Eu estava sobre uma colina e vi o
Velho se aproximando,
mas ele vinha como se fosse o Novo.
Ele se arrastava em novas muletas,
que ninguém antes havia visto,
e exalava novos odores de putrefação
que ninguém antes havia cheirado.
[...] E em torno estavam aqueles
que instilavam horror e gritavam:
Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o
Novo, sejam novos como nós!
E
quem escutava, ouvia apenas os seus
gritos, mas quem olhava, via tais
que não gritavam.
Assim marchou o Velho, travestido de
Novo,
mas em cortejo triunfal levava
consigo o Novo e o exibia como
Velho.
O Novo ia preso em ferros e coberto
de trapos;
estes permitiam ver o vigor de seus
membros.
BERTOLD
BRECHT
Nos dias de hoje, reina absoluta na
ciência histórica - no mundo
acadêmico, na produção editorial, na
mídia - a autodenominada Nouvelle
Histoire, herdeira, segundo seus
pregoeiros, dos Annales dos
anos 30. Proclama-se o novo
paradigma da história, síntese de
tudo o que surgiu de novo na moderna
ciência social, superação seja do
historicismo positivista, seja do
determinismo marxista! Negadora da
existência de leis na história ou de
quaisquer determinações - mesmo que
em última instância - questiona a
própria objetividade do conhecimento
histórico, a existência da verdade
na história, a totalidade do real, o
progresso, a evolução. Especialista
na história do fragmento, das
curiosidades, do que não muda, do
não-essencial, do subjetivo, do
irracional, jogou no depósito das
velharias os modos de produção, a
luta de classes, as revoluções:
Qual a
relação que guarda essa “Nova”
História com os Annales de
Bloch e Febvre? Com os Annales
de Braudel? O que haverá realmente
de “Novo” na referida escola, “que
tanto de novo estamos criando, que
tanto estamos avançando (ou velhas
idéias estão aparecendo como novas)
e, por outro, que tanto velhas
concepções têm escapado à crítica e
conseguiram infiltrar-se,
contrabandeando o velho para novas
formas de pensar.”
(PETERSEN, V.3, N.1,
1992, p. 111)? É o que examinaremos
a seguir.
Bloch, Febvre e a primeira geração
da Escola dos Annales
Seu
“primeiro traço definidor [...] é de
[...] rechaço do historicismo e de
sua estéril erudição fatual [...]
contra a tentativa de estabelecer a
indagação do ‘fato histórico’ como
objetivo supremo” (In: FONTANA
1976, p.111.) Em lugar da história
narração, descritiva, é reivindicada
a história problema, explicativa. “O
segundo traço marcante desses
intelectuais dos anos 30 é a
rejeição da política. O jogo
político, a vida parlamentar, os
partidos políticos são postos de
lado por esses intelectuais. O
Estado é suspeito e rejeitado”
(DOSSE, 1994, p. 24-25).
“Os
Annales [...] ao desertar o
terreno político [...] acaba por
orientar o interesse dos
historiadores para outros
horizontes: a natureza, a paisagem,
a população e a demografia, as
trocas, os costumes” (DOSSE, 1994,
p. 54). O que seria apresentado
como uma “história econômica e
social”, como o abandono da história
dos fatos isolados, dos grandes
homens. Mas logo ficará demonstrado
que isso não tinha nada de sólido.
Não por acaso, já em 1939 a revista
altera o seu nome para Anais de
História Social e em 1941, na sua
conferência “Viver a história”, na
École Normale
Supérieure, Bloch afirma:
“Sabemos muito bem que ‘social’, em
particular, é um desses adjetivos a
que se fizeram dizer muitas coisas
no decorrer do tempo, a tal ponto
que por fim já não quer dizer quase
nada [...] Concordávamos em [...]
uma palavra tão vaga quanto ‘social’
parecia ter sido criada [...] para
servir de emblema a uma revista que
pretendia não se rodear de muralhas
[...] não há história econômica e
social. Há a história pura e
simplesmente em sua unidade.” (BLOCH
Citado por Le GOFF, 1990,
p.28).
E Febvre
complementava, para não deixar
qualquer dúvida de proximidade com o
marxismo:
“Falando
com propriedade, não há história
econômica e social. E não somente
porque a relação entre o econômico e
o social não é privilegiada [...] no
sentido de que não há razão alguma
para dizer econômico e social em
lugar de político e social,
literário e social, religioso e
social ou, inclusive, filosófico e
social. Não foram razões racionais
as que nos habituaram a relacionar
de forma natural, e sem mais
reflexões, os dois epítetos de
econômico e social [...] esta
fórmula não é outra coisa que um
resíduo ou uma herança das longas
discussões que suscitou, já há mais
de um século, aquilo que chamamos o
problema do materialismo histórico.”
(FEBVRE Citado por FONTANA, 1976,
p.112)
Como nos
esclarece Fontana:
“a
qualificação de ‘econômica’, não foi
outra coisa que uma concessão a uma
moda passageira, a um curto
galanteio com o materialismo
histórico [...] No ano de 1941,
Febvre opina que o trabalho do
historiador consiste em relacionar
aspectos da vida humana, sem que
importe demasiado quais sejam os que
se escolham. Nenhum deles tem um
papel predominante [...] A história
é ‘ciência [...] da harmonia que
[...] se estabelece em todas as
épocas entre as diversas condições
sincrônicas espirituais.’ (Combats
pour l’Histoire, p.31/32) Frase que
em última instância significa que
tudo está relacionado com tudo, mas
que esquece de dizer-nos o
fundamental: de que forma está
relacionado.” (FONTANA, 1976, p.
113).
Um terceiro
aspecto - talvez o mais fecundo dos
Annales, e parte de sua
estratégia para a conquista da
hegemonia entre as ciências sociais
- foi a busca da
interdisciplinaridade, a sua
abertura à colaboração com as demais
ciências e disciplinas. O que
redundou em uma grande renovação nos
métodos e nas técnicas do
historiador. A história aproximou-se
da geografia, da estatística, da
demografia, da lingüística, da
psicanálise. Articulou-se com a
sociologia, a arqueologia, a
antropologia. Deu-se, também, uma
abertura para outras fontes, além
dos documentos escritos, como a
tradição oral, os vestígios
arqueológicos, a iconografia, etc.
Não é demais notar que, neste
terreno, os Annales
seguiram o caminho já desbravado
pelo marxismo:
“o
marxismo representou muito cedo um
papel fecundo nessa renovação
metodológica. Na medida em que ele
tende a uma história ‘global’ ou
‘total’, que deve apreender
simultaneamente os diferentes
aspectos da vida social (o econômico
e o mental, o social e o político),
ele tem desde suas origens a vocação
de se abrir sem restrições às
diferentes ciências humanas.
