como tal.[46]

            A guisa de conclusão sobre esse ponto, podemos dizer que a história sobre os fatos do cotidiano – que “lançam uma luz particular sobre uma realidade global[47] – pode ser um instrumento importante nas mãos do historiador, desde que manejada com clareza teórica e correção metodológica.

A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., baseia-se no desenvolvimento econômico. Mas todos eles reagem, também, uns sobre os outros e sobre a infra-estrutura econômica. Não se trata de que a situação econômica seja a causa, o único elemento ativo, e que o resto sejam efeitos puramente passivos.[48]

nunca cheguei a parte alguma que se aproximasse da essência de qualquer coisa sobre a qual escrevi (...). A análise cultural é intrinsecamente incompleta. E, pior ainda, quanto mais se aprofunda, menos completa se torna.[49]

A Nova História Cultural desenvolveu-se na França, a partir da década de 70, com a chamada terceira geração da Escola dos Annales, onde se destacam Duby, Le Goff, Vovelle e outros. Na Inglaterra costuma-se citar Natalie Davis e Thompson; na Itália, Ginzburg. Sua marca é uma maior preocupação com as questões culturais: “No correr dos anos 60 e 70, porém, uma importante mudança de interesses ocorreu. O itinerário intelectual (...) transferiu-se da base econômica para a ‘superestrutura’ cultural, do ‘porão ao sótão’.”[50]

A diferença da História Cultural Tradicional – mais preocupada com as manifestações artísticas e intelectuais cultas – esses autores irão ampliar o conceito de cultura para as mais diferentes representações simbólicas e práticas (rituais, festas, folguedos), aproximando-se da antropologia, da lingüística, da etnografia, do folclore. Mais do que com “a obra” irão preocupar-se com o processo de sua criação

Deve-se a Nova História Cultural uma revalorização da cultura popular e da cultura oral, o estudo das permanências, em uma perspectiva de longa duração, com seu caráter de “resistência”, resgatando os fenômenos que persistiram nas sociedades. Por isso mesmo, talvez, predominem as obras voltadas para o passado distante, especialmente medieval, do que as voltadas para o presente. Preocupadas mais com o que é imóvel, com os arquétipos que persistem em uma longuíssima duração (morte, medo, etc.), do que com a mudança

Mantendo a tradição dos Annales, a Nova História Cultural adota a mais ampla diversidade de métodos, conceitos e temas, agregando as mais variadas tendências teóricas, beirando o ecletismo. Estratégia que favorece o poder de aglutinação da escola. Convivem, lado a lado, autores preocupados com uma perspectiva microscópica, fragmentária do social e autores voltados para uma visão macroscópica da realidade. Autores que enfatizam a ligação da cultura com os aspectos sócio-econômicos da realidade – a chamada História Sócio-Cultural – e autores que consideram que as idéias são o determinante na história, como fica claro no trecho abaixo de Desan:

A obra de Davis (...) complementa a abordagem francesa por utilizar, maciçamente, a antropologia simbólica e enfatizar o papel determinante e fundamental dos fatores culturais, em detrimento dos fatores climáticos, geográficos ou sócio-econômicos. (...) Davis e Thompson deram ênfase a uma mesma idéia central - o papel decisivo da cultura como força motivadora da transformação histórica. (...) tanto Davis como Thompson caminharam para um método que enfatiza os elementos culturais sobre os de natureza sócio-econômica.[51]

Também é característica da Nova História Cultural a indefinição e a ambigüidade de seus conceitos chaves – “mentalidades”, “imaginário”, “representações”, “cultura” –, muitos dos quais retirados de outras disciplinas (antropologia, psicanálise, semiologia, lingüística), sem suficiente tratamento teórico e crítico:

Todavia, o novo paradigma também tem seus problemas: problemas de definição, problemas de método, problemas de explicação (...) se a cultura popular é a cultura do “povo”, quem é o povo? (...) Uma noção ampla de cultura é central à nova história (...) Contudo, se utilizamos o termo em um sentido amplo (...) o que não deve ser considerado como cultura?[52]

Essa “extrapolação” de certos conceitos de outras ciências envolve diversos riscos. Um exemplo é o uso dos conceitos da psicanálise – utilizáveis para fenômenos individuais – para tentar explicar os fenômenos coletivos. Outro é o exame “anacrônico” dos sentimentos do passado, sob um enfoque contemporâneo (para Duby, a solução está em sentir-se como no passado).