Conferindo às classes sociais e à
sua luta um papel decisivo, ele
volta seu interesse mais para as
estruturas do que para o
acontecimento superficial, mais para
o coletivo do que para o individual,
mais para o cotidiano do que para o
acidental. Quanto aos métodos
quantitativos, será preciso lembrar
que Marx já fazia largo uso deles?”
(BOIS, 1993, p. 244.)
Mas esse
avanço técnico e metodológico dos
Annales careceu de uma
correspondente renovação teórica.
Para isso pesou a sua subestimação
da teoria e a sua visão ambígua da
história enquanto ciência: “Sem
metodologia abstrata à moda alemã
[...] As idéias de um historiador
são extraídas da própria história”.
(FEBVRE, 1956, p. 501) Enquanto
Bloch falava da história como a
“ciência dos homens no tempo”
(BLOCH Citado por FONTANA,
1976, p. 111), Febvre nos dizia que
a história era um “estudo
cientificamente elaborado”, não uma
ciência, e reduzia as leis
históricas a “estas fórmulas comuns
que formam séries agrupando fatos
até então separados”. (FEBVRE Citado
por FONTANA, 1976, p. 111)
Concepção paupérrima de lei, que não
capta o seu caráter de causalidade
interna e necessária entre os
fenômenos.
A ascensão
do grupo da Escola dos Annales
foi fulminante: “A conjunção da
estratégia sólida de alianças com o
ecumenismo epistemológico permite à
escola dos Annales eliminar
seus rivais”. Em 1933, Lucien Febvre
entra no Collège de France. O
Ministério de Educação Nacional
confia-lhe o projeto de uma
Enciclopédia Francesa, no qual será
o secretário geral e o diretor,
contando com 600 colaboradores
científicos e 200 universitários,
cuja publicação inicia em 1935 Em
1936, Marc Bloch assume a cátedra de
professor de história econômica da
Sorbonne.
A Segunda
Guerra Mundial interrompe a ascensão
institucional dos Annales.
Com a queda da França, “A política
anti-semita do regime de Vichy
exigiu a retirada do judeu Bloch da
direção da revista. Bloch esperava
que a revista deixasse de ser
publicada; prevaleceu, porém, a
vontade de Febvre de continuar com a
publicação.” (BURKE, 1992, p. 39) A
revista troca de nome (1942):
Miscelâneas de Historia Social. Em
1944, Marc Bloch, engajado na
Resistência, é capturado e fuzilado
pelos alemães. Em 1946, a revista
altera mais uma vez o seu nome:
Anais - Economias, Sociedades,
Civilizações.
O pós-guerra
consolida a vinculação dos
Annales ao establishment
universitário: “Tendo à direita o
discurso historicista e à esquerda o
discurso marxista, o grupo dos
Annales oferece uma terceira
via, ocupa uma posição central,
ideal para sua estratégia de poder.”
(DOSSE, 1994, p. 66) O positivismo e
o “teoricismo” idealista mostram-se
cada vez mais impotentes para
contrapor-se ao marxismo, que
crescia em prestígio. A
historiografia burguesa precisava
renovar-se urgentemente, incorporar
preocupações econômicas e sociais,
criar alternativas ao marxismo. E
assim foi feito...
Febvre é
convidado para reorganizar a
École Pratique des Hautes Études,
tornando-se em 1947 presidente de
sua VI Seção - dedicada às ciências
sociais - e diretor do Centro de
Pesquisas Históricas. Em pouco tempo
os Annales tornaram-se
hegemônicos nos círculos oficiais:
“Os Annales começaram como
uma revista de seita herética. [...]
Depois da guerra, contudo, a revista
transformou-se no órgão oficial de
uma igreja ortodoxa. Sob a liderança
de Febvre os revolucionários
intelectuais souberam conquistar o
establishment histórico francês. O
herdeiro desse poder seria Fernand
Braudel”. (BURKE, 1992, p. 43)
Braudel, ou a segunda geração da
Escola dos Annales
Braudel, que já compunha
o núcleo dirigente dos Annales
desde meados dos anos 40, publica em
1949 sua obra La Méditerranée et le
Monde Méditerranéen, onde “descobre”
a existência de distintos níveis de
temporalidade: a longa duração das
relações do homem com o meio
geográfico - “uma história quase
imóvel, a do homem em suas relações
com o meio que o cerca; uma história
lenta no seu transcorrer e a
transformar-se, feita com freqüência
de retornos insistentes, de ciclos
incessantemente recomeçados”.
(BRAUDEL, 1978, p. 13-14); “Acima
dessa história imóvel, uma história
lentamente ritmada [...] uma
história social, a dos grupos e
grupamentos [...] as economias e os
Estados, as sociedades e as
civilizações” (BRAUDEL, 1978, p.
14); a curta duração dos
acontecimentos - “história à
dimensão não do homem, mas do
indivíduo, a história ocorrencial”.
(BRAUDEL, 1978, p. 14)
Em que pese
o mérito de haver percebido que o
tempo histórico não é absoluto nem
homogêneo (algo descoberto por Marx
um século antes), Braudel não
conseguiu articular as diversas
temporalidades, limitando-se a
agregar suas “fatias” de
acontecimentos de acordo com a sua
maior ou menor lentidão:
“Assim chegamos a uma decomposição
da história em planos escalonados.
Ou, se quisermos, à distinção no
tempo da história, de um tempo
geográfico, de um tempo social, de
um tempo individual. Ou se
preferimos ainda, à decomposição do
homem num cortejo de personagens.”
(BRAUDEL, 1978, p. 15)
A totalidade
histórica foi reduzida a uma
somatória dos distintos níveis do
real, sem dominâncias ou
determinações, sem causalidades:
“não mais cremos na explicação da
história por este ou aquele fator
dominante”. (BRAUDEL, 1978, p. 22)
Braudel não foi capaz de compreender
que a alinearidade do tempo
histórico não se expressa através de
um esquema “por camadas” (senão,
como compreender os “dias que valem
por anos”, nos quais tanto as
estruturas, como as conjunturas e os
acontecimentos, se aceleram
enormemente?). Mais, ainda, ignorou
o que articula, em última instância,
os tempos longos, médios e curtos: o
modo de produção.
A visão
braudeliana traz latente, também, o
fatalismo e o determinismo
geográfico: “uma história
particularmente lenta das
civilizações, nas suas profundezas
abissais, nos seus traços
estruturais e geográficos”.
(BRAUDEL, 1978, p. 25) “Quando penso
no indivíduo, sou sempre inclinado a
vê-lo como prisioneiro de um destino
sobre o qual pouco pode influir.”
(BRAUDEL, Citado por BURKE, 1992, p.