Por tudo o que já examinamos até aqui – e apesar de que haja quem diga o contrário – podemos afirmar sem sombra de dúvida que a Nova História Cultural é uma das vertentes básicas da chamada “Nova” História, que tem como marca registrada a primazia cada vez maior na explicação histórica dos aspectos “culturais” sobre os aspectos sócio-econômicos. Aliás, é o insuspeito Lynn Hunt quem nos afirma isso:

[para] os historiadores franceses da terceira geração dos Analles (...) o clima, a biologia e a demografia dominavam a longa duração juntamente com as tendências econômicas; as relações sociais, mais nitidamente sujeitas às flutuações da conjoncture (...), constituíam uma segunda ordem de realidade histórica; e a vida política, cultural e intelectual configuravam um terceiro nível, extremamente dependente, de experiência histórica. A interação entre o primeiro e o segundo nível assumia a primazia. (...) À medida que a quarta geração (...) passou a preocupar-se cada vez mais com as (...) mentalités, a história econômica e social sofreu um recuo (...) Os historiadores da quarta geração dos Annales (...) rejeitam a caracterização de mentalités como parte do chamado terceiro nível da experiência histórica. Para eles, o terceiro nível não é de modo algum um nível, mas um determinante básico da realidade histórica. Como afirmou Chartier, ‘a relação assim estabelecida não é de dependência das estruturas mentais quanto a suas determinações materiais. As próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social’. As relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais, nem as determinam.[53]

O longo trecho citado nos permite uma análise bastante rica. Em primeiro lugar, nos mostra uma clara identidade entre a “Nova” História e a Nova História Cultural. Em segundo lugar, desmentindo aqueles que queriam ver em uma anterior primazia do econômico e do social uma influência marxista, deixa clara a compreensão esquemática e “economicista” da Escola do Annales quanto a essa questão, a ponto de dissociar em dois níveis diferentes o econômico e o social. O que nada tem a ver com a visão marxista dos “modos de produção”, unidade indissolúvel entre o econômico e o social.

Em terceiro lugar, coloca em um distante segundo plano qualquer preocupação com a base econômica e social da realidade, e erige as estruturas mentais (mentalités, imaginário, representações) como o determinante básico da realidade histórica. Em uma clara afirmação de fé idealista, chega ao ponto de declarar que As próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social!

Ao invés de nos surpreender, esta postura deve ser vista como uma das características da vertente hegemônica na “Nova” História atual. É George Duby, um de seus expoentes máximos, quem nos diz: “uma sociedade não se explica unicamente pelo material, mas nela intervém de uma forma igualmente determinante, e por vezes até mais determinante, fatores que relevam do mental, da idéia, da representação ideológica. (...) aquilo que as pessoas têm no espírito e que determina o seu comportamento.[54] Como sempre acontece, o questionamento do chamado determinismo econômico costuma encobrir a defesa de outro determinismo – de caráter idealista!

No que diz respeito a “novidade” ou não dessa abordagem “cultural” da história, pensamos que esta também é uma pretensão descabida dos chamados “novos” historiadores. Na verdade, desde que escreve História, o homem se preocupou com as questões que dizem respeito à cultura e às idéias morais, religiosas, jurídicas, filosóficas, artísticas das distintas sociedades.

Para ficarmos somente no campo do marxismo – presunçosamente acusado de “ignorar o papel da cultura e das idéias na história” – lembraremos, já no século passado, os inúmeros trabalhos de Marx, Engels, Plekhanov, Lenin, Mao, sobre a Filosofia, a Religião, a Arte, a Literatura, (“A Ideologia Alemã”, “A Questão Judaica”, “O Cristianismo Primitivo”, “Anti-Dühring”, “A Arte e a Vida Social”, etc.). Ou a frutífera polêmica em torno da arte – travada nos anos 1935-1940 – entre intelectuais marxistas do porte de Lukács, Ernst Bloch, Brecht, Benjamin!

Aliás, em inúmeras ocasiões Marx e Engels chamaram a atenção para o importante papel desempenhado pelas superestruturas ideológicas na história e para a sua relativa autonomia:

Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige, etc.; as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se em um sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma como fator predominante. Trata-se de um jogo recíproco de ações e reações entre todos esses fatores, no qual, através de toda uma infinita multidão de acasos (isto é, de coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la), acaba sempre por impor-se, como necessidade, o movimento econômico.[55]

Significa que, por sua postura predominantemente idealista e “pretensiosa”, a chamada Nova História Cultural seja estéril e não traga nenhuma contribuição para a ciência histórica? De forma alguma. Isso seria uma maneira simplista de tratar a questão. Nunca é demais recordar que Hegel, apesar de ser um idealista, deu contribuições inestimáveis ao desenvolvimento da dialética.

Do que se trata é ter uma postura crítica em relação aos seus equívocos teóricos e buscar “filtrar” o que há de racional e científico em suas contribuições.

Nesse sentido, como já afirmamos no início, entendemos que a Nova História Cultural, eliminados os seus exageros e aprimorados os seus fundamentos teóricos e conceituais, pode contribuir para uma melhor compreensão dos fenômenos ideológicos e culturais, muitas vezes descurados por historiadores – marxistas ou não – mais preocupados com outros aspectos do social ou com uma visão “economicista” e “mecanicista” da história, portanto redutora.

NOTAS

[1] BURKE, P. A Escrita da História: novas perspectivas. SP: Edunesp, 1992, p. 10.

[2] PETERSEN, S. Algumas interrogações sobre as tendências recentes da historiografia brasileira: a emergência do “Novo” e a crítica ao racionalismo LPH: Revista de História, V.3, N.1, 1992, p. 111.