53) “A parte da liberdade humana é
muito fraca”. (BRAUDEL Citado por
DOSSE, 1994, p. 105.) “Nada há a
fazer diante do peso do passado a
não ser tomar consciência disso”.
(BRAUDEL Citado por DOSSE, 1994, p.
119) Na perspectiva da longa
duração, toda ação humana é
insignificante. Incapaz de perceber
a dialética entre os tempos longos e
os curtos, as circunstâncias e os
acontecimentos, as leis históricas e
a praxis humana, Braudel aproxima-se
do “o homem está morto” do
estruturalismo!
Para Braudel a hierarquia social é
uma permanência, a sociedade é
fatalmente desigual, todo impulso
igualitário é vão: “Toda observação
revela essa desigualdade visceral
que é a lei contínua das
sociedades”. (BRAUDEL, 1979, t.2,
p.215) “As sociedades só são válidas
quando são dirigidas por uma elite”.
(BRAUDEL Citado por DOSSE, 1994, p.
121) “O estado, o capitalismo, a
civilização, a sociedade existem
desde sempre”. (BRAUDEL Citado por
DOSSE, 1994, p. 121) A sociedade se
autoregula no plano das estruturas,
o novo é recuperado pelo velho, toda
ruptura histórica é fadada ao
fracasso: “Tudo se arranja, se
incorpora às ordens existentes”.
(BRAUDEL, 1979, t.3, p.542) “A longa
duração braudeliana e suas diversas
variantes aqui aparecem claramente
como são: uma leitura de nossa
história que permite exorcizar todo
risco de mudança”. (DOSSE, 1994, p.
122)
Ao
aventurar-se na história econômica -
A Dinâmica do Capitalismo - Braudel
expõe suas debilidades no âmbito da
teoria e cai em erros primários:
localiza o capitalismo na esfera da
troca, ao invés da produção, e chega
ao absurdo de contrapor a economia
de mercado ao capitalismo!
Em 1947, Braudel sucede Febvre na
direção da revista. Em 1949,
torna-se professor do Collège de
France e passa a acumular com
Febvre, a direção do Centro de
Pesquisas Históricas da École
de Hautes Études e a direção
da revista. Com a morte de Febvre,
em 1956, torna-se o seu sucessor na
VI Seção da École.
É nesta fase “braudeliana” que temos
a participação, na periferia dos
Annales, de alguns historiadores
de tendência ou orientação marxista,
como Michel Vovelle, Maurice
Agulhon, Guy Bois, Pierre Vilar e,
destacadamente, Ernest Labrousse,
ligado ao PS:
“Se Ernest Labrousse não ocupa na
época uma posição central no
dispositivo dos Annales, é
porque localiza o aspecto político
como horizonte de sua abordagem
econômica e privilegia o estudo dos
antagonismos de classe [...] muito
próximo da historiografia marxista,
à qual não adere, e se torna assim
marginalizado.” (DOSSE, 1994, p. 73)
Resumindo
essa primeira fase da Escola dos
Annales (1ª e 2ª gerações),
podemos dizer:
- Apesar da crítica ao
empirismo e da defesa da necessidade
da teoria, na prática os Annales
subestimaram a teoria e
privilegiaram os métodos e técnicas
de investigação. O resultado foi o
ecletismo (“o movimento está unido
apenas naquilo a que se opõe”
[BURKE, 1992, p.10]), a
superficialidade e a inconsistência
teórica. Priorizou a síntese
indutiva (cara aos empíricos),
frente aos métodos apoiados na
dedução.
- Sua visão
interdisciplinar descambou em muitos
momentos para o tecnicismo
estatístico, demográfico,
quantitativista, obscurecendo uma
visão global e integrada do todo
social e tendendo à especialização.
- Percebeu distintas
temporalidades na história, mas não
as articulou dialeticamente, nem
percebeu o fluir descontínuo dessas
temporalidades, justapondo-as um
tanto mecanicamente. Ao privilegiar
uma história naturalizada e a longa
duração, e ao desprezar o
acontecimento, aproximou-se do
determinismo geográfico.
- Sua reivindicação de
uma história total evoluiu para uma
visão de totalidade de mero
somatório.
- Cada vez mais a sua
crítica à história puramente
“política”, “biográfica” mostrou-se
inconsistente. Diversos de seus
historiadores passaram a dedicar-se
- em seus trabalhos concretos - às
obras biográficas, até que toda
preocupação com a história
“econômica e social” foi abandonada.
Uma das conseqüências foi a ausência
de qualquer teoria da “mudança
social”.
Em que pese
todas as suas deficiências, a Escola
dos Annales jogou um papel
importante na renovação dos métodos
históricos e combateu o positivismo
e o teoricismo idealista na
História. Mas a sua principal função
foi ser um contraponto ao marxismo.
A terceira (ou quarta?) geração dos
Annales, ou a Nouvelle
Histoire
A "Nova"
História propriamente dita,
desenvolve-se fundamentalmente a
partir dos anos 70, quando Braudel,
Morazé e Friedmann cedem a direção
dos Annales a uma nova
equipe, formada por Le Goff, Le Roy
Ladurie, Revel, Marc Ferro e
Burguière. Conservam-se muitas
características da antiga Escola dos
Annales, mas também
observam-se pontos de ruptura
importantes, sob a bandeira das
novas abordagens, novos objetos,
novos problemas:
“Em
1974 [...] já se prenunciavam as
orientações de uma história nova -
la nouvelle histoire - de
múltiplas facetas, hoje
predominantes nas salas de aula e
nas listas editoriais. [...] A
História Política, praticamente
descartada pelo movimento
historiográfico renovador dos anos
30 e 40, do tão conhecido grupo dos
Annales, historiografia essa
que se apregoava econômica,
demográfica, eminentemente agrária,
voltada para as análises estruturais
e regionais, também não parecia
reencontrar um lugar que lhe fosse
próprio, com o destaque que merecia,
na Nova História. Tratava-se e
trata-se de uma história que passara
a favorecer pequenos pedaços do
passado, aspectos de um cotidiano
nem sempre relevante, embora
curioso, por vezes original e até
mesmo ponderável.” (LINHARES In
RÉMOND, v.7, n. 13, 1994, p. 8)
A viragem antropológica
Uma primeira grande característica
da "Nova" História está no que se
convencionou chamar de viragem
antropológica, uma mudança em
direção à antropologia cultural ou
simbólica, a incorporação de suas
abordagens, de muitos dos seus
conceitos e técnicas:
“No
momento, o modelo antropológico
reina supremo nas abordagens
culturais. Rituais, inversões
carnavalescas e ritos de passagem
estão sendo encontrados em todos os
países e em quase todos os séculos.
O estudo quantitativo das mentalités
enquanto “terceiro nível” da
experiência social nunca teve tantos
seguidores”. (HUNT, 1992, p.14)
A partir
daí, abriram-se novas abordagens
como a micro-história, a história do
cotidiano, a história vista de
baixo, a história regional (“Uma
história mais sensível às diferenças
regionais do que às diferenças
sociais” [ARIÈS, 1993, p.170]), etc.
Dá-se um deslocamento da “história
das sociedades” para a “história dos
pequenos grupos” (as “tribos”), para
uma história dos diferentes, dos
marginalizados, dos fracos, dos
vencidos. Ao invés da realidade
social, das condições reais de
existência, valoriza-se o seu
avesso: os sonhos, o imaginário, o
simbólico. Privilegia-se o
periférico em relação ao central:
“O
reprimido torna-se portador de
sentido. Tudo se torna objeto de
curiosidade para o historiador, que
desloca seu olhar para as margens,
para o avesso dos valores
estabelecidos, para os loucos, para
as feiticeiras, para os
transgressores... O horizonte do
historiador fecha-se sobre um
presente imóvel, não há mais futuro
[...] A "Nova" História se esconde,
então, na busca das tradições, ao
valorizar o tempo que se repete, as
voltas e reviravoltas dos indivíduos
[...] essa pesquisa faz-se mais
pessoal e mais local. Abandona-se os
tempos fortes e os movimentos
voluntaristas de mudança, em direção
à memória do cotidiano das pessoas
simples.” (DOSSE, 1994, p.168)
O indivíduo
passa a ser o centro da ação; o
cenário, o palco passam a um segundo
plano. Proliferam os estudos
biográficos:
“O objetivo da história, portanto,
não são, ou não são mais, as
estruturas e os mecanismos que
regulam [...] as relações sociais, e
sim as racionalidades e as
estratégias acionadas pelas
comunidades, as parentelas, as
famílias, os indivíduos. [...] a
biografia constitui nesse sentido o
lugar ideal para se verificar o
caráter intersticial [...] da
liberdade de que as pessoas
dispõem”. (CHARTIER, v. 7, n. 13,
1994, p. 102)
A história quase imóvel, das
permanências
A diacronia
cede espaço para a sincronia.
Deixa-se de trabalhar a
tridimensionalidade do tempo - o
passado, o presente e o futuro.
Privilegia-se a permanência ao invés
do movimento. Congela-se o passado
idealizado, já que quando o presente
frustra, o passado conforta...
Perde-se a dimensão de construção do
futuro, ao qual se teme, e cultua-se
o pessimismo.
“talvez estejamos assistindo [...]
ao fim da religião do progresso, da
crença no progresso [...] existe uma
relação entre a nova reticência dos
anos 1960 em relação ao
desenvolvimento, ao progresso, à
modernidade, e a paixão trazida
pelos jovens historiadores ao estudo
das sociedades pré-industriais e de
sua mentalidade. Estes não atribuem
mais à história um sentido”. (ARIÈS,
1993, p. 162.)
“A cultura
que estudam é, então, quase tirada
fora da história e apreciada da
maneira como os etnólogos
estruturalistas consideram a
sociedade que escolheram [...] O
historiador isola um bloco de
passado, do mesmo modo que um
etnólogo escolhe uma sociedade
selvagem, e estuda-a, evitando na
medida do possível os problemas de
origem e de posteridade. É a
etno-história”. (ARIÈS, 1993, p.
174.)
O
significado do acontecimento
transforma-se, de expressão das
causalidades que o tornaram
possível, de revelador das
estruturas subjacentes, em
insignificante casual:
“A abordagem etnológica elimina a
irrupção do acontecimento em troca
da permanência, da cronologia
repetida do gesto cotidiano da
humanidade, cujas pulsações são
reduzidas às manifestações
biológicas ou familiares de sua
existência: o nascimento, o batismo,
o casamento, a morte. O historiador
dos Annales torna-se o
especialista do tempo imóvel em um
presente congelado, petrificado de
pavor diante de um futuro incerto.”
(DOSSE, 1994, p. 169.)
“Vê-se aonde isso tudo leva [...]
primeiro à história, dessa vez,
totalmente imóvel; em seguida, ao
questionamento da noção de mudança e
de mutação brusca na história; numa
palavra, da idéia da revolução [...]
o questionamento não apenas do
acontecimento puro e simples, mas de
toda mudança brusca, de toda
‘mutação’ a quente”. (VOVELLE In: Le
GOFF, 1993, p. 82-84.)
E, quando a
mudança é impossível de ser negada,
torna-se “uma historiografia [...]
da dialética entre o tempo das
massas populares - imóvel ou quase -
e o das ‘elites’: agitado, mutável,
criador [...] da história que se
move [...] para uns (F.Furet,
D.Richet), a mobilidade do tempo das
elites; para outros (E.Le Roy
Ladurie), as imobilidades da
história etnográfica.” (VOVELLE In:
Le GOFF, 1993, p. 81.)
A “descoberta” do cotidiano
Para alguns
neo-historiadores “A vida cotidiana
[...] está [...] no ‘centro’ do
acontecer histórico; é a verdadeira
‘essência’ da substância social”
(HELER, 1992, p. 20). Peter Burke
afirma que “outrora rejeitada como
trivial, a história da vida
cotidiana é encarada agora, por
alguns historiadores, como a única
história verdadeira, o centro a que
tudo o mais deve ser relacionado.”
(BURKE, 1992, p. 10.)
Os
neófitos também têm a pretensão
de serem os “descobridores” do
“cotidiano”! A realidade é que nem a
expressão, nem o tema são, em si,
novidades. Aliás, La vie
quotidienne era o título de uma
série lançada pelos editores
franceses Hachette já nos anos 30. E
em “A Situação da Classe
Trabalhadora na Inglaterra” -
editada em 1845 - Engels não só
analisa o desenvolvimento do
capitalismo e as conseqüências da
industrialização, como faz um estudo
detalhado e contextualizado sobre a
vida e a luta cotidiana dos
operários ingleses.
Sem dúvida,
o estudo do cotidiano pode prestar
importantes serviços ao historiador.
Mas, para isso, é necessário o
emprego de uma teoria que parta da
compreensão de que a vida cotidiana
esta condicionada pela formação
social em que se dá e pela estrutura
e pela dominação de classes
existente. Que perceba que em uma
mesma formação social coexistem
várias cotidianidades, conforme as
classes e os grupos sociais ou
étnicos presentes. Que uma delas - a
imposta pela ideologia da classe
dominante - é a preponderante. Que
os setores explorados e oprimidos
estão condicionados, em sua
existência diária, pela maneira de
ser das classes dominantes que
procuram, por todos meios,
regulamentar a cotidianidade através
das convenções e dos costumes
sociais, da educação, dos códigos
civis, dos meios de comunicação.
(VITALE, 1992, p. 303-305.)