[3] BURKE, P. A Escola dos Annales 1929-1989: A revolução francesa da historiografia. SP: Unesp, 1992, p. 68.

[4] FONTANA, J. Ascenso y decadencia da la Escuela de los “Annales”. In Hacia una Nueva História. Madrid: Akal, 1976, p. 111.

[5] BLOCH, M. Combats pour l’Histoire. Apud LE GOFF. A História Nova. SP: Martins Fontes, 1990, p. 28.

[6] FEBVRE, L. Combats pour l’Histoire. Apud FONTANA, J. Op.Cit., p. 112.

[7] FONTANA, J. Op. Cit., p. 113.

[8] BLOCH, M. Introducción a la história. Apud Fontana, J. Op. Cit., p 111.

[9] Febvre, L. Combats pour l’Histoire. Apud Fontana, J. Op. Cit., p.111.

[10] BURKE, P. A Escola dos Annales, nota 25, p. 39.

[11] BURKE, P. A Escola dos Annales, p. 43.

[12] BRAUDEL, F. Escritos sobre a História. S.P.:Editora Perspectiva, 1978, p. 14.

[13] BRAUDEL, F. Idem, p. 14.

[14] BRAUDEL, F. Idem, p. 13-14.

[15] BRAUDEL, F. La Méditerranée e le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Apud BURKE, P. A Escola dos Annales, p. 53.

[16] BRAUDEL, F. Escritos sobre a História. Apud, BURKE, P. A Escola dos Annales, pp. 68-69.

[17] BURKE, P. A Escola dos Annales, p. 67.

[18] CARDOSO, C. Ensaios Racionalistas. RJ: Campus, 1988. p. 98.

[19] LINHARES, M. Apresentação. In: RÉMOND, R. Por que a História Política? Estudos Históricos, RJ, V. 7, n. 13, 1994, p. 8.

[20] BURKE, P. A Escola dos Annales. SP: Unesp, 1991, p. 103.

[21] HUNT, L. A Nova História Cultural. SP: Martin Fontes, 1992, p. 14.

[22] ARIÉS, P. A História das Mentalidades. SP: Martin Fontes, 1993, p. 170.

[23] CHARTIER, R. A História Hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, RJ, V. 7, n. 13, 1994, p. 102.

[24] Idem, p. 162.

[25] Idem, p. 174.

[26] BURKE, P. A Escrita da História, pp. 31-35.

[27] CHARTIER, R. Op. Cit., p. 172.

[28] PETERSEN, S. Op. Cit., p. 118.

[29] Idem, p. 124.

[30] CARDOSO, C. Op. Cit., p. 108.

[31] CHARTIER, R. Op. Cit., p. 110.

[32] DUBY, G. O Historiador Hoje. In: História e Nova História. Lisboa: Teorema, 1986, pp. 11-14.

[33] CARDOSO, C. Op. Cit., p. 94.

[34] BURKE, P. A Escrita da História, p. 23.

[35] HELER, A. Estrutura da Vida Cotidiana. In: O Cotidiano e a História. RJ, Paz e Terra, 1992, p. 20.

[36] PETERSEN, S., Op.Cit., p. 112.

[37] LEFEBVRE, H. La vida cotidiana en el mundo moderno. Madrid: Alianza, 1980, p. 36.

[38] HELER, A., Op. Cit., p. 37-39.

[39] LEFEBVRE, H. Op.Cit., p. 39.

[40] VITALE, l. Introducción a una Teoria de la História para América Latina. Buenos Aires: Planeta, 1992, pp. 303-305.

[41] HELER, A., Op.Cit., p. 39.

[42] PETERSEN, S. O cotidiano como objeto teórico ou o impasse entre ciência e senso comum no conhecimento da vida cotidiana. Mimeografado, p. 6.

[43] PETERSEN, S., Op. Cit., p. 6.

[44] LEFEBVRE, H., Op. Cit., p. 39.

[45] BURKE, P. A Escrita da História, p. 24.

[46] PETERSEN, S., Op. Cit., pp. 1-2.

[47] LEFEBVRE, H. Op. Cit., pp. 33-34.

[48] ENGELS, F. Carta a Starkenburg, 25/1/1894. In: Obras Escolhidas de Marx e Engels. RJ: Ed.Vitória, 1961 V.3, p. 299.

[49] GEERTZ, C. The Interpretations of Cultures. Apud HUNT, L. A Nova História Cultural. SP: M.Fontes, 1992. p. 106.

[50] BURKE, P. A Escola dos Annales. SP: Unesp, 1991, p. 81.

[51] DESAN, S. Massas. Comunidade e Ritual na Obra de E.P.Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, L. A Nova História Cultural. SP: M.Fontes, 1992, pp. 65-69.

[52] BURKE, P. A Escrita da História, pp. 20-23.

[53] HUNT, L. A Nova História Cultural, SP: M.Fontes, 1992, p. 4, pp. 8-9.

[54] DUBY, G. O Historiador hoje. In: História e Nova História. Lisboa: Teorema, 1986, p. 9.

[55] ENGELS, F. Carta a Bloch - 21/22 de setembro de 1890. In: Op. Cit, p. 284.