Uma visão
teórica capaz de analisar
dialeticamente - nas suas recíprocas
influências - este “diário viver”
que desborda a economia e a
política, mas tem incidência sobre
elas e, ao mesmo tempo, sofre a sua
influência. Que exorcize o
empirismo, o estudo dos detalhes de
como eram “as carruagens”, “as
vestimentas”, “os penteados”, de
determinada época... Pois não se
trata de fazer uma história por
separado dos distintos aspectos da
cotidianidade, mas de analisá-la
globalmente, de identificar o seu
papel na manutenção do status quo ou
na mudança social.
Que
compreenda que - exatamente porque
compõe a dimensão do “dia a dia” ,
do senso comum, do inconsciente (ou
subconsciente) , do pragmático, do
repetitivo, do rotineiro, do
habitual, do tradicional - o
cotidiano,
“de todas
as esferas da realidade, é aquela
que mais se presta à alienação.
[...] A assimilação espontânea das
normas consuetudinárias dominantes
pode converter-se por si mesma em
conformismo [...] Quanto maior for a
alienação produzida pela estrutura
econômica de uma dada sociedade,
tanto mais a vida cotidiana
irradiará sua própria alienação para
as demais esferas [...] o moderno
desenvolvimento capitalista
exacerbou ao extremo essa
contradição.” (HELER, 1992, p.
37-39.)
Infelizmente, o que prevalece na
maioria dos neo-historiadores do
cotidiano é a visão fragmentária,
a-histórica, desligada da realidade
social, centrada nos indivíduos,
imóvel: “difícil de descrever ou
analisar é a relação entre as
estruturas do cotidiano e a mudança.
Visto do seu interior, o cotidiano
parece eterno.” (BURKE, 1992, p.
24.) Assim, a história sobre o
cotidiano - que poderia lançar “uma
luz particular sobre uma realidade
global” (LEFEBVRE, 1980, p. 33-34.)
- tornou-se, sob a lógica da “Nova”
Historia:
“escassa reflexão teórica dos
estudos sobre a vida cotidiana,
geralmente descritivos [...] caráter
fortemente empírico dos estudos
sobre o cotidiano [...] em geral
centrados no sujeito e sua ação, nos
fenômenos minúsculos, nas dimensões
simbólicas do mítico, do imaginário,
do irracional [...] as análises
micro-orientadas, acabam por
tornar-se micro-centradas,
desconhecendo o contraponto das
condições estruturais, e o
objetivismo estrito cede lugar a um
subjetivismo que não se reconhece
como tal”. (PETERSEN, v. 3, n. 1,
1992, p. 1-2.)
O “determinismo” cultural
A “menina
dos olhos” da "Nova" História é a
chamada "Nova" História Cultural,
saudada “aos quatro ventos” como uma
verdadeira libertação frente ao
materialismo e ao determinismo, o
reconhecimento, enfim, do livre
arbítrio humano:
“Nos anos 50 e 60, os historiadores
econômicos e sociais foram atraídos
por modelos mais ou menos
deterministas de explicação
histórica [...] Hoje em dia [...] os
modelos mais atraentes são aqueles
que enfatizam a liberdade de escolha
das pessoas comuns [...] os novos
historiadores [...] foram muito bem
sucedidos ao revelar as inadequações
das explicações materialistas e
deterministas tradicionais do
comportamento individual e coletivo
de curto prazo, e na demonstração de
que tanto na vida cotidiana, quanto
nos momentos de crise, o que conta é
a cultura.” (BURKE, 1992, p. 20-23.)
A "Nova"
História Cultural “explode” na
França a partir da década de 70,
nela destacando-se nomes como Duby,
Le Goff e o marxista Michel Vovelle.
Sua proclamada preocupação são as
questões culturais: “No correr dos
anos 60 e 70, porém, uma importante
mudança de interesses ocorreu. O
itinerário intelectual [...]
transferiu-se da base econômica para
a ‘superestrutura’ cultural, do
‘porão ao sótão’.” (BURKE, 1991, p.
81.) Seus autores irão preocupar-se
com as diferentes práticas e
representações simbólicas (rituais,
festas, folguedos), aproximando-se
da antropologia, da lingüística, da
etnografia, do folclore.
Mantendo a
tradição dos Annales, a
"Nova" História Cultural adota a
mais ampla diversidade de métodos,
conceitos e temas, agregando as mais
variadas tendências teóricas.
Estratégia eclética que favorece o
seu poder de aglutinação. Convivem,
lado a lado, autores preocupados com
uma visão macroscópica e global do
social e autores voltados para uma
perspectiva microscópica e
fragmentária do real. Autores que
enfatizam a ligação da cultura com
os aspectos sócio-econômicos da
realidade - a chamada História
Sócio-Cultural - e autores que
consideram que as idéias determinam
a história Mas, a sua vertente
hegemônica têm por norte a concepção
idealista de que as estruturas
culturais - mentalidades,
representações, imaginário -
determinam a sociedade:
“A obra de Davis [...] complementa a
abordagem francesa por utilizar,
maciçamente, a antropologia
simbólica e enfatizar o papel
determinante e fundamental dos
fatores culturais, em detrimento dos
fatores climáticos, geográficos ou
sócio-econômicos. [...] uma mesma
idéia central - o papel decisivo da
cultura como força motivadora da
transformação histórica. [...] um
método que enfatiza os elementos
culturais sobre os de natureza
sócio-econômica.” (DESAN In HUNT,
1992, p. 65-69.)
O foco de
seus estudos serão as permanências
- em uma perspectiva de longa
duração - o resgate dos fenômenos
que persistem nas sociedades. Por
isso mesmo, predominam as obras
voltadas para o passado distante,
especialmente medieval: “A história
das mentalidades é, portanto, muito
mais a história das mentalidades de
outrora, das mentalidades não
atuais.” (ARIÈS, 1993, p. 172.)
Preocupam-se
mais com o que é imóvel, com os
arquétipos que persistem na
longuíssima duração (morte, medo,
etc), do que com as mudanças. Também
aqui expressa-se a tendência da
"Nova" História de voltar-se para o
passado: “Antigo Regime [...] em vez
de explicar como ele ruiu ou como
preparava o futuro, hoje os
historiadores tentam compreender
como ele se manteve, se reproduziu e
ainda sobrevive nos poros da
sociedade atual.” (BURGUIÈRE In Le
GOFF, 1993, p. 149.)
Também
caracteriza a "Nova" História
Cultural a indefinição e a
ambigüidade de seus conceitos chaves
- mentalidades, imaginário,
representações, cultura - muitos dos
quais retirados de outras
disciplinas (antropologia,
psicanálise, semiologia,
lingüística) sem suficiente
tratamento teórico e crítico:
“Todavia,
o novo paradigma também tem seus
problemas: problemas de definição,
problemas de método, problemas de
explicação [...] se a cultura
popular é a cultura do “povo”, quem
é o povo? [...] Uma noção ampla de
cultura é central à "Nova" História
[...] Contudo, se utilizamos o termo
em um sentido amplo [...] o que não
deve ser considerado como cultura?”
(BURKE, 1992, p. 20-23.)
Essa
“extrapolação” de conceitos de
outras ciências envolve muitos
riscos. Um exemplo, é o uso dos
conceitos da psicanálise -
apropriados para fenômenos
individuais - na explicação dos
fenômenos coletivos. Outro, é a
análise anacrônica dos sentimentos
do passado sob um enfoque
contemporâneo. Para Georges Duby, a
solução está em sentir-se como no
passado...
As
concepções hegemônicas na "Nova"
História Cultural não conseguem
disfarçar que, em nome da luta
contra os determinismos na história,
de fato defendem a completa
preponderância dos aspectos
culturais sobre os aspectos
sócio-econômicos na explicação
histórica:
[para] “os historiadores franceses
da terceira geração dos Annales
[...] o clima, a biologia e a
demografia dominavam a longa duração
juntamente com as tendências
econômicas; as relações sociais,
mais nitidamente sujeitas às
flutuações da “conjoncture” [...]
constituíam uma segunda ordem de
realidade histórica; e a vida
política, cultural e intelectual
configuravam um terceiro nível,
extremamente dependente, de
experiência histórica. A interação
entre o primeiro e o segundo nível
assumia a primazia. [...] À medida
que a quarta geração [...] passou a
preocupar-se cada vez mais com as
[...] mentalités, a história
econômica e social sofreu um recuo
[...] Os historiadores da quarta
geração dos Annales [...]
rejeitam a caracterização de
mentalités como parte do chamado
terceiro nível da experiência
histórica. Para eles, o terceiro
nível não é de modo algum um nível,
mas um determinante básico da
realidade histórica. Como afirmou
Chartier, ‘a relação assim
estabelecida não é de dependência
das estruturas mentais quanto a suas
determinações materiais. As próprias
representações do mundo social são
os componentes da realidade social’.
As relações econômicas e sociais não
são anteriores às culturais, nem as
determinam”. (HUNT, 1992, p. 8-9).
O trecho
citado nos permite uma análise
bastante rica. Em primeiro lugar,
desmente aqueles que queriam ver na
anterior primazia do econômico e do
social uma influência marxista,
deixando clara a compreensão
esquemática e “economicista” da
escola dos Annales quanto a
essa questão. A ponto de dissociar
em dois níveis diferentes o
econômico e o social! O que nada tem
a ver com a visão marxista dos
“modos de produção”, unidade
indissolúvel entre o econômico e o
social. Em segundo lugar, coloca em
um distante segundo plano qualquer
preocupação com a base econômica e
social da realidade, e erige as
estruturas mentais (mentalidades,
imaginário, representações) como
determinantes básicos da realidade
histórica. Chegando ao ponto de
declarar que as próprias
representações do mundo social são
os componentes da realidade social !
Essa é a
visão hoje dominante na "Nova"
História. Georges Duby, um dos seus
mais prestigiados representantes,
afirma: “uma sociedade não se
explica unicamente pelo material,
mas nela intervém de uma forma
igualmente determinante, e por vezes
até mais determinante, fatores que
relevam do mental, da idéia, da
representação ideológica. [...]
aquilo que as pessoas têm no
espírito e que determina o seu
comportamento.” (DUBY, 1986, p. 9).
Como costuma acontecer, a crítica ao
chamado determinismo econômico
encobre a defesa de outros
determinismos, de caráter idealista:
“A valorização do nível cultural
[...] teve por base uma autonomia
desse último em relação às outras
instâncias do real, a tal ponto que
esse nível é considerado como tendo
temporalidade e dinâmica interna
próprias, independente do resto da
formação social. O nível cultural
teria mesmo a tendência de criar o
social. O deslocamento do discurso
dos Annales não se limita,
portanto, à ampliação do social para
o cultural, mas se traduz pela
substituição de um pelo outro [...]
A nova dialética dos Annales
opõe o tempo, a cultura popular,
imutável, incapaz de se desligar de
seus hábitos, tempo repetitivo,
etnográfico, ao tempo criador
dinâmico, da cultura das elites,
fonte de inovação, portanto fonte de
história. A capacidade de mudança
não se encontra mais no campo social
ou no político, mas no cultural”.
(DOSSE, 1994, p. 176.)
No que diz
respeito a “novidade” de uma
abordagem cultural da história,
penso que esta também é uma
pretensão descabida dos “noviços”.
Na verdade, desde que escreve
História, o homem se preocupou com
as questões que dizem respeito à
cultura e às idéias morais,
religiosas, jurídicas, filosóficas,
artísticas das distintas sociedades.
Para só ficarmos no campo do
marxismo - presunçosamente acusado
de ignorar o papel da cultura e das
idéias na história - lembraremos, já
no século passado, os inúmeros
trabalhos de Marx, Engels,
Plekhanov, sobre a Filosofia, a
Religião, a Arte, a Literatura, (A
Ideologia Alemã, A Questão Judaica,
O Cristianismo Primitivo,
Anti-Dühring, A Arte e a Vida
Social); a frutífera polêmica em
torno da arte, travada nos anos
1935/40, entre intelectuais
marxistas do porte de Lukács, Ernst
Bloch, Brecht, Benjamin. Além de
que, em inúmeras ocasiões, Marx e
Engels chamaram a atenção para o
importante papel desempenhado pelas
superestruturas ideológicas na
história, e para sua autonomia
relativa.
Nesse
sentido, uma História Cultural
científica tem muito a contribuir
para uma melhor compreensão dos
fenômenos ideológicos e culturais,
muitas vezes descurados por
historiadores, marxistas ou não,
mais preocupados com outros aspectos
do social. Ou com uma visão
“economicista” e “mecanicista” da
história, por isso mesmo redutora.
A história “em migalhas”, serial
Outra marca
da "Nova" História é a sua
fragmentação. Em vez da história
temos as histórias. No lugar da
história do real busca-se a história
de tal ou qual fragmento do real:
“Devemos renunciar à história
global, à ambição de Febvre”.
(CERTEAU Citado por DOSSE, 1994, p.
182.) “É essa noção de história
total que me parece problemática
hoje [...] vivemos uma história em
migalhas, eclética, ampliada em
direção às curiosidades, às quais
não precisamos nos recusar”. (NORA
Citado por DOSSE, 1994, p. 182.)
Assim, “os objetos de investigação
aparecem como que isolados dos
complexos mais amplos onde se
realizam, onde a idéia de totalidade
é substituída pela de fragmentação,
ruptura”. (PETERSEN, v. 3, n. 1,
1992, p. 118.)
Proclamada a
inexistência da totalidade do real,
esse é recortado em séries que
evoluem independentemente umas das
outras, cada uma com o seu próprio
ritmo, cada uma com sua causalidade
específica:
“a história serial descreve
continuidades no modo de ser do
descontínuo [...] ela decompõe, por
definição, toda a definição prévia
de uma história ‘global’, pondo em
questão precisamente o postulado de
uma evolução considerada homogênea e
idêntica, de todos os elementos de
uma sociedade [...] atomiza a
realidade histórica em fragmentos
tão distintos que compromete, ao
mesmo tempo, a pretensão clássica da
história à apreensão do global.” (In
FURET, 1977, p. 72-73.)
Doravante,
nenhum acontecimento pode ser
definido sem antes situar a série da
qual fará parte. Só ali adquire o
seu significado. “Em lugar da
continuidade da evolução histórica,
os historiadores atuais
interessam-se pelas descontinuidades
entre séries parciais de fragmentos
de história. À universalidade do
discurso histórico, opõem a
multiplicação de objetos em sua
singularidade”. (DOSSE, 1994, p.
187.) “A história serial [...] apaga
as estruturas sob a série fatual e
[...] não resolve o problema da
passagem de uma série a outra.
Contenta-se com causalidades
específicas de tal ou qual série.”
(DOSSE, 1994, p. 194.)
Há uma
explosão dos novos temas: a
infância, o sonho, o corpo, o odor,
a morte, o amor, a sexualidade, o
medo, a culpa, o livro, o vestuário,
o casamento, a loucura, o crime, o
clima, a sujeira, a limpeza, os
gestos, a fala, o silêncio, a
leitura, a raiva, a ansiedade, a
doença, etc. Por um lado, amplia-se
enormemente o campo do historiador,
e alguns destes estudos podem trazer
certas contribuições para uma melhor
visão do todo. Mas, por outro,
tende-se à atomização do real, à
perda de referência à totalidade, ao
deslocamento do interesse para temas
inócuos e politicamente
desmobilizadores:
“A
sociedade torna-se um fantástico
caleidoscópio de micro objetos, sem
sentido, sem hierarquia causal, sem
razão. Na ausência de um sentido
para a história, a preocupação com o
futuro desaparece: é o fim da
história e o objeto das práticas
políticas se define a partir do
cotidiano de cada um.” (PETERSEN, v.
3, n. 1, 1992, p. 124.)
O pretenso “retorno à política”
Outra inovação da "Nova"
História é o propalado retorno à
política, que fora abandonada pelos
Annales em nome do combate à
história fatual. Como nos mostra
Burke, esse retorno a política é na
verdade uma reação contra uma
história que - mesmo que de forma
tênue - ainda levava em conta os
fatores estruturais de caráter
social e econômico: “O retorno à
política na terceira geração é uma
reação contra Braudel e também
contra outras formas de determinismo
(especialmente o economismo
marxista)”. (BURKE, 1992, p. 103.)
Como nos explica Le Goff: “História
do político que seja uma história do
poder sob todos os seus aspectos,
nem todos políticos, uma história
que inclua notadamente o simbólico e
o imaginário.” (Le GOFF,1993, p. 8.)
Na verdade,
influenciado por Foucault, esse
retorno à política restringiu-se em
grande parte à micropolítica, à luta
pelo micro-poder na escola, na
fábrica, na família:
“Se não
houver lugar nodal do poder, não
pode haver lugar de resistência a
esse poder. Onipresente, ele não
pode mais ser derrubado, está em
nós; tudo é poder [...] Essa
diluição-dissolução do aspecto
político é o traço de uma repulsa
diante desse monstro moderno do
estado, fonte de opressão e de mal.
Na falta da capacidade para
abatê-lo, ele é contornado.” (DOSSE,
1994, p. 227.)
O “retorno à narrativa” e a negação
do caráter científico da história
Por fim,
temos o chamado retorno à narrativa,
outrora tão criticada pelos
Annales. A historiografia
desloca-se do objeto real para o
narrativo, o literário. O valor não
está tanto no conteúdo quanto no
estético. Se de um lado isso poderia
ter um aspecto positivo - a
preocupação com a forma - na prática
tem levado a um abandono do caráter
científico da História. Ao invés de
conhecimento do real a História
transforma-se em criação, invenção
do historiador:
“o
discurso histórico é menos a
combinação de uma imagem ou modelo
com alguma ‘realidade’ extrínseca do
que a feitura de uma imagem verbal
[...] o discurso histórico não
deveria ser considerado [...] como
[...] esforços para conhecer a
realidade ou descrevê-la, mas antes
como um tipo especial de uso da
linguagem [...] não existe um
estória ‘real’. As estórias são
contadas ou escritas, não
encontradas [...] Todas as histórias
são ficções.” (WHITE, v. 7, n. 13,
1994, p. 28-30.)
No fundo, o
que está em questão é a própria
cientificidade e racionalidade do
trabalho do historiador: “Tem havido
uma relutância em considerar as
narrativas históricas como elas mais
manifestamente são: ficções verbais,
cujos conteúdos são tão inventados
como descobertos, e cujas formas têm
mais em comum com suas
contrapartidas na literatura do que
na ciência.” (CHARTIER, v. 7, n. 13,
1994, p. 110.)
Daí para a
negação da existência de
causalidades na história, de seu
caráter científico e objetivo, vai
um passo. Passo que é dado por Paul
Veyne:
“A
história não é uma ciência e não tem
muito a esperar das ciências; não
explica e não tem método [...] a
história não explica, no sentido em
que não pode deduzir e prever [...]
O problema da causalidade em
história é uma sobrevivência da era
paleo-epistemológica [...] O
historiador não encadeia as causas
cujo concurso produziria o efeito:
desenvolve uma narrativa cujos
episódios se sucedem [...] No mundo
tal como os nossos olhos o vêem, os
homens são livres e reina o acaso
[...] a história é uma atividade
intelectual que, através de formas
literárias consagradas, serve fins
de simples curiosidade [...] Entre a
explicação histórica e a explicação
científica, não existe um cambiante,
mas um abismo [...] a história não é
um ‘esboço de explicação’ científica
ainda imperfeita [...] não se
transformará nunca numa ciência.”
(VEYNE, 1987, 9, p. 110-112, 191.)
E que
Georges Duby complementa, para que
não pairem dúvidas:
“Para
que serve a história? A história é,
antes de mais, um divertimento: o
historiador sempre escreveu por
prazer e para dar prazer aos
outros.[...] O que ele enuncia,
quando escreve a história é o seu
próprio sonho [...] O historiador
conta uma história, uma história que
ele forja recorrendo a um certo
número de informações concretas.
[...] continuamos a utilizar este
material [...] ao serviço das nossas
paixões e da ideologia que nos
domina [...] o discurso histórico
continua a ser uma forma de criação
[...] a elaboração do material é
sempre feita de uma forma subjetiva.
[...] a objetividade do conhecimento
histórico é um mito. [...] jamais
chegaremos a uma verdade
objetiva.[...] sou céptico em
relação à objetividade [...] toda a
informação é subjetiva”. (DUBY,
1986, p. 11-14.)
Para ambos
vale a crítica de Mário Maestri:
“A obra de
Paul Veyne, Como se escreve a
História, constitui bom exemplo da
miséria metodológica e do uso
sistemático das grandes propostas
irracionalistas. Para o autor, a
História não é uma ciência mas uma
espécie de gênero literário que se
distingue da ficção por ser escrita
a partir de uma documentação
histórica. Sua reflexão sobre o
devir histórico assenta-se sobre o
tradicional recurso
irracionalista-burguês de dividir a
natureza em fenômenos materiais que
desvelam suas leis e podem ser
conhecidos e fenômenos sociais
‘singulares’ estranhos a qualquer
‘regularidade’.” (MAESTRI In ANAIS,
1991, p. 131.)
Continuidades e rupturas da "Nova"
História com a Escola dos Annales
- A Nova História
continua apresentando a mesma
indigência teórica que já
caracterizava os Annales,
disfarçada pela absorção acrítica de
conceitos e terminologias mal
assimiladas, tomadas de empréstimo a
outros campos científicos.
Chafurdando no ecletismo teórico...
- Manteve a
interdisciplinaridade tão proclamada
pelo Annales, que muitas
vezes confunde-se com uma
especialização tecnicista.
- Mantendo a pluralidade
de tempos braudeliana, sua
temporalidade sincrônica tende para
a longuíssima duração da história
“quase imóvel”, que conduz à noção
de ausência de mudanças. Ao mesmo
tempo que privilegia a permanência
em relação à mudança, a "Nova"
História volta-se para o passado,
esquece o presente e fecha os olhos
para o futuro.
- A "Nova" História
abandonou qualquer visão de
totalidade - mesmo que fosse a de
justaposição mecânica dos Annales
- passando a cultuar a fragmentação
do real.
- Em nome do combate ao
“determinismo econômico” de “cunho
marxista”, a "Nova" História erigiu
as “mentalités” como as verdadeiras
infra-estruturas determinantes do
social ou, quando não chegou a
tanto, proclamou ao menos a sua
autonomia em relação às estruturas
sociais e econômicas globais.
Aprofundando o afastamento das
causalidades econômicas e sociais,
que os Annales já haviam
iniciado.
- Seu “retorno à
política” - rompendo com a anterior
orientação dos Annales - tem
muito mais a ver com o combate às
“determinações econômicas e sociais”
e com um voltar-se à temática do
“micro-poder”, do que com a história
“macro-política”. No fundo, persiste
a “despolitização” da história,
iniciada pelos Annales.
- Ao questionar a
existência de leis históricas e do
próprio processo histórico, ao negar
a objetividade do conhecimento
histórico e a existência de verdade
histórica, a "Nova" História rompeu
com a visão da história como
ciência, indo muito além das
vacilações que os Annales já
haviam manifestado neste terreno.
Conclusão
É inegável a
existência de uma continuidade, em
diversos aspectos e “tendências”,
entre os Annales e a "Nova"
História. Mais do que isso, os
Annales já trazem latentes
muitos dos gérmens de seu ulterior
desenvolvimento para a "Nova"
História. Mas, também é evidente a
existência de uma profunda ruptura
entre ambas - de caráter involutivo.
Como diz Ciro Flamarion Cardoso, a
"Nova" História é “uma corrente
retrógrada sob aparências de
novidade e ousadia”. (CARDOSO, 1988,
p. 94.)
É a história
“do jeito que as elites gostam”,
rebento do pós-modernismo. Reflexo
da falta de perspectiva de uma
burguesia decrépita - mas ainda viva
- que teme o futuro, não se empolga
com o presente e refugia-se no
passado. Expressão das desilusões de
setores da intelectualidade que,
diante das dificuldades e
retrocessos da luta social,
desertaram:
“A desconstrução do real que hoje se
opera, parece fundamentalmente
ligada ao período atual: o das
ilusões perdidas. No momento que o
vento da história soprava para
construir uma sociedade nova, ou
seja, nos séculos XVIII e na metade
do século XIX, os pensadores
buscavam o sentido do futuro humano
e inscreviam o presente na lógica
racional. De Kant a Marx, sem
esquecer Hegel, temos a compreensão
dos fundamentos das batalhas em
curso pela liberdade. Ao contrário,
quando as resistências às mudanças
triunfam, no momento em que as
esperanças são frustradas, em que a
desilusão se enraíza, assiste-se à
recusa da racionalização global do
real. Já que o real não realiza as
esperanças, ele não pode ser
racional. A história perde, então,
todo sentido, fragmenta-se em
múltiplos segmentos.” (DOSSE, 1994,
p. 192.)
“Na falta de um presente que
entusiasme e perante um futuro
inquietante, subsiste o passado,
lugar de investimento de uma
identidade imaginária [...] que
perdemos para sempre. Essa busca
torna-se mais e mais individual,
mais local, na falta de um destino
coletivo mobilizador. Todos
abandonam os tempos extraordinários
em troca da memória do cotidiano das
pessoas comuns.” (DOSSE, 1994, p.
14.)
“A
história muda então de função:
ciência das transformações, das
mudanças, ela se torna especialidade
das inércias, das sociedades
imóveis, lição de coisas para
prevenirmo-nos das veleidades das
mudanças ao nutrir-nos com a vaga
nostalgia daquilo que perdemos.”
(DOSSE, 1994, p. 221.)
Tudo isso
não significa que a "Nova" História
seja estéril ou não tenha qualquer
contribuição para a ciência
histórica. Seria uma maneira
simplista de tratar a questão.
Primeiro, porque, ao ser uma escola
extremamente heterogênea, possui no
seu seio as mais variadas
orientações teóricas. Segundo,
porque mesmo historiadores com uma
visão incorreta podem contribuir
para o avanço do conhecimento
histórico em estudos concretos.
Lembremos Hegel que, apesar do seu
idealismo, deu contribuições
inestimáveis ao desenvolvimento da
dialética. Devemos fazer uma análise
rigorosa - não apriorística - que
resgate o que há de racional e
científico em sua produção,
acompanhada da crítica implacável a
seus equívocos teóricos e a seu
substrato ideológico reacionário.
RFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WHITE, Hayden. Teoria literária e
escrita da história. Rio de
Janeiro: Estudos históricos, v. 7,
n. 13, 1994.